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via NOVA ÁGUIA de Klatuu o embuçado em 27/05/08
Um dos meus grandes projectos, sempre necessariamente inacabado, é arrumar a minha vida; quando me assalta esse desígnio vão, dou por mim a arrumar papéis e a trocar o lugar a livros. Fica tudo ainda mais desarrumado do que estava, como eu, como a minha vida, mas pelos corredores enegrecidos deste afã de Sísifo louco sou recompensado com descobertas inauditas; encontro e surpreendo-me porque me esqueci, porque me esqueci de mim, do que fui um dia, do que planeei e perdi, do que amei e me foi roubado.
Desta vez dei com um pequeno maço de folhas dactilografadas presas por um laço de tecido negro, amarelecidas qual vestígio de uma civilização antiga: eram as Folhinhas daquele senhor sem idade que voltou do Brasil e tocou a minha vida; as Folhinhas de Agostinho da Silva, muitas delas assinadas. São um tesouro: filosofia, religião, filosofia política, traduções de Heine, de Lenau, de Libai, viagens do sonho e da memória, poemas e um fundo, fundo amor pelos homens e pelos bichos, por África, pelo Brasil e por Portugal. Não existíamos ainda, gaiatos de faculdade que éramos, e então aquele senhor alto, seco, de palavras estranhas como um profeta, voltou de além Atlântico e iluminou as nossas vidas; ele enviava-nos as Folhinhas e nós devolvíamos-lhe o preço dos selos, um pouco mais que o preço dos selos – éramos idealistas e amávamos Portugal e queríamos aquele senhor com a idade dos avôs para sempre junto de nós – e assim o ajudávamos a sobreviver, abandonado que estava por tudo e por todos, menos pelo amor dos gatos e das crianças, ignorado por um Estado idiota e por uma Nação de labregos. Isto foi antes dos programas de televisão, do lambe-cú dos intelectuais auto-promovendo-se na moribundez adiada de Agostinho, do perdão do Estado e da devolução tardia do vencimento devido, das condecorações e da hipocrisia nojenta!
Vinham as Folhinhas e ia o dinheiro dos selos, um pouco mais que o dinheiro dos selos, e por vezes vinha o convite para uma conversa; saíamos para as ruas ao encontro do filósofo da lusofonia e do trans-nacionalismo, solenes, batalhão de jovens soldados do Espírito, orgulhosos do nosso patriotismo precoce e puro – ainda não havia nacionalismos psicóticos e o nome de Portugal não era grunhido nas ruas por traidores a soldo de umas alemanhas e umas américas que nem a Alemanha nem a América aceitam como suas. Vinham as Folhinhas, até pouco antes da morte.
Passaram os anos, o filósofo morreu; sonhámos ideias terríveis, jejuámos, esgrimimos, quisemos ver Agostinho a concorrer às Presidenciais – o Alferes da Pátria dissolveria o Parlamento, convocaria as Cortes, o Senhor D. Duarte voltaria ao Trono – e tornámo-nos uma espécie de apátridas voluntários.
Uma manhã, verde, verde, de nevoeiros sagrados, gritou dentro de nós um coração jovem, incorruptível e alto – e hoje temos que enfrentar o nojo destes dias com papéis mortos, entre as mãos lívidas e trémulas.
Viva Portugal! Viva Portugal! Viva Portugal!
Desta vez dei com um pequeno maço de folhas dactilografadas presas por um laço de tecido negro, amarelecidas qual vestígio de uma civilização antiga: eram as Folhinhas daquele senhor sem idade que voltou do Brasil e tocou a minha vida; as Folhinhas de Agostinho da Silva, muitas delas assinadas. São um tesouro: filosofia, religião, filosofia política, traduções de Heine, de Lenau, de Libai, viagens do sonho e da memória, poemas e um fundo, fundo amor pelos homens e pelos bichos, por África, pelo Brasil e por Portugal. Não existíamos ainda, gaiatos de faculdade que éramos, e então aquele senhor alto, seco, de palavras estranhas como um profeta, voltou de além Atlântico e iluminou as nossas vidas; ele enviava-nos as Folhinhas e nós devolvíamos-lhe o preço dos selos, um pouco mais que o preço dos selos – éramos idealistas e amávamos Portugal e queríamos aquele senhor com a idade dos avôs para sempre junto de nós – e assim o ajudávamos a sobreviver, abandonado que estava por tudo e por todos, menos pelo amor dos gatos e das crianças, ignorado por um Estado idiota e por uma Nação de labregos. Isto foi antes dos programas de televisão, do lambe-cú dos intelectuais auto-promovendo-se na moribundez adiada de Agostinho, do perdão do Estado e da devolução tardia do vencimento devido, das condecorações e da hipocrisia nojenta!
Vinham as Folhinhas e ia o dinheiro dos selos, um pouco mais que o dinheiro dos selos, e por vezes vinha o convite para uma conversa; saíamos para as ruas ao encontro do filósofo da lusofonia e do trans-nacionalismo, solenes, batalhão de jovens soldados do Espírito, orgulhosos do nosso patriotismo precoce e puro – ainda não havia nacionalismos psicóticos e o nome de Portugal não era grunhido nas ruas por traidores a soldo de umas alemanhas e umas américas que nem a Alemanha nem a América aceitam como suas. Vinham as Folhinhas, até pouco antes da morte.
Passaram os anos, o filósofo morreu; sonhámos ideias terríveis, jejuámos, esgrimimos, quisemos ver Agostinho a concorrer às Presidenciais – o Alferes da Pátria dissolveria o Parlamento, convocaria as Cortes, o Senhor D. Duarte voltaria ao Trono – e tornámo-nos uma espécie de apátridas voluntários.
Uma manhã, verde, verde, de nevoeiros sagrados, gritou dentro de nós um coração jovem, incorruptível e alto – e hoje temos que enfrentar o nojo destes dias com papéis mortos, entre as mãos lívidas e trémulas.
Viva Portugal! Viva Portugal! Viva Portugal!
Caros Amigos,
Vocês nem imaginam como me tem preocupado essa série de incidentes com imigrantes brasileiros. Como base fundamental há o meu sentimento de que sou multinacional, isto é, por ordem alfabética, brasileiro, com minha capital em Itatiaia, mesmo no cimo de seu pico de montanha, e subindo de preferência pelo túnel, lugar bravio e apaixonante, onde comecei a aprender alguma filosofia com o grande mestre que foi, pelo que sabia e pelo que era como pessoa, o grande mestre Vicente Ferreira da Silva.
Por minha mãe, que lá ficou, e por família, e por amigos que família me são, moçambicano, sendo a capital que lhe sonho, como centro pensador de todo o Índico e de vária África interior, a extraordinária Ilha de Moçambique, moradia de poetas que só tem rival na ponta leste de Timor, e eu sempre com lembrança de sua aldeia indígena e dos monumentos e dos contactos com muçulmanos.
Por fim, solidamente de Portugal, o do Porto, onde nasci, modelo de municípios, mas com avós pescadores algarvios e soldados alentejanos, sendo nele minha capital a velha Barca de Alva, a Alva que ainda está por surgir, e que me educou, fui para ela bem pequeno, a ser de aldeia do interior, pão uma vez por semana, e me ensinou a ler com a perna atada à mesa para não fugir a ver lagarto e cobra, muito mais interessantes que o livro da terrível obrigação. De lá, saudades de montes escalvados e do Pereira ferroviário, do tempo em que o comboio nos levava a Salamanca ou nos trazia espanhóis que vinham à festa do «hornazo».
Nítida recordação da cheia do Douro de 1910, que deu como nome de baptismo a uma Amiga minha o de Crescença de Deus, que acho ser o único a poder bater-se com o de outra Amiga minha, a Generosa do Céu; e com a imagem de Junqueiro, de sobretudo mal alinhado, à espera na estação do início de uma das suas viagens de coleccionador antiquário, quem sabe se mais profundo que poeta e republicano.
Quando Portugal manda embora um brasileiro está-se expulsando a si próprio, àquele que embarcou para o Brasil e levou, no navio de Cabral, uma Trindade Portuguesa, levando consigo o Culto do Divino, que se projecta para o futuro, criando o primeiro modelo do que vai ser um mundo de todas as raças e todas as culturas, para que um dia rompa uma cultura verdadeiramente humana. E com firme vontade de realizar através de todas as dificuldades aquilo que projectou.
Mas a verdade é que Portugal está, às vezes, de mau humor, porque a lei é estrangeira e violenta, a cumprir os deveres que tomou, quando voluntariamente, talvez por solidariedade, talvez por gosto de convivência, ingressou numa Europa Comunitária que, ao que parece, ainda se julga dona daquilo a que chamou Terceiro Mundo. É contra isto que o Brasil deve revoltar-se, não contra quem respeita a lei. Adiante se irá. E pode ser que um dia seja o Brasil, com Portugal, guia do mundo, guia do sonho.
Folhinha do Crescente de Lua da primeira semana de Fevereiro de 1993.
Queridos Amigos,
Ouçam então, que a história é simples. Há uns quinhentos ou seiscentos anos fomos expulsos de Portugal, por desagradarmos a Reis mais interessados na Europa do que na Península e a Papas para os quais o que ia importar era o movimento das Descobertas, que fomos expulsos e proibidos de voltar, dizia eu, todos os que éramos felizes com a ideia de que no futuro, o da Era do Espírito Santo, da plenitude de Deus, em sua fusão com o que criara, estaríamos em êxtase diante do Divino que em tudo de concreto íamos ver, sem que, no entanto, deixasse Seu outro Reino do abstracto.
Todos os Meninos seriam então os primeiros dos homens verdadeiramente inspirados, dedicados ao mundo, como aquele que, na Trindade que Cabral levou ao Brasil, a de Belmonte, está no braço da Criatividade Suprema dando de comer à pomba, isto é, ajudando à sacralização do Universo. A vida ficaria gratuita, com símbolo na comida gratuita do dia da Festa.
Finalmente desapareceriam as prisões e estariam libertos seus presos e seus guardas. Só que aquela extraordinária linha de costa que definia Portugal, não uma simples praia para um mar, mas inteiro litoral para um interminável Oceano, era o ponto donde partir à conquista do que não tomara no período clássico aquele Império Romano que teria, portanto, de abordar todas as terras. Navegação esta que foi proeza dos Portugueses, mas não a que teria sido mais importante, a daqueles que, como missionários, teriam implantado em todo o mundo o Reino do Espírito Santo.
Entretanto, guardados no Brasil para o futuro, tinham feito todas as tentativas para chegarem ao Pacífico, mas não como Magalhães, demasiado servidor da Europa. Até Pedro Teixeira o quis, mas já era tarde, com a força espanhola instalada nos planaltos. O tempo dessa navegação, última e perfeita, chegou agora e de alguma parte dela talvez nos traga informe alguma destas Folhinhas para que tendes paciência.
Lua Luar dum Maio de 93.
Um bilhetinho de vosso irmão servidor.
Brasil e China se encontrarão na África, vindo um pelo lado do Atlântico de São Tomé, chegando a outra, depois de Índias e Índico, à ilha que foi outrora capital de Moçambique e será, daí por diante, capital de toda a vaga que se levante no Mar das Índias e de todas as terras que ele, como experiência ou sonho, de algum modo animar. Será, de ambos os povos que vêm, uma invasão de oferta, de solidariedade e de aprendizagem própria. O Brasil trará às Africas do melhor que tiver aparecido na América ou na Europa, não daquilo que serviu no passado para abater e explorar. Também com o que vier do Oriente, com sua economia de produzir e distribuir com igualdade, tudo apurado ainda na travessia que teve de fazer da velha Rússia para chegar ao Atlântico Norte, erguerá a África ao universo uma face livre e nova, com este também iluminado naquela atmosfera de alma que virá de se terem fundido o Taoismo de Lao-tsu e o Franciscanismo do jovial criador de Assis. O mundo, discípulo de África, mestra do ser e do fazer, lhe será fiel e, num fim que se repetirá, a Transporta à criatividade pura, em que cada um de nós mergulhará, ainda porventura com a perfeita paz de não termos consciência do que fomos criando. E talvez, de quando em quando, outro irmão servidor vos diga que assim realizaram o seu ideal, e para tudo o que vive, os portugueses de tempo antigo que só ansiavam pelo êxtase eterno perante o Divino, de existência a um tempo real e imaginária, com o triunfo de toda a Poesia que a criança é ao nascer e a liberdade que será para todos e o gratíssimo prazer de uma vida que não será paga, mas de força criada e de amor gozada.
[rubricado]
Amigos,
Estamos ainda bem longe, talvez a séculos, de que tal suceda, mas um dia se verificará que, depois de tanto tempo, de tanta geração de colonialismos, quer os de potências europeias, quer os de força islâmica, quer os de internacionais entidades americanas, foi a África restituída a si própria pela obstinada, calma, paciente e exigente influência do Brasil e da China, com alguma velha semente ibérica deixada num ponto ou outro do Magrebe, sobretudo, diria eu, no Marrocos ou naquela embaixada que no Cairo pensava em expedições etíopes, e com o Brasil do lado de Angola, a meditar das varandas de São Tomé, no redesenho dos mapas latinos ou germânicos da distribuição pelos novos donos da infinda pluralidade única daquelas novas terras, e a China das bandas de Moçambique, aí com a tarefa algum tanto facilitada, ou guiada, pela tradição do acertado império do Monomotapa. E quando diremos que a África está reentregue a si mesma?
Quando se ouvir ou se souber de algum africano que propôs acrescentos a Einstein ou reprovou Kant na língua que em pequeno falava com sua mãe, sem ter feito o esforço antibiológico de ter de se exprimir noutra língua, de preferência numa do domínio indo-europeu. E na dita língua materna ensinando ao resto do mundo muita coisa que ainda precisa de aprender, com ligação a um correcto comportamento social e solidário. E livre. Mas qual a atitude enquanto se espera? Pois a de achar que ainda se está distante e, ao mesmo tempo, que tudo já aconteceu. O trabalho vai ser o de, sem falta alguma, que ainda está distante o que já aconteceu, juntar a face do adquirido com a face do ambicionado. Querem um exemplo? Pois lembro o que acontecia com os Portugueses que, desrespeitando Tordesilhas e a pontifícia autoridade, iam fazendo mapa falso sobre mapa falso, sabendo que ainda tinham muito que andar, mas, simultaneamente que já descansavam à beira do Pacífico que sempre se lhes negou. Mas o Brasil lá chegará e com inteira obediência à lei com que todos os Povos estejam de acordo. Sabeis o resumo? Ser e não ser são a chave do Ser.
Minguante de Maio. Maio de 93. Ou de qualquer ano em que a tal se volte.
Agostinho
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