sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O monárquico sem anel de armas e sem voz enrolada

monárquico sem anel de armas e sem voz enrolada

via COMBUSTÕES by Combustões on 1/23/10
João Camossa (1925-2007) era um homem extravagante. Dele se dizia, com o escarninho da malévola estupidez - daquela que olha aos sapatos, à gravata e aos trapos para emitir certificado de respeitabilidade - que parecia um deserdado, um homem da rua, enfiado no seu sobretudo de grossa lã 365 dias por ano, a hirsuta barba amarela queimada pelo tabaco, o monte de papéis e livros de alfarrabista sob o braço. O mundo está cheio de medíocres, de homens e mulheres proclamados normais e gente de bem que nunca acrescentaram um grama à fatalidade da biologia do nascer, do alimentar-se e do morrer. A mediania apagada, ansiosa por fugir à sanção do olhar repressor, desejosa de gregarismo, olha para estes estranhos dissidentes com medo, por neles julgar ver a solidão, a exclusão e a pobreza aterradoras. Para pessoas que se esgotam em jogos sociais, no parece-bem, na moralzinha bem apresentada das palavras [e sobretudo da intolerância], João Camossa era um incómodo.


Contudo, quem dele se abeirasse e o ouvisse discorrer sobre as suas paixões - a História, a doutrina portuguesa, a tradição, o património literário e o património monumental, a olissipografia - quedava-se mudo, não se atrevendo cortar o fio do raciocínio informado, a profundidade da reflexão, o brilho das metáforas, o provocador das associações que ia entretecendo. Camossa não mandava calar nem levantava a voz, mas as conversas em que participava depressa se transformavam em monólogos.


Tive a honra de o conhecer em 1982, quando, presidente da JM (Juventude Monárquica) desenvolvi com o meu irmão Nuno, o João Portugal, o André Folque Ferreira e o Eduardo Rosa Silva a primeira grande experiência de activismo monárquico no Portugal pós-25. Ao contrário de muitos dirigentes do PPM, barricados nas inibições que a sua condição de aliados menores da AD aconselhava e ansiosos em agradar aos desertos mentais da tecnocracia iletrada, João Camossa viu naquela centena de rapazes e raparigas de vinte anos a grande esperança do ideal monárquico. Na altura, lembro-me, chamaram-nos tudo e até a processos disciplinares, com audições formais e depoimentos recorreram. O nosso crime ? Falar em monarquia, cobrir as paredes de Lisboa com cartazes monárquicos, exibir a azul-e-branca, vencer sucessivas eleições nos liceus de Lisboa, participar nos comícios da AD com centenas de jovens estridentes que quase deixavam à margem as poderosas JC e JSD. Confesso que cometemos erros, mas esses erros, produto da imaturidade, deviam ter sido interpretados como erros do crescimento e não punidos com a severidade desses castelos de papel que são os estatutos. É a velha tara jurídica das direitas portuguesas !


Ora, voltando a Camossa, ele era demasiado lúcido para cobrir o que quer que fosse com o manto da poesia. Era um radical pessimista antropológico mas dava-se às pessoas. Lembro-me que desfiava a imensa bagagem literária e escolhia, precisamente, as obras mais sombrias sobre os homens, as suas parvoíces e maldade, as intolerâncias graníticas, as teimosias e crueldade. Um dia trouxe-me Os Vulcões de Lama, o último romance de Camilo e disse: "Miguel, leve-o e sorva-o até à última página". O homem que se apresentava como Anarco-Miguelista conhecia demasiado a história e os homens para sobre eles esperar grande coisa. Noutra circunstância, Camossa entrou na sede do PPM, então na Rua da Escola Politécnica. Vinha radiante, trazendo na mão o jornal Rex, orgão informativo da Juventude Monárquica. Eu havia escrito o editorial que era, confesso sem remorso, uma chuva de Orgãos de Estaline em palavras. Camossa disse-me: "se vocês pudessem, amanhã teríamos a bandeira hasteada na Praça do Município". Foram precisos vinte e tal anos para que o sentido da nossa militância fosse compreendida. No fundo, as pessoas não mudam. Eu sou, sem tirar, aquilo que era há vinte anos e tenho a supina alegria de ver que o mundo mudou e que hoje, aquilo de que fomos acusados é moeda corrente. Estávamos, pois, vinte anos adiantados sobre o tempo.

No próximo dia 26 de Janeiro, merecidamente, o Centro Nacional de Cultura vai prestar homenagem a esse amigo. Camossa foi presidente do CNC, como poderia ter sido mais, muito mais, se os monárquicos de anel e voz enrolada não olhassem aos sapatos, à gravata e aos trapos antes de olharem para os homens. Está por fazer a antologia dos seus muitos escritos dispersos por revistas, jornais e boletins. Talvez se faça, finalmente, justiça a João Camossa, o grande incompreendido.

"Foi em tudo a antítese da vulgaridade. Inteligente e profundo, muito original-o que não quer dizer que fosse irrealista nem muito menos ingénuo- no modo como via o presente e como preconizava o futuro. Desconcertante, ousado e por vezes genial nas intervenções públicas, escapando a toda e qualquer disciplina, muito anárquico na doutrina, e no modo de vida. Sem embargo, era naturalmente sociável e um bom companheiro. Político à maneira antiga, da política como jogo- entretenimento supremo da existência e como luta pura por ideais, avesso ao poder, que entendia que corrompia. Foi um devotado adepto da Monarquia, cujo ideal serviu fielmente por toda a vida. Associava, no seu ideário, restos de integralismo lusitano ao seu característico anarquismo comunalista e à sua sólida opção democrática, pugnando indefectivelmente pela liberdade e pelos direitos da pessoa humana. Com a ironia permanente à flor da pele, frequentemente sarcástico, céptico em muita coisa, mas amando sempre a sua portugalidade."

D. Duarte de Bragança (2007)

Sem comentários: