António de Oliveira Salazar. Cinema
via universidade de Gil Gonçalves em 25/09/09
Fernando Correia da Silva
Infelizes ficam os conservadores. Se a letra da Constituição é o que é, só agora lhe entrevêem o espírito: antiliberal, antiparlamentar e antidemocrático. Nela incorporo o Acto Colonial e o Estatuto Nacional de Trabalho. Sidónio Pais, coitado, surgiu antes de tempo. Mas intuiu o caminho que estamos hoje a desbravar. Esta é a primeira constituição corporativa do mundo: sob o arbítrio do Estado forte, a conjugação dos grémios e dos sindicatos, do Capital produtivo e do Trabalho para o engrandecimento da Pátria. Assim levanto uma barragem contra a luta de classes, bandeira dos comunistas.
E os padres? Quando é que sobem ao púlpito a louvar o Estado Novo? Aguardemos o benefício do tempo...
Cinema
Uma barragem... Sinto as pernas entorpecidas, levanto-me, passeio pelo terraço do Forte. As barragens, o plano hídrico nacional... E ainda há alguns maledicentes que me chamam de retrógrado... Tiro os binóculos do estojo e avisto um barquinho que demanda a barra. Se antes da vazante, que não tarda, eles não conseguirem alcançar S. Julião, serão arrastados para o alto mar. A montante, sobre o Tejo, não a vejo, mas sei que lá está a ponte que leva o meu nome, não me fazem favor por isso, fui eu que mandei construir, fui eu que a inaugurei em 1966. Agora, o que me apetecia era ouvir um filme. Não ver, mas ouvir, que eu não tenho pachorra para ir ao cinema. Maria e as amigas é que vão às matinées e depois contam-me tudo. Manta sobre as pernas, um bule de chá, são as noitadas em S. Bento. Gostei muito de "Música no Coração".
Volto a sentar-me. A cadeira balança e range, mas lá se aguenta. Um dia destes ainda me prega uma partida.
Safanão a tempo
Era fim de Agosto e as uvas estavam bonitas, comecei a vindimar. O meu Pai deu-me um safanão a tempo e eu parei. Tirou um bago do cacho que eu acabara de cortar, deu-me a provar. Trinquei, logo cuspi, era azedo. Assim comecei a aprender que tudo tem o seu tempo, tudo obedece a regras, Lei suprema quer para a Natureza, quer para a sociedade dos homens, que é outra forma da Natureza. Quem não respeita as regras é desordeiro; mas quem sempre as põe em causa e delas troça, é ateu a infectar os que estão perto, anarquismo ou comunismo, danação.
Os grandes homens, os predestinados, os grandes chefes, não se embaraçam com preconceitos, com fórmulas, com preocupações de moral política. A violência pode ter vantagens mas não na nossa raça nem nos nossos hábitos. Em Portugal não há homens sistematicamente violentos. Aqui, há que governar tendo sempre em conta esse sentimentalismo doentio a que chamamos bondade. Para defender a Pátria, aqui não é preciso usar da violência. Um safanão a tempo é quanto basta.
Nas revistas e nos jornais e nas emissoras radiofónicas e nos teatros e nos cinemas, o lápis azul e a tesoura da Censura prévia cortam os textos e as imagens fora de prumo, há regras a cumprir, safanão a tempo. Nas livrarias, a polícia apreende os livros subversivos, há regras a cumprir, safanão a tempo.
Se abandonados à liberdade, os homens logo se convertem em libertinos. Reforço a proibição das greves e em 1933 fundo a PVDE - Polícia de Vigilância e Defesa do Estado. Agentes italianos e depois uns alemães, com as suas técnicas, virão ajudar-nos a torná-la mais eficaz. Rapidamente a PVDE estende uma rede de informadores de norte a sul da Nação, nas cidades, nas vilas e até em aldeias. É fácil, muita gente ambiciona ganhar mais uns tostões.
A função primeira da PVDE é prevenir as tentações de libertinagem, é intimidar não só os ímpios e os incautos à beira da impiedade, mas também os respectivos pais, e cônjuge, e filhos, e irmãos, e colegas, e amigos, todos os que estejam em perigo de contágio. Subversão é peste, há que meter a Nação em quarentena. E meto, mas alguns escapam, danados que tentam danar os outros, cães raivosos.
Reorganizo as forças militarizadas, a GNR - Guarda Nacional Republicana, a PSP - Polícia de Segurança Pública, e a Guarda Fiscal. E chamo ao meu gabinete, primeiro o Agostinho Lourenço, director da PVDE; mais tarde o Silva Pais, director da PIDE. Alerto:
- Mais vale um safanão a tempo do que deixar o Diabo à solta no meio do povo.
Contam-me como fazem. Localizam onde pousa um dos suspeitos. A meio da noite arrombam a porta, dão-lhe voz de prisão e uns sopapos, arrastam-no para a sede, interrogatório, safanão primeiro. Se o subversivo conta o que sabe, é porque já está a caminho da salvação. Se não fala, safanão segundo, espancamento. Se calado continua, safanão terceiro, é a penitência da estátua, dias e noites obrigado a ficar sempre de pé, até que as suas pernas se transformem em dois trambolhos. Variante do terceiro safanão é a penitência do sono, dias e noites sem dormir; quando cabeceia, logo acendem um holofote contra os seus olhos. Um dos possessos, ao fim de quinze dias e quinze noites sem dormir, começou a beijar a parede, alucinações, pensava que estava na cama com a mulher. Depois entrou em coma. Normalmente, depois do terceiro safanão, os inconfessos entram em coma. Ninguém os mata, eles é que se deixam morrer porque se negam à salvação.
http://www.vidaslusofonas.pt/salazar.htm
Imagem: http://www.museu.presidencia.pt/item_images/157.jpg
Infelizes ficam os conservadores. Se a letra da Constituição é o que é, só agora lhe entrevêem o espírito: antiliberal, antiparlamentar e antidemocrático. Nela incorporo o Acto Colonial e o Estatuto Nacional de Trabalho. Sidónio Pais, coitado, surgiu antes de tempo. Mas intuiu o caminho que estamos hoje a desbravar. Esta é a primeira constituição corporativa do mundo: sob o arbítrio do Estado forte, a conjugação dos grémios e dos sindicatos, do Capital produtivo e do Trabalho para o engrandecimento da Pátria. Assim levanto uma barragem contra a luta de classes, bandeira dos comunistas.
E os padres? Quando é que sobem ao púlpito a louvar o Estado Novo? Aguardemos o benefício do tempo...
Cinema
Uma barragem... Sinto as pernas entorpecidas, levanto-me, passeio pelo terraço do Forte. As barragens, o plano hídrico nacional... E ainda há alguns maledicentes que me chamam de retrógrado... Tiro os binóculos do estojo e avisto um barquinho que demanda a barra. Se antes da vazante, que não tarda, eles não conseguirem alcançar S. Julião, serão arrastados para o alto mar. A montante, sobre o Tejo, não a vejo, mas sei que lá está a ponte que leva o meu nome, não me fazem favor por isso, fui eu que mandei construir, fui eu que a inaugurei em 1966. Agora, o que me apetecia era ouvir um filme. Não ver, mas ouvir, que eu não tenho pachorra para ir ao cinema. Maria e as amigas é que vão às matinées e depois contam-me tudo. Manta sobre as pernas, um bule de chá, são as noitadas em S. Bento. Gostei muito de "Música no Coração".
Volto a sentar-me. A cadeira balança e range, mas lá se aguenta. Um dia destes ainda me prega uma partida.
Safanão a tempo
Era fim de Agosto e as uvas estavam bonitas, comecei a vindimar. O meu Pai deu-me um safanão a tempo e eu parei. Tirou um bago do cacho que eu acabara de cortar, deu-me a provar. Trinquei, logo cuspi, era azedo. Assim comecei a aprender que tudo tem o seu tempo, tudo obedece a regras, Lei suprema quer para a Natureza, quer para a sociedade dos homens, que é outra forma da Natureza. Quem não respeita as regras é desordeiro; mas quem sempre as põe em causa e delas troça, é ateu a infectar os que estão perto, anarquismo ou comunismo, danação.
Os grandes homens, os predestinados, os grandes chefes, não se embaraçam com preconceitos, com fórmulas, com preocupações de moral política. A violência pode ter vantagens mas não na nossa raça nem nos nossos hábitos. Em Portugal não há homens sistematicamente violentos. Aqui, há que governar tendo sempre em conta esse sentimentalismo doentio a que chamamos bondade. Para defender a Pátria, aqui não é preciso usar da violência. Um safanão a tempo é quanto basta.
Nas revistas e nos jornais e nas emissoras radiofónicas e nos teatros e nos cinemas, o lápis azul e a tesoura da Censura prévia cortam os textos e as imagens fora de prumo, há regras a cumprir, safanão a tempo. Nas livrarias, a polícia apreende os livros subversivos, há regras a cumprir, safanão a tempo.
Se abandonados à liberdade, os homens logo se convertem em libertinos. Reforço a proibição das greves e em 1933 fundo a PVDE - Polícia de Vigilância e Defesa do Estado. Agentes italianos e depois uns alemães, com as suas técnicas, virão ajudar-nos a torná-la mais eficaz. Rapidamente a PVDE estende uma rede de informadores de norte a sul da Nação, nas cidades, nas vilas e até em aldeias. É fácil, muita gente ambiciona ganhar mais uns tostões.
A função primeira da PVDE é prevenir as tentações de libertinagem, é intimidar não só os ímpios e os incautos à beira da impiedade, mas também os respectivos pais, e cônjuge, e filhos, e irmãos, e colegas, e amigos, todos os que estejam em perigo de contágio. Subversão é peste, há que meter a Nação em quarentena. E meto, mas alguns escapam, danados que tentam danar os outros, cães raivosos.
Reorganizo as forças militarizadas, a GNR - Guarda Nacional Republicana, a PSP - Polícia de Segurança Pública, e a Guarda Fiscal. E chamo ao meu gabinete, primeiro o Agostinho Lourenço, director da PVDE; mais tarde o Silva Pais, director da PIDE. Alerto:
- Mais vale um safanão a tempo do que deixar o Diabo à solta no meio do povo.
Contam-me como fazem. Localizam onde pousa um dos suspeitos. A meio da noite arrombam a porta, dão-lhe voz de prisão e uns sopapos, arrastam-no para a sede, interrogatório, safanão primeiro. Se o subversivo conta o que sabe, é porque já está a caminho da salvação. Se não fala, safanão segundo, espancamento. Se calado continua, safanão terceiro, é a penitência da estátua, dias e noites obrigado a ficar sempre de pé, até que as suas pernas se transformem em dois trambolhos. Variante do terceiro safanão é a penitência do sono, dias e noites sem dormir; quando cabeceia, logo acendem um holofote contra os seus olhos. Um dos possessos, ao fim de quinze dias e quinze noites sem dormir, começou a beijar a parede, alucinações, pensava que estava na cama com a mulher. Depois entrou em coma. Normalmente, depois do terceiro safanão, os inconfessos entram em coma. Ninguém os mata, eles é que se deixam morrer porque se negam à salvação.
http://www.vidaslusofonas.pt/salazar.htm
Imagem: http://www.museu.presidencia.pt/item_images/157.jpg
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