Trata-se de um livro que se lê bem nas suas 437 páginas. A autora escreve de uma forma simples, escorreita, e o assunto interessa a muitos curiosos pelo tema e, de um modo particularmente apelativo, aos que viveram como adultos no período do Estado Novo. Dá para que gente séria e responsável medite o perigo que então se passou por acção de um grupo apaixonado que absorveu a doutrina soviética como religião em que os fins justificavam todos os meios…A obra de Zita Seabra constitui um documento essencia como esclarecedora de aspectos importantes das últimas quatro décadas da nossa história.
Zita Seabra, viveu, como filha única, uma infância feliz numa família nortenha de média burguesia, agnóstica, mas não anti-clerical, da oposição, segundo conta . A sua paixão era ser bailarina clássica, tendo feito ballet desde os sete anos e revelado, em várias oportunidades, especial e promissora aptidão. Aluna, no Porto, do Liceu de D.Maria Micaelis, frequentou variados “movimentos associativos” que proliferaram na altura, tornou-se notada pelo PCP e acabou por ser recrutada como seu militante pelo dirigente associativo da Faculdade de Engenharia do Porto, destacado para o efeito pelo “Partido”. Decorria o ano de 1965 e frequentava, com 15 anos, o sexto ano do Liceu. Líder do movimento associativo do Porto e, já endoutrinada e muito apaixonada pelo comunismo, passou, em 1967, à clandestinidade e foi destacada como “camarada de uma casa do “Partido.” Foi distribuidora do “Avante” e operadora no correio para, e de, presos do “Partido” (correio processado em mortalhas de cigarros). As suas faculdades, e a sua militância, guindaram-na a posições de destaque nos anos que serviu o “Partido” na clandestinidade. Foi dirigente importante da U.E.C. (União de Estudantes Comunistas). Empenhou-se na captação e na doutrinação de estudantes, e no seu encaminhamento para o estrangeiro (incluindo a Rússia) ou para as tropas que combatiam em África. Após o 25 de Abril, regressou à vida livre e, especialmente considerada por Álvaro Cunhal, desempenou missões importantes ao serviço do “Partido”, no País e no estrangeiro, incluindo a própria Rússia. Eleita, pelo mérito evidenciado, membro da Comissão Política do Comité Central, no X. Congresso do “Partido”, foi afastada da Comissão Política em Maio de 1988 e definitivamente expulsa do Partido em Janeiro de1989. Manteve-se deputada de 1975 a 1988,
Conhecedora, por dentro do “Partido”, do comunismo (e “os comunistas portugueses sempre souberam de tudo” e “nunca o P.C.P. disse uma palavra sobre as vítimas do comunismo, como se não existissem”, comenta a pág. 437) e das suas técnicas, revela muito destas, com um pormenor que torna o seu trabalho um precioso tratado, raramente disponível, muito útil para alguns serviços que certamente não deixarão de o estudar. Conheceu e pôde apreciar em várias circunstâncias o carácter, a personalidade, do dirigente máximo do P.C.P. E conta, com evidente conhecimento, a que não falta a identidade de intervenientes, muitas ocorrências relativas ao acompanhamento e à participação do P.C.P. na génese do M.F.A. e na infiltração de milicianos nas forças destacadas para o Ultramar. Refere algumas relações entre importantes responsáveis do M.F.A. e do P.C.P.
Constituindo uma obra rara de corajosa frontalidade, o texto não pode deixar de ser lido como uma decidida exautoração do sovietismo, por alguém que, sem abjurar das suas mais puras convicções, se sentiu profundamente desiludida e enganada, no empenho com que apaixonadamente viveu e serviu o Partido; e também como um certo e delicado, mas importante, desnudar da personalidade de Álvaro Cunhal que nela sai diminuído do seu mítico pedestal.
Somente se me afigura extraordinário que, para contar o que pessoalmente cada dia mais a envergonhava, como confessa (pág. 430), tenha necessidades de recorrer à exautoração de um regime que conheceu essencialmente como militante do “Partido” que agora corajosa e frontalmente abjura, regime no qual o que sofreu e viu sofrer foi, essencialmente, em resultado do combate que a ele foi feito, para que se não estendesse ao nosso País “o maior embuste do século XX na opinião insuspeita de um seu amigo “(pág. 430) . E nem o facto de ter sido procurado, e que, para felicidade do País, tivesse, por tal combate, sido evitado, que se viesse a viver o que define (pág. 437) como uma “tragédia de proporções gigantescas, do tamanho de um continente, na real dimensão que tem uma tragédia da humanidade” justifica e compensa as restrições de liberdade, e consequentes sofrimentos, que ao longo do texto refere e que foram, em geral, custo de responsabilidades voluntariamente assumidas, por engano posteriomente verificado. É uma atitude que traz à minha recordação o seguinte episódio que vivi. Anos atrás fui convidado para um almoço num bom hotel de Lisboa por pessoa conhecida e amiga, sempre muito amável comigo. Os convidados eram, com minha surpresa, politicamente muito heterogénios: lá se encontravam, que me recorde, entre outros, General Eanes, Padre Melícias, Jaime Serra, Palma Inácio… e dois médicos, um que vim a saber ser comunista e outro, que foi especialmente simpático comigo, que eu reconheci, pelo nome, como importante apoiante do MPLA, no Portugal europeu. Estes dois médicos foram-me apresentados logo que cheguei e ficámos a conversar enquanto se reuniam os convivas para as várias mesas. Vivia-se a época da “perestróica” e os dois médicos empenharam-se perante mim por execrar o sovietismo e o perigo que havia representado. Com lógica simplicidade, observei que da sua opinião teria de se concluir ter sido prestimosa a acção da Polícia Internacional (na luta contra tal vírus, subentendia-se)…A reacção , civilizada, foi : Oh Senhor General!...
Num nível inferior de pura cobardia, que evidentemente não é o de qualquer dos casos, ocorre-me aquela generalizada e tristíssima atitude de tantos que para referirem qualquer coisa que consideram mal do presente, se escudam dizendo pior, seja do que for, do passado…
Fonte: Blogue "Alameda Digital" - post de Silvino Silvério Marques
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