terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

OS REFLUXOS DA HISTÓRIA

via MUKANDAS do Monte Estoril by Irdea on 1/30/10

QUANDO O HAITI FOI

UM PARADIGMA DA LIBERDADE

Por:

Leonel Cosme

Não serão muitos os angolanos (e menos os portugueses) que, vendo hoje a onda de horror que arrasou o Haiti, reduzindo o seu povo ao grau zero do progresso da humanidade, sabem ou se lembram de que ele já constituiu um paradigma da luta de libertação dos negros escravizados de todo o mundo; e de que, em Angola, esse paradigma não só sensibilizou colonos excep-cionais, já no século XIX, como inspirou a geração de jovens intelectuais angolanos que, nos meados do século XX, fizeram da literatura um instru-mento da luta pela independência do seu país.

Faço daqui um convite aos curiosos e interessados para procurarem nas principais bibliotecas públicas um livro editado, em Lisboa, em 1880, inti-tulado, genericamente, A RAÇA NEGRA, da autoria de A. F. Nogueira, na altura sócio efectivo da Sociedade de Geografia de Lisboa, membro da Comissão da Exploração da África da mesma Sociedade. (A quem quiser saber mais sobre o que foi este colono excepcional, António Francisco Nogueira, de nome completo, saído do Brasil, em 1850, para o distrito de Moçâmedes, sugiro a leitura do meu ensaio Muitas são as Africas, Novo Imbondeiro, 2006).

Naquela época, focando a marcha progressiva dos povos negros, já independentes, da Libéria e do Haiti, considerava Nogueira, "pode dizer-se com verdade que os Negros têem desmentido a asserção dos pedantes ethnologos, que alegando a sua natural inferioridade, os declaram incapazes de cuidarem de si mesmos." E centra o seu arrazoado, — que contestava também as teorias racistas de proeminentes africanólogos portugueses — no progresso verificado no Haiti, desde a proclamação da independência do domínio francês, em 1804, pelo general haitiano Toussaint Louverture.

Nogueira conta pormenorizadamente a história do novo país (hoje é ligeiramente repetida nas enciclopédias), desde que, em 1492, ali aportou Cristóvão Colombo, ocupando o território habitado por uma "raça caraíba, que os hespanhoes destruíram apesar do bem que os tinha recebido, substituindo-a por Negros d'Africa, importados como escravos, e que eram mais vigorosos e trabalhadores."

Jorge Luís Borges, logo no primeiro parágrafo do seu livro de crónicas irónicas História Universal da Infâmia (1935) reza assim sobre os primórdios da ocupação do Haiti pelos colonizadores espanhóis:

Em 1517, o padre Bartolomé de las Casas teve muita pena dos índios que se extenuavam nos laboriosos infernos das minas de ouro das An-tilhas e propôs ao imperador Carlos V a importação de negros, que se extenuaram nos laboriosos infernos das minas de ouro das Antilhas. A essa curiosa variação de um filantropo devemos factos infinitos. Enume-ra-os, na mesma toada irónica, terminando a lista com o napoleonismo corajoso e encarcerado de Toussaint Louverture, a cruz e a serpente no Haiti, o sangue das cabras degoladas pela catana do papaloi, a habanera mãe do tango, o candombe.

Meio século atrás, Nogueira registava que em Port-au-Prince já existia um conservatório, uma escola de Medicina, diversos estabelecimentos de instrução secundária, que o seu comércio era considerável e positivas as finanças públicas. Desta e doutras verificações, ele parte para o desempenho da colonização portuguesa: "E não nos impressiona a objecção de que civilisar os indígenas das nossas possessões d'Africa é o mesmo que eman-cipar essas colónias. Se ao mesmo tempo que educando o Negro tratarmos de aclimar o Branco onde isso for possível este será ainda por muito tempo um apoio seguro para nós. Mas dado que afinal a colónia se venha a emancipar — e esse é o destino de todas as colónias —, que devemos preferir: conserval-a estéril e improductiva como até agora, ou convertel-a em uma nação amiga, e mesmo irmã ao menos sob o ponto de vista da civi-lisação e dos costumes?"

Como é imaginável, este excepcional colono, autodidacta formado certa-mente no tempo em que viveu em Pernambuco, ainda numa época de plena escravatura dos negros levados de África para as minas, engenhos e planta-ções, fazia o contraponto da política colonial portuguesa vigente.

Pois o Haiti e outros territórios das Antilhas colonizados por espanhóis, holandeses, franceses, ingleses e norte-americanos, como Cuba, Martinica, Jamaica e Guiana, assumir-se-iam, no início do século XX, como faróis da luta dos negros de todo o mundo pela dignificação da Raça escravizada e oprimida durante quatro séculos, cujas vozes se fizeram ouvir em livros, revistas e congressos da América, de África e da Europa. Entre as primeiras, nenhum estudioso das literaturas do chamado Terceiro Mundo ignora quem foi Nicolás Guillén, de Cuba, Aimé Césaire e Frantz Fanon, da Martinica, Carlos Moore, da Jamaica, Léon Damas e René Maran, da Guiana, e Jacques Roumain e Jean Price-Mars, do Haiti.

A essas vozes se juntaram as de outros negros e mestiços das colónias de África (lembremos apenas a de Leopold Sédar Senghor, do Senegal, a mais audível na época, e no que toca a Angola, a de Agostinho Neto e Viriato da Cruz, já na segunda metade do século XX). Viriato evoca mesmo o libertador do Haiti, Toussaint, a par do Zumbi brasileiro, no seu poema Mamã Negra (Canto de Esperança), de 1961, e Neto já evocava Bamako, um poema feito depois da conferência panafricana realizada na capital do Mali, em 1954.

Refira-se que esta conferência antecedeu a que se realizaria, no ano seguinte, em Bandung (Java), reunindo 29 congressistas da África e Ásia. Foi denominada Conferência dos Povos Não Alinhados (só não participaram representantes de Israel, Coreia e África do Sul). Foi esta a primeira confe-rência dos países do Terceiro Mundo, na qual se exigiu a independência dos povos oprimidos e o respeito pelos direitos do homem. Presidida pelo pri-meiro-ministro da Índia, Nehru, pode compreender-se que foi a realização deste conclave que encorajou as primeiras investidas dos indianos contra a colónia portuguesa de Goa.

Nesse mesmo ano, numa palestra realizada na Sociedade de Geografia de Lisboa, para encerramento da Semana do Ultramar, Adriano Moreira clas-sificava Nehru, promotor da Conferência dos Não Alinhados, como "um velho e ressentido adversário da presença da raça branca na África e na Ásia", sustentando que "condenar todo e qualquer colonialismo, quer o colonialis-mo espaço-vital, quer o colonialismo missionário, é evidentemente uma po-sição racista contra os brancos, porque é justamente a presença dos brancos que terá de fazer-se terminar, para executar tal princípio."

Hoje, vendo a pobreza e a desgraça de um Haiti que deu ouro, diamantes, açúcar, algodão, tabaco e madeiras nobres à América e à Europa, contra si próprio e a favor de alguns, devemos pensar, a par dos louváveis impulsos emocionais, que toda a ajuda a dispensar ao seu povo de maioria negra e mestiça e de minoria branca é um imperativo da consciência da Humanidade face à Natureza e à História.

Sem comentários: