quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

No adeus a Stella Piteira Santos

via As Causas da Júlia de juliacoutinho@gmail.com (Júlia Coutinho) em 23/01/09
(1 Jun 1917 - 22 Jan 2009)
Foi hoje o funeral. Dissemos adeus a uma mulher de excepção, uma lutadora consequente, uma resistente a todas as formas de opressão. A sua vida é um exemplo. Por direito próprio, Stella Piteira Santos vai ficar na História das Mulheres Portuguesas do século XX. Alimentou afectos. Abriu caminhos e furjou futuros.
Uma mulher que contactei quando em 2005 fundámos o movimento cívico Não Apaguem a Memória e que foi das primeiras a assinar o nosso Manifesto. Interventiva e actuante até ao fim.
Aqui ficam as palavras de sua filha, M Antónia Fiadeiro, aquando dos seus 90 anos e publicadas no Referencial, boletim da Associação 25 de Abril, em Junho de 2007.

Stella Piteira Santos, uma vida de 90 anos
Este é o dia do aniversário dos teus 90 anos. Nasceste no princípio do século passado, em 1917, o ano das grandes utopias socialistas na Europa, utopias a que aderiste, aos dezassete anos, eras uma menina, quando te casaste com o nosso pai, Inácio Fiadeiro. O teu pai médico militar estava na Flandres, em França, fazendo a 1ª Grande Guerra e foi ele que telegrafou para a tua mãe o nome que viria a ser o teu: Stella. A tua mãe, Maria do Carmo Bicker fora de Lagoa para Portimão para poder dar-te à luz nas melhores condições de saúde e de apoio familiar. O Algarve é a tua terra, como sempre dizes, com veemente alegria. O Algarve outrora das amendoeiras em flor, hoje dos longos aloendros floridos.
Casaste uma segunda vez, em 1948, com Fernando Piteira Santos, um amigo e companheiro de lutas estudantis políticas, que fora padrinho de tua filha (eu própria, nascida em 1942) que viera, uns tempos antes, da cadeia Forte de Peniche. Foste então viver para a Amadora, a sua cidade natal, então uma vila. Viveste com o Fernando durante 44 anos, como tantas vezes sublinhas, para salientar o teu marido-companheiro-de-uma-vida, que sempre acompanhaste corajosamente, nos seus escritos e nas suas lutas políticas, até à sua morte inesperada, em 1992, aos 74 anos. Foste uma esposa dedicada, abnegada, que respeitou e ajudou com coragem e determinação as actividades pela liberdade e contra a ditadura em Portugal, que durou tantos anos, tantos anos, quase 50 anos. Sempre fiz tudo para que ele pudesse fazer a sua vida política. A minha, fazia-a com ele. Tudo era mesmo tudo. Fazias de motorista, de secretária, de telefonista, passavas à máquina os manuscritos, fazias pesquisas na Biblioteca Nacional, além de assegurares a gestão e a contabilidade domésticas. Duplas e triplas tarefas. Estiveste presa, foste refém, quase dois meses, em Caxias. Acompanhaste-o no longo exílio de quase 13 anos, onde sempre exerceste a profissão que já tinhas em Portugal, a de secretária bilingue executiva, em grandes empresas, como a Siemens, por exemplo. Foste funcionária do Ministério de Turismo da Argélia de Bem Bella. Ocupaste, pois, como profissional, cá e lá, cargos de confiança e de responsabilidade, onde sempre te reconheceram a lealdade e a competência.
Foste, desde jovem, uma nova mulher moderna. Completaste o 7º ano já com dois filhos pequenos, tinhas carta de condução desde os 40 e guiaste até ao novo milénio. Trabalhavas fora de casa, fumavas (tens um enfisema pulmonar), vestias calças compridas sempre que te apetecia e também escrevias à máquina em casa (uma portátil que pesa «toneladas»), quase sempre à noite, durante 44 anos, praticamente.
Participaste em 1938, grávida de teu primeiro filho, com 21 anos, na fuga do Aljube do António, o mítico Pável, então do Comité Central do Partido Comunista Português, uma fuga histórica, muito pouco falada, mas muito bem sucedida. Foi por causa dele que deram o nome de António ao vosso filho (nascido em Setembro de 1938) cujo padrinho foi o Cunhal, então vosso companheiro e amigo. É por isso que o meu irmão se chama António e é por causa do meu irmão que eu me chamo Maria… Antónia… Éramos, somos, fomos «os Toninhos». A história da nossa família funde-se intimamente com a história política antifascista de Portugal, ou, se preferires, cruza-se perigosamente. Dois anos antes, em 1936, no ano da Guerra Civil de Espanha – houve grandes e devastadoras guerras na Europa do Século XX – foste sócia fundadora da Associação Feminina Portuguesa para a Paz. Foste uma jovem cidadã interveniente, uma adolescente emancipada. Mais tarde, em meados dos anos 40, aderiste ao Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, era então presidente Maria da Conceição Vassalo e Silva da Cunha Lamas, a mítica Maria Lamas, tua amiga. Foste uma nova mulher, uma mulher moderna. Ainda és uma avó moderna e uma bisavó moderna.
Completares, hoje, dia 1 de Junho de 2007, 90 anos, de uma forma lúcida, afável e tão comunicativa, é também uma grande prova de resistência moral e física. O exercício da tua livre vontade em vires para aqui, onde já «moras» há um ano, e largares a tua casa com jardim, em frente à Gulbenkian, as tuas mobílias, os teus objectos, as tuas jóias, os teus papéis, as tuas panelas, as tuas coisas, enfim, foi uma surpresa para nós todos, filhos, netos e amigos e, porventura, foi também uma grande surpresa para ti. Foi uma grande coragem. Com a mesma coragem com que enfrentavas a polícia, recusaste o isolamento. Presa à vida e agarrada ao telemóvel, soubeste desprender-te. Não te bastava viver, querias conviver. A sobrevivência à repressão, à censura e ao medo, face à banalidade da ditadura, tinha sido diária e muito, muito longa.
Aqui, tens um quarto que é teu e para onde pediste que te trouxesse, uma cómoda que era da tua mãe; duas cadeiras de braços em esquina, que pertenceram à casa dos teus bisavós; uma pequena aguarela com uma chaminé e uma buganvília do Algarve cheio de sol; uma pequena pintura, muito escura do Cunhal pai, uma família amiga da família dos teus pais; a foto de casamento de teus pais; uma foto do teu marido, Fernando Piteira Santos, na antiquíssima moldura que já fora de sua mãe Leonilde; fotos dos filhos, dos netos e dos bisnetos, uma foto do teu neto, João, artista coreógrafo e bailarino, em palco; uma carta com uma aguarela da tua neta, Isabel, artista pintora na Mauritânia; uma foto do casamento do teu neto Pedro; a reprodução do brasão da tua família do lado Bicker e uma fotografia oficial, em que recebes das mãos do Presidente Jorge Sampaio, no início deste milénio, a insígnia da Ordem da Liberdade. Ah! E é claro, as tuas toilletes, o teu guarda-roupa. E, claro, as tuas bijutarias, as tuas fantasias e as tuas bugigangas.
Com estes poucos pertences e os muitos cuidados que aqui tens, manténs a tua proverbial elegância e o teu sorriso radioso, uma cara laroca, às vezes, de uma exigência extrema, com modos de muito mando, em legítima defesa, como comentas sibilinamente. Experiências de autoritarismo adquiridas na dura luta dos antigamentes, como insinuas, mais ou menos com estas palavras. Pequenos e plenos poderes perversos.
És uma senhora educada e conversadora, muito convivial, com quem se gosta de conversar e de rir, todos sabemos. Os amigos que reunimos hoje à tua volta e muitos outros, admiram-te e apreciam-te e têm-te dado bastas provas disso. Sempre foste uma senhora inteligente e elegante, embora insistas, muito frequentemente, nos cabelos sem pente, sinal de rebeldia intrínseca.
Stella Piteira Santos. Conquistaste o direito à tua improvável biografia, contra ventos e marés preconceitos e estereótipo, um feito que te dá lugar, por mérito préprio, na História das Mulheres deste país, no século XX.
Tens aqui, comigo, hoje, amigos e amigas de longa duração. Amigas e amigos sem prazo de validade, de antes e depois de Abril, amizades que ainda cultivas e que também resistem ao tempo e aos tempos. A tua agenda de telefones, que dá nas vistas, bem grande, bem organizada e bem cheia (vestígios perenes do exercício da tua profissão?), tão cobiçada e tão útil, que trazes sempre contigo, na tua mala de senhora, junto com o telemóvel sempre activo, é uma enorme prova da tua ânsia de comunicação e de convívio. A democracia assim deve ser entendida: participativa, participante, comunicativa, tolerante. A democracia, quando nasce, é para todos.
Sempre foste uma resistente, em muitos sentidos, mãe, mas essa época acabou, com o século XX, o século assassino das grandes guerras e das pequenas e grandes ditaduras, na Europa. O futuro tem pressa e vem aí a alta velocidade digital. Há novos mundos na Europa do Ocidente e do Oriente. Já não há só novas mulheres. Há novos homens, novos jovens e novos pais, novas famílias que crescem. O tempo das pioneiras acabou no ocidente. Há países novos na Europa do século XXI. E em todo o mundo, novos países livres surgem. Há, também, muita pobreza, muita miséria, muita ignorância. Ainda não soubemos, nós os humanos, acabar com esse flagelo social. Intenso, tenso, embora para qualquer pessoa de bom senso a resolução da fome no mundo, seja um simples problema de aritmética.
Agora, tu que nunca te deitavas de dia na cama, já não resistes às sestas com oxigénio, mas ainda resistes dificilmente, heroicamente aos molhos e aos doces, tu que foste uma doceira e uma cozinheira de gabarito, embora nunca tivesses sabido fazer bifes… Porque é eu nunca me deste a receita da sopa de amêijoas brancas? Também, é verdade, que não resistes aos múltiplos mimos que te prodigalizam. És uma mimocas, dizem-me.
Estás dentro da razão, mãe. A verdadeira democravia promove e autoriza a liberdade das ideias e do pensamento, tal como a liberdade das emoções e dos sentimentos, e muitas, muitas outras liberdades vitais, como sabemos.
Mãe: estamos muito contentes com os teus 90 anos e com a presença dos teus amigos, entre os quais nós, os teus filhos, os Toninhos, se sentem incluídos. São as forças vivas do teu coração.
Esta festinha de aniversário dos teus 90 anos é uma homenagem à tua vida, Mãe. Muitos parabéns.
Maria Antónia Fiadeiro

Sem comentários: