via Sopas de Pedra by A. M. Galopim de Carvalho on 2/7/10
HÁ CERCA DE 65 milhões de anos, uma grande catástrofe, à escala do Planeta, levou à extinção de cerca de 75% das espécies vivas de então. Libertos da presença dominadora da grande maioria dos dinossáurios, os mamíferos ficaram com campo aberto para proliferarem ao longo dos milhões de anos que se seguiram, adaptando-se a todos os ambientes em terra, no mar e no ar. Desta evolução, que teve a seu favor uma infinidade de tempo e um número incontável de gerações, resultou, há cerca de 30 milhões de anos, a aparição dos suídeos que daí, caminhando até aos dias de hoje, evoluíram para o animal que todos conhecemos e apreciamos: – o porco alentejano.
Sus ibericus, o nosso porco, é uma espécie mediterrânea, descendente próxima do Sus mediterraneus, o javali do Sul, com origem africana. Com uma rusticidade semelhante à do Sus scrofa, o javali europeu é mais corpulento e rotundo do que este seu parente selvagem, que ainda hoje povoa as matas da Europa, incluindo Portugal.
Raça suína autóctone portuguesa, o porco alentejano tem por habitat o montado, quer o de azinho (Quercus rotundifolia) quer o de sobro (Quercus suber). Milhares de anos de adaptação a este bosque mediterrâneo da região alentejana, aproveitado como importante sistema agro-pastoril, a sua domesticação pelas primeiras civilizações sedentárias neolíticas e continuada pelas que aqui nos deixaram as antas, os menhires e os cromeleques, moldaram o animal que chegou aos nossos dias. A Natureza e o Homem adaptaram o montado ao porco e este ao montado, num binómio que, durante séculos, foi o suporte de parte importante da economia da mais vasta província de Portugal. Muito diferente do porco bísaro, transmontano (mais pequeno e malhado de branco rosado e negro), o porco alentejano, muitas vezes chamado de porco preto, é a última raça suína de pastoreio, na Europa.
O porco alentejano é considerado o animal que melhor utiliza os frutos do montado (a bolota e a lande), convertendo-os em carne de reconhecida qualidade. "Para preservação deste património gastronómico e cultural que os nossos antepassados nos legaram, não podemos tirar o montado ao porco ou o porco ao montado, sob pena de aniquilarmos ambos", escreveu, em 2000, Tirapicos Nunes. Da carne fresca, do toucinho alto conservado na salgadeira e dos muitos e variados enchidos dos nossos pais e avós e da nossa infância, o porco alentejano e os seus produtos voltam a impor-se no comércio e na restauração. Têm nome e marca de excelência os presuntos de Barrancos e as diversas carnes cheias de Moura, Portalegre, Estremoz, Borba, São Mansos e Arronches, entre outros locais de produção artesanal, no escrupuloso respeito pela tradição.
Quando vivo, o animal tem pouca apresentação e, daí, o seu nome. Causa repulsa a muita gente, mas, dizem os bons apreciadores, a sua carne é um convite ao prazer O porco sempre esteve na cozinha dos ricos e dos pobres. Com uma diferença: os ricos comiam mais presunto, paio e linguiça, e os pobres, mais toucinho e farinheira. A carne de porco é a que melhor convida à confraternização, bem testemunhada em todo o ritual da matança, um património cultural em declínio, na sequência das normas europeias vigentes. A rechina, ou cachola, é uma confecção carregada de valores simbólicos associados à "liturgia do sangue". O sangue simboliza a vida e, assim, matar o porco em família é continuar um ritual antigo em que este era oferecido em sacrifício aos deuses, herança de que a grande maioria dos políticos que nos governam se não dá conta.
Mesopotâmios, egípcios e gregos criavam e consumiam porco. Ofereciam-no em sacrifício aos deuses. E aos deuses só se oferece o que há de melhor. Homero glorificava este animal, considerando a sua carne a mais saborosa de todas. Entre os etruscos, o porco ocupava o primeiro lugar na respectiva dieta, e a criação de suínos, ao contrário da dos bovinos, tinha por único destino o consumo alimentar. Na Europa do Norte, a cultura do porco era também uma realidade entre os celtas. Durante a sua permanência no Alentejo, nos séculos VII a V a. C., deixaram vestígios deste seu hábito alimentar.
Continuando uma tradição vinda dos etruscos, os romanos criaram porcos como base importante da sua alimentação. Cícero considerava esta espécie como "uma dispensa ambulante", pois, enquanto vivo, o animal tinha a capacidade de conservar o alimento correspondente ao seu próprio corpo. Para os romanos, a natureza criara o porco para os festins. Na época imperial, a partir do século III, distribuía-se pão e carne de porco à população. Entre este povo, os leitões eram os animais domésticos mais oferecidos em sacrifício aos deuses. Depois eram comidos em lautos banquetes.
No Médio Oriente, a Bíblia proibia o consumo de carne de animais, não ruminantes, com a unha fendida. O porco e o javali estavam, assim, na lista das proibições. Nesta linha, o porco foi sempre considerado impuro por muçulmanos e judeus. As leis, quer a de Moisés, quer a do Islão, proíbem o seu consumo. Com os invasores islâmicos, o porco foi banido da dieta alimentar alentejana. Foi o tempo do Garb-al-Andaluz, cujos vestígios abundam nesta região, tanto nos objectos e palavras, como na gastronomia. Basta que nos lembremos da açorda e das migas, do escabeche e do ensopado de borrego ou das confecções à base de grão.
Entre os visigodos, o porco era uma entidade mítica. A conhecida porca da Murça é disso testemunho. A figura deste animal está inscrita nos ex-votos de vários santuários dedicados a Endovélico. Com a reconquista cristã e a expulsão dos mouros, a suinicultura no Alentejo aumentou de tal modo que se considera esta actividade pecuária como um traço importante da nossa economia no tempo que se lhe seguiu. O porco passou a ter um papel preponderante entre cristãos, ao contrário dos judeus. No Alentejo, o porco separava duas comunidades. O porco é o animal mais apreciado entre cristãos e o mais interdito entre judeus, a ponto de, em períodos de perseguição a estes se investigarem os hábitos alimentares das famílias e, daí, se deduzir a respectiva religião. As alheiras terão nascido como disfarce para iludir tal vigilância.
Ao longo da Idade Média, o número crescente de porcos atingiu valores consideráveis que obrigaram à publicação de disposições legais reguladoras da respectiva criação. Muitas famílias, vivendo em cidades, criavam animais em pocilgas, com reflexos evidentes na higiene e saúde públicas. Os vassalos podiam engordar dois, os populares apenas um, mas os fidalgos e outros senhores estavam autorizados a criar vinte, trinta, ou mais, uma filosofia social ainda bem marcada na nossa sociedade.
Nos campos, os porcos eram tantos que danificavam searas e hortas. Na Évora medieval, o número de porcos a deambular pelas ruas (nesse tempo térreas e pejadas de dejectos) e azinhagas era tão elevado, que uma postura municipal ordenou que "nenhum porco andasse pelas ruas sem ter o focinho argolado", o que os impedia de fossar. No final da Idade Média, o porco continuava a ser o produto animal mais consumido, tendo sido um providencial recurso alimentar em tempos de fome. Além da montanheira (criação no montado) e do chiqueiro familiar, havia a criação em ádua, isto é, um local onde as pessoas deixavam os seus animais à guarda de um porqueiro comum, a quem pagavam para os apascentar nos baldios do concelho.
Bácoro, barrasco, cerdo, cochino, farropo, javardo, leitão (nos juvenis), marrano, marrancho, suíno, varrasco e varrudo são muitas as designações dadas a este animal, tal a sua importância no quotidiano das gentes.
A peste suína africana, a doença do sobreiro e o declínio da montanheira por pouco não levaram à extinção deste nosso património. Por outro lado, com a modificação dos hábitos alimentares, interesseira e inteligentemente conduzidos e incentivados por campanhas publicitárias, a mando da grande indústria agro-alimentar, em prol dos óleos importados e das margarinas, contra a banha e até contra o azeite e, ainda, a introdução, no consumo, de raças exóticas, com mais carne e menos toucinho, o porco alentejano parecia ter os dias contados, o que, felizmente, não aconteceu. A partir dos anos 80, com o controlo da epidemia que quase os dizimara, Portugal foi reconhecido como zona indemne e, graças à meritória e oportuna promoção da chamada "dieta mediterrânea", está a renascer o interesse pela suinicultura desta raça e pelos produtos dela derivados. Contam-se, hoje, por centenas, os produtores deste animal em todo o Alentejo. No presente, muitos hectares de montado são, ainda, uma garantia às necessidades dos tempos que correm, mas o futuro é incerto e preocupante, tendo em conta a rarefacção deste sistema agro-pastoril. A alimentação desta nossa raça com cereais e farinhas vai, certamente, mudar-lhe as características que a tornaram um produto natural de excelência.
Sus ibericus, o nosso porco, é uma espécie mediterrânea, descendente próxima do Sus mediterraneus, o javali do Sul, com origem africana. Com uma rusticidade semelhante à do Sus scrofa, o javali europeu é mais corpulento e rotundo do que este seu parente selvagem, que ainda hoje povoa as matas da Europa, incluindo Portugal.
Raça suína autóctone portuguesa, o porco alentejano tem por habitat o montado, quer o de azinho (Quercus rotundifolia) quer o de sobro (Quercus suber). Milhares de anos de adaptação a este bosque mediterrâneo da região alentejana, aproveitado como importante sistema agro-pastoril, a sua domesticação pelas primeiras civilizações sedentárias neolíticas e continuada pelas que aqui nos deixaram as antas, os menhires e os cromeleques, moldaram o animal que chegou aos nossos dias. A Natureza e o Homem adaptaram o montado ao porco e este ao montado, num binómio que, durante séculos, foi o suporte de parte importante da economia da mais vasta província de Portugal. Muito diferente do porco bísaro, transmontano (mais pequeno e malhado de branco rosado e negro), o porco alentejano, muitas vezes chamado de porco preto, é a última raça suína de pastoreio, na Europa.
O porco alentejano é considerado o animal que melhor utiliza os frutos do montado (a bolota e a lande), convertendo-os em carne de reconhecida qualidade. "Para preservação deste património gastronómico e cultural que os nossos antepassados nos legaram, não podemos tirar o montado ao porco ou o porco ao montado, sob pena de aniquilarmos ambos", escreveu, em 2000, Tirapicos Nunes. Da carne fresca, do toucinho alto conservado na salgadeira e dos muitos e variados enchidos dos nossos pais e avós e da nossa infância, o porco alentejano e os seus produtos voltam a impor-se no comércio e na restauração. Têm nome e marca de excelência os presuntos de Barrancos e as diversas carnes cheias de Moura, Portalegre, Estremoz, Borba, São Mansos e Arronches, entre outros locais de produção artesanal, no escrupuloso respeito pela tradição.
Quando vivo, o animal tem pouca apresentação e, daí, o seu nome. Causa repulsa a muita gente, mas, dizem os bons apreciadores, a sua carne é um convite ao prazer O porco sempre esteve na cozinha dos ricos e dos pobres. Com uma diferença: os ricos comiam mais presunto, paio e linguiça, e os pobres, mais toucinho e farinheira. A carne de porco é a que melhor convida à confraternização, bem testemunhada em todo o ritual da matança, um património cultural em declínio, na sequência das normas europeias vigentes. A rechina, ou cachola, é uma confecção carregada de valores simbólicos associados à "liturgia do sangue". O sangue simboliza a vida e, assim, matar o porco em família é continuar um ritual antigo em que este era oferecido em sacrifício aos deuses, herança de que a grande maioria dos políticos que nos governam se não dá conta.
Mesopotâmios, egípcios e gregos criavam e consumiam porco. Ofereciam-no em sacrifício aos deuses. E aos deuses só se oferece o que há de melhor. Homero glorificava este animal, considerando a sua carne a mais saborosa de todas. Entre os etruscos, o porco ocupava o primeiro lugar na respectiva dieta, e a criação de suínos, ao contrário da dos bovinos, tinha por único destino o consumo alimentar. Na Europa do Norte, a cultura do porco era também uma realidade entre os celtas. Durante a sua permanência no Alentejo, nos séculos VII a V a. C., deixaram vestígios deste seu hábito alimentar.
Continuando uma tradição vinda dos etruscos, os romanos criaram porcos como base importante da sua alimentação. Cícero considerava esta espécie como "uma dispensa ambulante", pois, enquanto vivo, o animal tinha a capacidade de conservar o alimento correspondente ao seu próprio corpo. Para os romanos, a natureza criara o porco para os festins. Na época imperial, a partir do século III, distribuía-se pão e carne de porco à população. Entre este povo, os leitões eram os animais domésticos mais oferecidos em sacrifício aos deuses. Depois eram comidos em lautos banquetes.
No Médio Oriente, a Bíblia proibia o consumo de carne de animais, não ruminantes, com a unha fendida. O porco e o javali estavam, assim, na lista das proibições. Nesta linha, o porco foi sempre considerado impuro por muçulmanos e judeus. As leis, quer a de Moisés, quer a do Islão, proíbem o seu consumo. Com os invasores islâmicos, o porco foi banido da dieta alimentar alentejana. Foi o tempo do Garb-al-Andaluz, cujos vestígios abundam nesta região, tanto nos objectos e palavras, como na gastronomia. Basta que nos lembremos da açorda e das migas, do escabeche e do ensopado de borrego ou das confecções à base de grão.
Entre os visigodos, o porco era uma entidade mítica. A conhecida porca da Murça é disso testemunho. A figura deste animal está inscrita nos ex-votos de vários santuários dedicados a Endovélico. Com a reconquista cristã e a expulsão dos mouros, a suinicultura no Alentejo aumentou de tal modo que se considera esta actividade pecuária como um traço importante da nossa economia no tempo que se lhe seguiu. O porco passou a ter um papel preponderante entre cristãos, ao contrário dos judeus. No Alentejo, o porco separava duas comunidades. O porco é o animal mais apreciado entre cristãos e o mais interdito entre judeus, a ponto de, em períodos de perseguição a estes se investigarem os hábitos alimentares das famílias e, daí, se deduzir a respectiva religião. As alheiras terão nascido como disfarce para iludir tal vigilância.
Ao longo da Idade Média, o número crescente de porcos atingiu valores consideráveis que obrigaram à publicação de disposições legais reguladoras da respectiva criação. Muitas famílias, vivendo em cidades, criavam animais em pocilgas, com reflexos evidentes na higiene e saúde públicas. Os vassalos podiam engordar dois, os populares apenas um, mas os fidalgos e outros senhores estavam autorizados a criar vinte, trinta, ou mais, uma filosofia social ainda bem marcada na nossa sociedade.
Nos campos, os porcos eram tantos que danificavam searas e hortas. Na Évora medieval, o número de porcos a deambular pelas ruas (nesse tempo térreas e pejadas de dejectos) e azinhagas era tão elevado, que uma postura municipal ordenou que "nenhum porco andasse pelas ruas sem ter o focinho argolado", o que os impedia de fossar. No final da Idade Média, o porco continuava a ser o produto animal mais consumido, tendo sido um providencial recurso alimentar em tempos de fome. Além da montanheira (criação no montado) e do chiqueiro familiar, havia a criação em ádua, isto é, um local onde as pessoas deixavam os seus animais à guarda de um porqueiro comum, a quem pagavam para os apascentar nos baldios do concelho.
Bácoro, barrasco, cerdo, cochino, farropo, javardo, leitão (nos juvenis), marrano, marrancho, suíno, varrasco e varrudo são muitas as designações dadas a este animal, tal a sua importância no quotidiano das gentes.
A peste suína africana, a doença do sobreiro e o declínio da montanheira por pouco não levaram à extinção deste nosso património. Por outro lado, com a modificação dos hábitos alimentares, interesseira e inteligentemente conduzidos e incentivados por campanhas publicitárias, a mando da grande indústria agro-alimentar, em prol dos óleos importados e das margarinas, contra a banha e até contra o azeite e, ainda, a introdução, no consumo, de raças exóticas, com mais carne e menos toucinho, o porco alentejano parecia ter os dias contados, o que, felizmente, não aconteceu. A partir dos anos 80, com o controlo da epidemia que quase os dizimara, Portugal foi reconhecido como zona indemne e, graças à meritória e oportuna promoção da chamada "dieta mediterrânea", está a renascer o interesse pela suinicultura desta raça e pelos produtos dela derivados. Contam-se, hoje, por centenas, os produtores deste animal em todo o Alentejo. No presente, muitos hectares de montado são, ainda, uma garantia às necessidades dos tempos que correm, mas o futuro é incerto e preocupante, tendo em conta a rarefacção deste sistema agro-pastoril. A alimentação desta nossa raça com cereais e farinhas vai, certamente, mudar-lhe as características que a tornaram um produto natural de excelência.
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