Nasci em 10 de Junho de 1935, em Lisboa.
Pertenci à Mocidade Portuguesa, ingressei nesta organização de juventude quando era aluno do Colégio Moderno. Ingressei na Legião Portuguesa quando frequentava o Instituto de Estudos Ultramarinos. Tive que interromper os estudos para prestar serviço militar na Índia Portuguesa, em 1959/60.
Pertenci depois à GNR, até 1965, altura em que ingressei na PIDE.
Em 1966, fui para Angola. Em Serpa Pinto, criei os Flechas inspirado nas obras de Jean Larteguy; Spencer Chapman, “The jungle is neutral”; Lawrence da Arábia, “The seven pilars of wisdom”; Mao Tse Tung, “A guerra revolucionária”; Sun Tze, “ A arte da guerra”.
Em 1968, foi-me atribuído o Prémio Governador-Geral de Angola.
Estive em Moçambique em 1971 e 1972. Em 1973, em Carmona.
Quando regressei a Lisboa, em fins de 1973, com o posto de inspector-adjunto, fui colocado na Direcção dos Serviços de Informação, coordenando a informação em Angola e Moçambique.
Aquando do 25 de Abril, fui preso e permaneci detido em Caxias, Peniche e Alcoentre durante dois anos.
Após ter sido libertado, fui para a Rodésia onde trabalhei na formação dos Sealous Scouts, uma versão rodesiana dos Flechas e no CIO (Central Inteligence Organisation).
Em 1977, fui para a África do Sul, onde servi nas forças armadas, força aérea, saindo com o posto de coronel.
Também trabalhei nos Serviços de Inteligência Militar do Exército sul-africano.
Desempenhei funções como chefe de segurança VIP.
Em 1991, regressei a Portugal.
Em 1992, foi-me atribuída uma pensão vitalícia por serviços relevantes prestados à Pátria. Essa pensão foi-me suspensa recentemente.
1.
Em Angola, comecei por chefiar os Serviços Reservados, em Luanda. Era um trabalho no âmbito da segurança interna. Eram coisas do género: se um indivíduo pretendia tirar uma licença de uso e porte de arma, procurava saber-se se tinha antecedentes criminais.
Depois, passei para a secção de contra-espionagem, um serviço que designávamos por GAB. Aí tinha contacto com informadores estrangeiros e com informação realmente secreta. Permaneci no GAB alguns meses.
De seguida, andei por diferentes subdelegações de Angola, sobretudo onde havia problemas. Acabei por ficar com um conhecimento global da Província, desde Cabinda às «terras do fim do mundo», o Cuando-Cubango. Viria a ficar sete anos seguidos no Cuando-Cubango, um sítio admirável, de onde tenho recordações maravilhosas. Chefiei a subdelegação de Serpa Pinto.
2.
Um dia, em Luanda, conheci o administrador Manuel Pontes. Estava quase na reforma. Falamos prolongadamente. Falamos sobretudo de uma região que ele conhecia muito bem: as «terras do fim do mundo», cognome dado ao Sudeste de Angola por Henrique Galvão, no livro «Outras Terras Outras Gentes».
Disse-me uma enorme quantidade de coisas sobre uma minoria étnica, a que nós chamávamos os bosquímanos, que habitava no Cuando-Cubando. Como eu havia frequentado o Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, tinha tido algum conhecimento dessa etnia.
Decidi que iria para esses lugares inóspitos e fascinantes.
O director da PIDE em Angola, Aníbal São José Lopes, concordou e disse-me: «Sim, senhor. Você pega no administrador, damos-lhe uma compensação monetária, e você vai para as terras do fim do mundo fazer uma prospecção sobre o que esses bushmen poderão dar, qual será o rendimento que eles poderão ter em operações de guerrilha.»
3.
E lá fui, com a minha mulher e o administrador Manuel Pontes. Atribuiram-me um velho Land-Rover.
Os bushmen eram indivíduos com uma forma de vida ainda primitiva, faziam ainda o fogo por fricção. Eram muito magros e pequenos, excelentes caçadores.
Na região do Cuando-Cubango, este povo era trocado e vendido como se de gado se tratasse. Muitos eram nómadas e outros escravos dos sobas bantos.
Os bushmen tinham um grande respeito pelo administrador Manuel Pontes e tratavam no por Tata K'Hum, que significa «o pai dos K'Hum», que eram eles. K’Hum é o nome com que os bosquímanos se designam a si próprios. Quando o viam, aproximavam-se. Com a ajuda de intérpretes conseguíamos falar com eles. Eram indivíduos esqueléticos e subalimentados.
Pontes dizia-me: «Se os treinarem, se os alimentarem bem, estes indivíduos podem ser de grande utilidade.» Pela minha parte, e por aquilo
que lera, estava plenamente de acordo. Começámos a dar-lhes treino de tiro, em 1967. Mais tarde, tiveram instrução de Karaté, dada por um mulato nosso amigo que era “cinto preto”. Primeiro, eram apenas oito. Depois eram muitos – a minha infantaria ligeira, ligeiríssima.
No Cuando-Cubango, um território duas vezes e meia maior que Portugal, a PIDE tinha diversos postos chefiados por agentes de 1ª classe, agentes de 2ª classe, chefes de brigada.
Também nos apoiavam nas coutadas de caça. Usávamos os bushmen como pisteiros, no que eram excelentes. Decifravam todos os sinais com uma eficácia extraordinária. Nós aproveitámos essa capacidade singular deles.
Começámos a utilizá-los para obter informação. Conseguiam permanecer no terreno por períodos de tempo incríveis e levando muito poucos meios de sobrevivência com eles. Habituados desde crianças a esgravatar, a viver do nada, tinham uma capacidade nata para se alimentarem, para descobrirem água. Ora, num espaço inóspito como aquele, muito pouco habitado, o menos de Angola, estas capacidades eram de uma utilidade extrema.
No princípio, iam apenas armados de arco e flecha, flechas envenenadas, em que eles eram exímios. Também a sua compleição física não era muito adequada a outro tipo de armas mais modernas. O objectivo era apenas recolher informação mas se a coisa desse para o torto... Quasi nunca traziam ninguém vivo, apenas documentos e armas, por vezes.
Os resultados começaram a ser bastante interessantes. Passámos a poder disponibilizar aos militares uma quantidade e qualidade de informações que lhes permitia operar com maior facilidade e eficácia. Aliás, devo dizer que, na Última Guerra de África, a PIDE funcionou como anjo da guarda das Forças Armadas.
A população era uma espécie de bola de pingue-pongue no meio da guerra. A população que dava apoio aos terroristas era forçada. E maior parte do apoio logístico dos terroristas vinha da Zâmbia.
Os acampamentos terroristas ou ficavam no início do rio ou na confluência de dois rios. E isto era assim porque eles não podiam passar sem água, e também por uma questão de facilidade de referenciação entre eles.
Os bushmen iam lá e, por vezes, eram recebidos a tiro. Então e com apoio das Forças Armadas, começámos a treinar esses bushmen no Cuando-Cubango, no campo de trabalho do Missombo, que tinha sido um campo de recuperação de terroristas, e que nada tinha a ver com a PIDE. O treino consistia fundamentalmente no uso de armas modernas. Conhecimento e táctica do terreno não era preciso – já eram exímios nisso.
Assim se deu início e essa força paramilitar conhecida por Flechas.
Começámos a ter problemas de excesso de voluntários porque muitos queriam pertencer. Como eram escravizados pelos sobas, o tornarem-se soldados fascinava-os. E muitas vezes faziam coisas que não deviam: iam às sanzalas e roubavam galinhas. Evidentemente que quando sabíamos, os castigávamos.
Acabámos por fazer o acampamento do Missombo que tinha na entrada uma frase de Mouzinho de Albuquerque: «Essas poucas páginas brilhantes e consoladoras que há na História de Portugal contemporâneo, escrevemo-las nós, os soldados, lá pelos serões de África com as pontas das baionetas e das lanças...» Também tínhamos também uma frase de um escritor militar chinês, onde se inspirou Mao Tsé-Tung, o Sun Tsu: «(..) Sejam mais rápidos do que o vento e tão misteriosos quanto a mata. Sejam destruidores como o fogo e silenciosos como as montanhas. Sejam impenetráveis como a noite e furiosos como o trovão (...)»
Os Flechas iniciaram-se com bushmen, mas depois começámos a tê-los já de outras etnias. Passou, depois, a pouco e pouco, a haver Flechas em toda a Angola. Quase todas as subdelegações da PIDE em zonas onde havia terrorismo passaram a formar os seus próprios Flechas. Os resultados foram sempre bons.
Fiz diversas operações com os Flechas. Algumas eram feitas com europeus, mas havia outrasem que só iam Flechas, bushmen, porque eram operações de longa duração em que se faziam reconhecimentos, nomadizações que os europeus e os pretos não aguentavam.
Quero também dizer desde já que as nossas Forças Armadas venceram a guerra de guerrilha em Angola. Em 1974 a guerra em Angola estava ganha.
O MPLA sabia-se sem qualquer hipótese de vencer, a UNITA era «nossa».
Também a guerra estava a caminho de se vencer na Guiné. Tenho provas disso.
4.
Quero destacar uma operação que foi feita com um indivíduo que mais tarde foi muito conhecido no Cuando-Cubango, o soba Matias – viria a morrer esfolado vivo após a independência por se recusar a arrear a bandeira portuguesa.
Apareceu-me na subdelegação de Serpa Pinto e que me disse: «Olhe, ispector, eu sei onde há, ali a norte do rio Cuvelai, uns acampamentos da UNITA. Os meninos estão fazer muita chatice, muita confusão. O senhor inspector dá-me uma espingarda que eu vai lá com o meu família...» E lá foi com a malta dele. Trouxe uma data de terroristas. Prendêmo-los e interrogámo-los. Muitos eram terroristas porque não poderiam ter sido outra coisa.
Não tinha problemas em pôr guerrilheiros capturados a colaborar connosco. Levavam uns tabefes, um «calorzinho». A PIDE não era propriamente uma organização de beneficência.
Como o resultado foi bom, propus ao Matias para ir ver se encontrava mais. Ele disse sim. Dei-lhe oito espingardas. O resultado foi tal que aquele homem limpou o terrorismo, a infiltração da UNITA. A norte do Cuando-Cubango, deixou de haver terrorismo da UNITA.
O Matias chefiou uma aldeia com mais de cinco mil pessoas. Todos os dias içava, com honras militares, a bandeira nacional e também o seu pendão, a Cruz de Avis.
5.
Estive em Moçambique em 1971 e 1972. O director
Silva Pais convocou-me e fui levado à presença do Ministro do Ultramar, Silva Cunha. Disseram-me para organizar os Flechas em Moçambique.
Talvez tivesse havido precipitação da nossa parte porque em Moçambique já existiam os Grupos Especiais (GE) e os Grupos Especiais Pára-Quedistas (GEP), que eram muito bons.
Verifiquei, nessa Província não ser premente a necessidade de organizar Flechas.
A minha actividade em Moçambique resumiu-se a detectar a penetração de terroristas da Frelimo feita a partir do Malawi, sobre a linha Beira-Tete, onde iam destruir a linha de caminho-de-ferro. Organizei a informação em Caldas Xavier, com incidência no Malawi, e um sistema de informação no Malawi. Sabíamos quase sempre quando eles punham as bombas no caminho-de-ferro.
Em Lourenço Marques e em Luanda, a PIDE tinha uma colaboração estreita com o Bureau of State Security (BOSS), sul-africano, hoje o National Intelligence Service (NIS). Também tínhamos uma boa colaboração com a South Afican Police (SAP). Interessava, porque a policia sul-africana estava dispersa em vários postos ao longo da fronteira para evitar a penetração da SWAPO, movimento que lutava pela independência da actual Namíbia.
Havia também colaboração com serviços equivalentes da Rodésia.
As Forças Armadas sul-africanas forneciam-nos, por vezes, helicópteros e meios aéreos.E estavam interessadas na UNITA, dado que a UNITA e a SWAPO trabalhavam em conjunto. Nós funcionávamos como uma espécie de tampão à SWAPO, que tinha de atravessar o Cuando-Cubango vinda das suas bases na Zâmbia. Por diversas vezes tivemos contactos com os terroristas namibianos. Numa dessas vezes fui ferido com um estilhaço na mão. Foi uma operação que fizemos em colaboração com os sul-africanos.
6.
No Cuando-Cubango, havia postos da PIDE em Serpa Pinto (sede), em Caiundo, Cuangar, Calai, Dirico, Mucusso, Rivungo, Cuito Cuanavale e Mavinga. Tínhamos a colaboração dos caçadores das três coutadas: Kirongozi, Luengue e Mucusso. Obviamente que estávamos em colaboração total com a tropa que tinha em Serpa Pinto um batalhão, uma companhia comandada pelo Vítor Alves, na N’riquinha, perto da fronteira com a Zâmbia, um pelotão reforçado na Luiana e meia dúzia de elementos em Mavinga.
Os comerciantes, os elementos da PSP, também faziam operações conjuntas com os Flechas. E, quando havia operações militares, os Flechas iam, ou um agente da PIDE com um flecha, que às vezes servia de intérprete.
7.
Estive ainda a chefiar a subdelegação de Carmona, após o que vim para Lisboa integrar a Secção Central dirigida por Álvaro Pereira de Carvalho.
8.
O 25 de Abril foi um golpe com a conivência de Marcelo Caetano.
9.
Penso que Portugal vai desaparecer.
Copyright © 1999 Óscar Aníbal Piçarra de Castro Cardoso
1 comentário:
Gostei de ler esta auto biografia. Fiquei a saber de muitos detalhes que desconhecia. Como angolana, confesso que sempre me bati pela independência do meu país, porque na realidade, havia muita discriminação em relação aos angolanos de qualquer etnia. Sofri isso na pele, apesar de estar defendida por um apelido que na altura tinha peso: Carmona (sobrinha neta). Mas concordo e apoio
todos aqueles que acreditam nos ideais que defendem. Tive um tio que era administrador nessas zonas do fim do mundo (Pimentel Teixeira) que talvez tivesse até conhecido. Nunca me arrependi da minha crença numa independência, apesar de, até um certo ponto, não tivesse sido aquilo que tinha previsto e hoje estar em Portugal.
Mas foi um ideal pelo qual combati. Obrigado por me ter ensinado tanta coisa. E obrigado também pela sua coragem em ter assumido o seu papel nos dias do antes de Abril, onde, se dizia, a democracia chegara para ficar. Onde está ela, afinal? É triste verificarmos que as nossas lutas, estivessem elas de que lado estivessem, não tivessem passado de sonhos, que acabaram por se transformar em pesadelos. Mas, de qualquer forma, tudo valeu a pena!
Acabámos por lutar e sofrer para nada! Terá sido sempre assim e será sempre assim?
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