APRENDER A LER E A ESCREVER NO ANDULO(*)
Em 1957, o Andulo perdera bastante da incipiência inicial. Continuava uma vila de dimensão e importância reduzidas, mas crescera, desdobrando-se numa avenida principal e em algumas ruas adjacentes, que eram ladeadas agora, não apenas por estabelecimentos comerciais, mas também por mora-dias particulares e edifícios públicos. Uma igreja, uma escola, um clube de futebol, um hotel, um parque infantil e dois ou três jardins, bastavam só por si para encher de orgulho os seus habitantes.
Os que haviam acompanhado de perto esse desenvolvimento, gente que vinha do tempo da fundação, comentavam o facto com algum exagero:
— Isto parece já uma cidade!
Entusiasmavam-se:
— Cresce de ano para ano e há-de ir longe!...
Exageravam realmente, mas a verdade, a verdade é que a vila de 1920 e o Andulo de trinta e sete anos depois eram bem diferentes. Se o burgo seria ou não promovido a cidade, se teria ou não um futuro promissor à frente, para recorrer às palavras dos fundadores, isso era algo de há muito desejado, mas ainda por confirmar.
Tal como os outros pais no princípio de cada ano lectivo, Abel foi de lis-ta na mão ao «A. Gouveia L.da», onde encomendou um livro de leitura, uma tabuada, uma lousa, cadernos de linhas, lápis de carvão e de cores, uma bor-racha, uma caneta de aparo, um tinteiro, tudo o que o filho precisaria para entrar na escola.
Vindo de Silva Porto como de costume, o material chegou uma semana mais tarde, e Ernesto ficou então a saber que com isso (com «essas coisas», como o pai referiu) iria começar a aprender a ser homem.
Abel pegou no livro de leitura, abriu numa página ao acaso e observou:
— É aqui que aprenderás a ler.
Depois nos cadernos de linhas:
— E aqui a escrever, a apurar a letra, a não dar erros.
Por fim na tabuada:
— E aqui a fazer contas.
Pôs o livro, os cadernos e a tabuada uns por cima dos outros, concluindo:
— Aproveita o dinheiro que gastei, puxa por essa cabeça e vê lá se estudas.
Perguntou:
— Percebeste?
Ernesto baixou a cabeça, mostrando que percebera, e alguns dias mais tarde, de sacola de serapilheira ao ombro, com todo o material lá dentro, subiu para a carrinha, sentou-se ao lado de Sapalo Jeremias e foi para a escola.
Repetiria essa viagem muitas e muitas vezes ao longo dos quatro anos seguintes, em que passaria da 1ª para a 2ª, da 2ª para a 3ª, da 3ª para a 4ª Classe. Exceptuando os sábados e os domingos, bem como os períodos de férias, repetiria esse trajecto todos os dias, mas nunca tão emocionado como nessa manhã.
Ia nervoso, tentado imaginar o que iria encontrar. E sobretudo defrontar.
O que encontrou e defrontou de facto foi um edifício que parecia enorme, com varandas nas traseiras, onde as professoras Alda Morais e Luísa Amaral, cada uma na sua sala, leccionavam turmas de trinta a quarenta alunos.
Sapalo Jeremias parou a carrinha, apontou o edifício e disse:
— Pode descer. É para ali que tem de ir, é a sua escola.
Ernesto obedeceu e foi.
Em frente da secretária de madeira maciça, com um mata-borrão verde por cima coberto por um vidro grosso, a professora Luísa Amaral ia con-vidando:
— Entrem, meninos, entrem, façam favor.
Era uma mulher de estatura mediana, cabelos castanhos curtos, ar austero como convinha ao magistério. De vara de bambu na mão, parecia estar com pressa:
— Entrem, entrem e fechem a porta.
Ernesto sentou-se na carteira, pôs a sacola de serapilheira sobre o tampo, olhou demoradamente à volta: primeiro para o quadro-preto, depois para as janelas que davam para a rua, por fim para os colegas que tinha ao lado, também eles incapazes de esconder o seu nervosismo e o seu receio.
Sempre de pé em frente da secretária, Luísa Amaral insistia:
— Entrem, meninos, entrem.
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(*)Inácio Rebelo de Andrade
in O Pecado Maior de Abel (romance), Edições Colibri, Lisboa, 2009
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