via Jacarandá de noreply@blogger.com (António Barreto) em 23/08/09
QUANDO OS ORGANIZADORES deste congresso (*) me convidaram a participar, a minha resposta foi rápida e afirmativa. Além da personalidade dos editores em causa, a palavra "livro" bastava. Só mais tarde, depois de os ouvir e de ver o programa de trabalhos, tive uma sensação estranha, confirmada, aliás, por artigos publicados em jornais e nos quais se fazia uma espécie de radiografia económica de um moribundo: o sector do livro. A estranha sensação resume-se em poucas palavras: será que vamos festejar um animal em vias de extinção? Será que o livro, o editor, o livreiro, para não dizer o escritor, cabem nessa designação? Não seria surpresa total, neste mundo em que as catástrofes se sucedem, da camada de ozono às pegadas de dinossauro, das espécies vegetais ameaçadas pelas auto-estradas às gravuras paleolíticas ou ao simples artesanato.
Depressa me convenci que a sensação era passageira. O livro veio, há muito, para ficar. E nada o retirará da nossa vida em comum. Vivemos, isso sim, uma transição difícil, na qual as reconversões são penosas e as mortes inevitáveis. Não só os editores e os livreiros terão de mudar, mas também os escritores e os leitores. Quer dizer, é o livro que está em mudança. E mudará tanto melhor, quanto soubermos fazer o novo e guardar o essencial.
Sei que não sou particularmente conhecido pelo meu optimismo. Por isso quase me sinto obrigado a argumentar a favor do que acabo de dizer. É muito simples: atrás de tudo, ou depois de tudo, está um livro. Antes e depois da música, do cinema, da televisão, da arquitectura, da pintura, da informação e da ciência da natureza, está um livro.
Se um espírito mau destruísse, por atacado ou sector por sector, toda a pintura, toda a arquitectura, todos os monumentos, toda a música, toda a ciência, toda a arte militar... Tudo, menos o livro. Se isso acontecesse e diante do desastre, talvez fosse possível tudo reconstruir, com o livro. Seriam cópias, é certo, nada seria exactamente como dantes, mas tudo recomeçaria. Graças ao livro. Ficaríamos mais pobres. E perderíamos uma parte da nossa humanidade. Mas nada seria irreparável. Pela simples razão de que tudo estava nos livros. Através do livro, seria possível recomeçar. Ou reproduzir.
Ora, se o mesmo espírito mau destruísse todos os livros do mundo, é bem provável que a humanidade não conseguisse recomeçar. Nem talvez sobreviver, tal como a conhecemos. Do livro, temos tudo a esperar, a novidade e a tradição. A descoberta e o património. A conservação e a inovação. Não foram os livros que transformaram o mundo, nem que o organizaram. Mas aqueles que o conseguiram, fizeram-no também por intermédio do livro. Nem sempre para melhor, mas, quando foi para o pior, livros houve que ajudaram depois a humanidade a corrigir.
O que é imperecível vem nos livros. Como nos dizia, há cerca de meio século, Alain Resnais, no seu "Tout le savoir du monde", sobre o labirinto de cultura que era a Bibliothèque Nationale de Paris. E até o "Mapa do Genoma Humano", um prodígio dos computadores, vai acabar em livro, talvez o mais longo e secreto livro do mundo. Nem as pedras ou a terra, muito menos os cofres, garantem este jeito imorredoiro do espírito humano. Não acredito pois que o livro esteja em vias de extinção. Enquanto houver humanidade, livros haverá. Não pelo fetiche que uns adoram, não pelo cheiro que alguns referem, não pelo manuseamento que outros citam, não pela lombada de que tantos gostam, não pela estante que muitos exibem, mas simplesmente pelo espírito que os fez e pelo espírito que os procura.
Se não está em vias de extinção, por que razão há alarme e inquietação? A resposta parece simples. Porque as modas actuais contrariam a tradição do livro. Porque as economias não se compadecem com esta estranha criatura. Porque a mercadoria se sobrepõe à obra de arte. Porque a rapidez da vida quer eliminar o tempo de leitura. Porque o efémero combate o duradoiro do livro. E até porque muitos que deveriam ser amigos do livro se revelam ser seus adversários. Daqui resultam as crises de produção, de distribuição e de consumo do livro. Mas também as de concepção e de leitura.
Tanto quanto percebo, não há, em Portugal, entendimento quanto às estatísticas do livro. Os números privados e os públicos estão longe de coincidirem. E não há estatísticas credíveis de venda e de consumo. Teremos de nos ficar pelos indicadores de produção. De qualquer modo, seguindo os meus dados, é possível detectar uma tendência de médio a longo prazo: gradual aumento do número de títulos editados (originais portugueses e traduções), mas, mau grado uns acréscimos marginais, uma relativa estagnação das tiragens totais, num contexto de permanente aumento de custos. Nos últimos anos, teríamos atingido valores da ordem dos dois a três volumes editados anualmente por habitante (eu disse volumes, não disse títulos). Dois a três! É pouco, muito pouco. É menos do que em qualquer outro país europeu. Mas, embora isso não seja uma consolação, não é apenas um problema da edição de livros. Com efeito, se olharmos para os restantes indicadores de cultura (tanto na produção como no consumo), verificaremos uma situação semelhante.
O primeiro paralelo a estabelecer é, evidentemente, com a imprensa, os jornais e restantes periódicos. Estamos, em relação à Europa, atrasados várias décadas, muitas décadas. Pior ainda: não creio que estejamos apenas atrasados, dado que essa ideia poderia implicar que fosse possível, com tempo, cobrir a distância, recuperar o atraso, como tal se tenta fazer nos rendimentos ou na escolaridade. Na verdade, por várias razões, algumas delas controversas, fazemos parte de uma classificação diferente. Os portugueses lêem menos jornais e periódicos do que qualquer país da União. Cinco a dez vezes menos, conforme os países. E tenhamos consciência de que as chamadas taxas de leitura desses países já eram o que são hoje há várias décadas. Tal como as portuguesas. Quer isto dizer que se pode quase admitir que existe um patamar de leitura de imprensa e de livros que o crescimento económico não parece conseguir elevar. Em muitos sectores, os portugueses recuperam atrasos ou, melhor dizendo, encurtam a distância que os separa de outros povos. Mas tal não é o caso quando olhamos para a leitura e a circulação de livros e periódicos.
Como sabem, diversas são as razões evocadas para este fenómeno. O analfabetismo crónico é uma explicação. O elevado preço dos livros e dos jornais será outra. O catolicismo oral e mediado pelo sacerdote, em oposição ao protestantismo sem sacerdote e de leitura bíblica, é também recordado. A tão precoce unidade nacional, a homogeneidade étnica e cultural e a unicidade linguística são ainda citadas como responsáveis pelo analfabetismo, ou antes, pela não necessidade de alfabetização. A pobreza geral, a industrialização tardia e a urbanização lenta poderão também ser referidos. A falta de esclarecimento das autoridades políticas e dos dirigentes nacionais poderá ter contribuído para esta situação, bastando recordar que, há menos de cinquenta anos, se discutia ainda, na então Assembleia Nacional, os méritos da alfabetização em oposição às virtudes da ignorância e aos perigos e ameaças que espreitavam ao virar da esquina de um tímido esforço de escolarização.
Os estudos e as investigações que conheço não concordam com a influência predominante de um destes factores. Historiadores há que têm demonstrado que o factor A ou B não é responsável pelo analfabetismo, dado ser fácil encontrar, em regiões portuguesas ou estrangeiras, demonstrações contrárias. Mas é possível que todos aqueles factores tenham desempenhado uma função. O mais estranho é que, com a escolarização universal, com o crescimento económico (pujante nos anos sessenta, sólido a partir de então), com a abolição de todas as censuras, com a fundação do Estado democrático e com a competição partidária por políticas activas de promoção da cultura (do livro e do jornal), não tenhamos assistido a uma evolução nitidamente ascendente dos indicadores de leitura.
A todas aquelas razões enunciados, quero acrescentar uma hipótese que observações superficiais confirmam, mas de cuja veracidade podemos sempre desconfiar. A leitura de livros e de jornais é um hábito, uma necessidade cultural e uma exigência profissional, relativamente independente dos níveis de desenvolvimento económico. Por outras palavras, a leitura de livros e de jornais, durante os séculos XIX e XX, não aumenta necessariamente com o Produto Nacional Bruto. Nem nas mesmas proporções que a alfabetização e a escolarização. As comparações entre Portugal, a Espanha, a Grécia e o Sul da Itália sugerem uma evolução muito diferenciada, não proporcional ou não ligada às taxas de crescimento económico e de escolarização. Quer isto dizer que há factores explicativos, designadamente históricos, que podem influenciar de modo determinante os níveis de leitura.
No caso português, para retomar a minha hipótese de trabalho, quando foram atingidos níveis razoáveis de escolaridade e quando as taxas de analfabetismo começaram a descer abaixo dos 40 a 50 por cento, já existiam a rádio e sobretudo a televisão. Para a maioria dos portugueses, a palavra escrita nunca foi a principal fonte de informação cultural, profissional, quotidiana, familiar ou política. A televisão instalou-se em Portugal e cobriu o território antes de a escola o ter conseguido. A partir dos finais dos anos cinquenta, a televisão passou a ser um factor de unificação cultural dos portugueses mais poderoso e eficiente do que a escola. Até porque esta não compreendia os adultos ou os idosos e apenas acolhia as crianças e os adolescentes, nem sequer todos, durante um muito curto período de tempo. Desde então, consolidou-se o lugar da televisão como fonte primordial de informação (e de entretenimento e de consumo cultural), sem que nunca antes a leitura de livros e de periódicos se tivesse generalizado ao país, às regiões e às classes sociais. A leitura de jornais e de livros nunca foi, em Portugal, uma actividade de massas, nem sequer das classes médias.
Ficarmo-nos por aqui seria fonte de equívocos. Os indicadores de leitura e de produção de texto escrito não são uma mácula única na sociedade portuguesa. Com efeito, têm como paralelo imediato todas as outras actividades culturais, tanto do lado do consumo, como no da produção. A frequência de museus, de teatros e de cinemas, a circulação de jornais e periódicos, o consumo de discos e de vídeos, a encenação de peças de teatro, a realização de concertos de música clássica, a produção de espectáculos de ópera e a consulta de livros em bibliotecas públicas: em todos estes indicadores, Portugal tem um seguro último lugar. Sendo todavia certo que a evolução de cada indicador tem o seu significado próprio. O cinema, por exemplo, depois de um longo decréscimo de décadas, conhece recentemente uma recuperação curiosa. A ópera mantém-se a níveis muito reduzidos, com um público que parece ser constante, para não dizer o mesmo, ao longo dos tempos. O teatro está em decréscimo geral. A música clássica em ligeiro aumento. E a frequência de bibliotecas encontra-se quase sem alteração, enquanto as visitas aos museus aumentaram consideravelmente nas últimas décadas. Assim é que a leitura, em Portugal, sempre em crise séria de reduzida produção, de mercado estreito e de público muito seleccionado, tem paralelos. Uma vez mais, não se trata de consolação, mas apenas de um esforço para ter uma visão mais larga.
Retomemos a relação entre o desenvolvimento económico, a alfabetização e a escolarização, por um lado, a leitura de livros e de jornais, por outro. O que acima disse parece traduzir-se na afirmação de que não existe qualquer relação entre os fenómenos citados. Nada menos verdade. Com efeito, sem correlações sofisticadas, é possível estabelecer o paralelismo: os países mais desenvolvidos economicamente são os que exibem níveis superiores de escolarização. Também são aqueles em que se lêem mais livros e se imprimem e lêem mais jornais. Basta recordar, por exemplo, que, em Portugal, a população dos 20 aos 60 anos que completou pelo menos a escola secundária (22%) é cerca de metade do que se verifica em Espanha e na Itália; menos de metade da Grécia e da Irlanda; e um terço ou um quarto dos restantes países europeus! E a população portuguesa que tenha completado um curso superior (9%) é de um terço da maioria dos países europeus e cerca de metade da Grécia e da Espanha. Ora, em qualquer destes países se lê mais do que em Portugal. Parece pois possível admitir-se que existe alguma correlação entre o grau de escolaridade e a apetência pela leitura.
Nesta altura da minha exposição, parece haver séria contradição. Ainda há pouco vos convidava a acreditar que talvez não houvesse uma relação clara e automática entre desenvolvimento económico, escola e leitura. Agora, acabo de afirmar o contrário. Eis que necessita de esclarecimento. Numa perspectiva geral, histórica e comparativa, não duvido que exista esta correlação. Sendo que, por acréscimo, não nos devemos limitar ao rendimento por habitante e aos anos de escolaridade. Muitos outros factores intervêm, como a religião, os regimes políticos, a composição étnica das populações, assim como as suas tradições culturais e linguísticas. E até as necessidades industriais e militares tiveram uma influência nos graus de literacia.
Esta perspectiva, todavia, pode não encontrar tradução automática em situações particulares, designadamente em curtos períodos de poucas décadas e muito especialmente quando se olha para um só país, comparando-o consigo próprio. Como é o caso de Portugal. O progresso da educação começou a tornar-se evidente, quanto mais não seja do ponto de vista quantitativo, a partir do fim dos anos cinquenta, princípio dos sessenta. Esta última década será a da expansão acelerada do sistema educativo. Não ainda suficiente, não universal, mas a ritmo bem superior aos anos anteriores. Algumas mudanças políticas ajudaram. Mas também a pressão da indústria e dos serviços a fazer-se sentir. A guerra colonial e as necessidades militares também contribuíram para o fomento da instrução. E o que permitiu este processo foi o crescimento económico desse período, inédito na história do país, aliás também não repetido depois. A partir daí, todas as forças impeliram a educação e a escolaridade: a indústria e os serviços, os investimentos externos, a pressão das novas classes médias em crescimento e uma nova consciência política emergente. A revolução de 1974, o sistema democrático, a competição eleitoral, a abertura cultural e a consciência dos novos direitos sociais fizeram o resto. Até finais da década de oitenta, tinha-se atingido a escolarização universal e a frequência do ensino superior conhecia um fenómeno muito parecido com a explosão.
Ora bem, se prestarmos atenção aos números e aos indicadores, a circulação da imprensa escrita, a produção livreira e a leitura em geral não tiveram uma evolução comparável ou proporcional. Registam-se alguns acréscimos, mas insignificantes. E aqui teríamos, em linhas gerais, não a excepção portuguesa, mas a maneira particular como, em espaço limitado e em tempo reduzido, um processo pode contrariar a que será a tendência geral. Já sugeri uma explicação, uma entre outras, para este fenómeno. O tempo histórico em que se realizaram a alfabetização e a escolarização da população marcou a sua especificidade. Na concorrência com outros meios de comunicação e informação de massas, para os quais a literacia não era necessária, o texto escrito ficou a perder. Se a alfabetização dos portugueses tivesse sido levada a cabo duas ou três décadas antes, talvez os hábitos de leitura fossem hoje diferentes. Eis uma conjectura para a qual não tenho qualquer demonstração.
Avancemos um pouco mais. A explicação da televisão e dos meios de comunicação de massa pode ser verdadeira. Mas não será certamente a única. Creio que haverá outros factores. Um deles será o método pedagógico em vigor ao longo destas últimas décadas, justamente aquelas em que se processou o crescimento quantitativo fenomenal do sistema educativo. Método pedagógico, por um lado; mas também a natureza ou o carácter da escola que se pretende construir desde então. É minha convicção que a escola, tal como se tem desenvolvido nos tempos recentes, contraria explícita e deliberadamente o hábito e a necessidade da leitura.
A escola actual resulta em grande parte da crítica severa que foi feita à educação do "antigo regime", à portuguesa, e, noutra acepção, do "ancien régime". A severidade, as punições físicas, o culto da erudição, a repressão, o primado da memória sobre a compreensão e a inteligência, o elitismo e o carácter classista da instituição, dos programas e dos métodos foram sistematicamente escalpelizados. Fez-se, durante anos, a crítica da "educação livresca" (reparem bem, "livresca"...). Assim como se fez a apologia da "escola para a vida", da "escola para a vida prática". As escolas que temos hoje resultam em boa parte dessa crítica, por vezes justa. Mas a alternativa, hoje reinante, não está isenta de defeitos graves. O princípio do "prazer de aprender" substituiu o do esforço e do trabalho. A "vida prática" e os utensílios imediatos para a sobrevivência afastaram a ideia de que existe um património cultural da humanidade que importa conhecer. A "cultura popular" e a "sabedoria do povo" denegriram e combateram a erudição. A chamada "alta cultura" foi considerada um malefício da história. Instaurou-se uma espécie de "hedonismo educativo" tendente a demonstrar que o divertimento e as actividades lúdicas eram melhores instrumentos de aprendizagem do que o sacrifício, o treino e a concentração. Apesar do poder intimidante que esta ortodoxia, como todas as outras, exerce sobre as consciências, os resultados destas novas modas são hoje visíveis e têm já sido objecto de observação. Os progressos da educação nem sempre são progressos de literacia. O crescimento das escolas e da escolarização não tem dado resultados proporcionais para a cultura e o conhecimento. O desperdício de recursos e de energias que tem representado esta nova orientação pedagógica e educativa é incalculável. Com a água do banho, deitou-se fora a banheira e o bebé.
O livro foi uma das principais vítimas desta nova escola. Todo o sistema educativo parece hoje concebido para reduzir ao mínimo a consulta do livro. Pela profusão de imagens e de fórmulas coloridas, os próprios manuais escolares fazem um esforço para se parecer cada vez menos com livros; e, pela arte das citações simplificadas e simplistas, para os substituir. Elogiam-se os métodos de ensino que dispensam o livro, das brincadeiras aos passeios, dos trabalhos de grupo aos projectos, sem falar nos resumos fotocopiados. Apresenta-se o computador como um sucedâneo do livro. Isenta-se qualquer aluno da leitura morosa e concentrada. Chega a lançar-se o anátema contra os trabalhos de casa, de que a leitura de livros faz parte essencial. Depois de se ter considerado, justamente, que a posse de livros e a existência de bibliotecas em casa da família eram traços de desigualdade, quase se concluiu que um ensino sem livros era a melhor maneira de combater essa desigualdade! Fez-se do livro um objecto arqueológico de atávicas reminiscências, a fazer pensar no pior de uma organização opressiva e repressiva.
É nesse sentido que digo que a escola moderna é o pior inimigo do livro. Porque é esta escola que dá legitimidade a uma educação que dispensa o livro. Porque é esta escola que transformou o livro num objecto de cultura de elite. E porque é esta escola que afirma que a educação democrática se pode fazer sem livros e sem esforço. Poderão dizer-me que confio excessivamente nas virtudes da escola e da educação. Tal como fazem milhões de compatriotas nossos que, diante de problemas difíceis, das filas de espera na saúde aos acidentes de automóvel, da limpeza das ruas ao consumo da droga, da evasão fiscal ao serviço militar obrigatório, não se coíbem de nos garantir que a solução está na escola e na reforma de mentalidades! Não! Não penso isso, nem gosto de confiar excessivamente na educação. E sei que a mentalidade é a última coisa a mudar. Não tenho a certeza que uma escola como a entendo seja um factor de expansão fenomenal da leitura. Mas creio firmemente que não seria, como é actualmente, um factor de aversão à leitura.
Acontece que uma escola sem livros, que admito perfeitamente poder existir, é uma escola desumana e de desprezo pelo património cultural e científico da humanidade. É uma escola que, a pretexto de igualdade social, provoca mais desigualdade, pois que faz do livro um bem de casta e um hábito de elite. E é sobretudo uma escola que, a pretexto do combate contra a "cultura livresca", legitima esta detestável forma de ignorância. Será preciso recordar que um ministro da educação, convidado a participar numa iniciativa organizada por editores, perguntou, perplexo: "Mas que tem o ministério da educação a ver com isso?". Ou será preciso recordar uma visita que fiz, há meia dúzia de anos, a uma das mais modernas e exemplares escolas portuguesas, que figura aliás na lista das melhores que se exibem aos organismos internacionais? Durante a visita da escola inaugurada há pouco mais de um ano, vi salas de recreio fantásticas, dezenas de computadores, auditório de cinema, excelente cantina, salas de estudo e gabinetes de professores. E uma quase luxuosa biblioteca, sem um único livro! A directora, interrogada, respondeu sem inquietação: "O dinheiro não chegou para os livros!". Mais do que a fotocópia ou o computador, mais do que a televisão ou a discoteca, a escola é, para mim, o principal inimigo do livro.
E, no entanto, o livro está por trás de toda a cultura da humanidade. De toda a ciência. De todo o inconformismo. De toda a criação. Poderá o artista, o cientista ou o político exprimir-se de outro modo que não seja o da escrita. Poderão aprender com mestres e com viagens. Poderão tirar da observação e da experiência o essencial da matéria-prima e dos fundamentos do seu trabalho. E poderão recorrer incessantemente às novas tecnologias de informação. Mas não duvido um segundo de que uma parte essencial da sua inspiração, da sua formação e da sua humanidade vem dos livros; nem de que para lá irá uma parte não menos essencial da sua criação.
Apesar de ser uma espécie de escritor compulsivo e de quase todos os dias ter de escrever qualquer coisa, linhas ou parágrafos, apesar disso, permitam-me terminar citando alguém, o autor de "Uma história da leitura", Alberto Manguel: não me é difícil imaginar que poderia viver sem escrever, mas não creio que poderia viver sem ler.
Depressa me convenci que a sensação era passageira. O livro veio, há muito, para ficar. E nada o retirará da nossa vida em comum. Vivemos, isso sim, uma transição difícil, na qual as reconversões são penosas e as mortes inevitáveis. Não só os editores e os livreiros terão de mudar, mas também os escritores e os leitores. Quer dizer, é o livro que está em mudança. E mudará tanto melhor, quanto soubermos fazer o novo e guardar o essencial.
Sei que não sou particularmente conhecido pelo meu optimismo. Por isso quase me sinto obrigado a argumentar a favor do que acabo de dizer. É muito simples: atrás de tudo, ou depois de tudo, está um livro. Antes e depois da música, do cinema, da televisão, da arquitectura, da pintura, da informação e da ciência da natureza, está um livro.
Se um espírito mau destruísse, por atacado ou sector por sector, toda a pintura, toda a arquitectura, todos os monumentos, toda a música, toda a ciência, toda a arte militar... Tudo, menos o livro. Se isso acontecesse e diante do desastre, talvez fosse possível tudo reconstruir, com o livro. Seriam cópias, é certo, nada seria exactamente como dantes, mas tudo recomeçaria. Graças ao livro. Ficaríamos mais pobres. E perderíamos uma parte da nossa humanidade. Mas nada seria irreparável. Pela simples razão de que tudo estava nos livros. Através do livro, seria possível recomeçar. Ou reproduzir.
Ora, se o mesmo espírito mau destruísse todos os livros do mundo, é bem provável que a humanidade não conseguisse recomeçar. Nem talvez sobreviver, tal como a conhecemos. Do livro, temos tudo a esperar, a novidade e a tradição. A descoberta e o património. A conservação e a inovação. Não foram os livros que transformaram o mundo, nem que o organizaram. Mas aqueles que o conseguiram, fizeram-no também por intermédio do livro. Nem sempre para melhor, mas, quando foi para o pior, livros houve que ajudaram depois a humanidade a corrigir.
O que é imperecível vem nos livros. Como nos dizia, há cerca de meio século, Alain Resnais, no seu "Tout le savoir du monde", sobre o labirinto de cultura que era a Bibliothèque Nationale de Paris. E até o "Mapa do Genoma Humano", um prodígio dos computadores, vai acabar em livro, talvez o mais longo e secreto livro do mundo. Nem as pedras ou a terra, muito menos os cofres, garantem este jeito imorredoiro do espírito humano. Não acredito pois que o livro esteja em vias de extinção. Enquanto houver humanidade, livros haverá. Não pelo fetiche que uns adoram, não pelo cheiro que alguns referem, não pelo manuseamento que outros citam, não pela lombada de que tantos gostam, não pela estante que muitos exibem, mas simplesmente pelo espírito que os fez e pelo espírito que os procura.
Se não está em vias de extinção, por que razão há alarme e inquietação? A resposta parece simples. Porque as modas actuais contrariam a tradição do livro. Porque as economias não se compadecem com esta estranha criatura. Porque a mercadoria se sobrepõe à obra de arte. Porque a rapidez da vida quer eliminar o tempo de leitura. Porque o efémero combate o duradoiro do livro. E até porque muitos que deveriam ser amigos do livro se revelam ser seus adversários. Daqui resultam as crises de produção, de distribuição e de consumo do livro. Mas também as de concepção e de leitura.
Tanto quanto percebo, não há, em Portugal, entendimento quanto às estatísticas do livro. Os números privados e os públicos estão longe de coincidirem. E não há estatísticas credíveis de venda e de consumo. Teremos de nos ficar pelos indicadores de produção. De qualquer modo, seguindo os meus dados, é possível detectar uma tendência de médio a longo prazo: gradual aumento do número de títulos editados (originais portugueses e traduções), mas, mau grado uns acréscimos marginais, uma relativa estagnação das tiragens totais, num contexto de permanente aumento de custos. Nos últimos anos, teríamos atingido valores da ordem dos dois a três volumes editados anualmente por habitante (eu disse volumes, não disse títulos). Dois a três! É pouco, muito pouco. É menos do que em qualquer outro país europeu. Mas, embora isso não seja uma consolação, não é apenas um problema da edição de livros. Com efeito, se olharmos para os restantes indicadores de cultura (tanto na produção como no consumo), verificaremos uma situação semelhante.
O primeiro paralelo a estabelecer é, evidentemente, com a imprensa, os jornais e restantes periódicos. Estamos, em relação à Europa, atrasados várias décadas, muitas décadas. Pior ainda: não creio que estejamos apenas atrasados, dado que essa ideia poderia implicar que fosse possível, com tempo, cobrir a distância, recuperar o atraso, como tal se tenta fazer nos rendimentos ou na escolaridade. Na verdade, por várias razões, algumas delas controversas, fazemos parte de uma classificação diferente. Os portugueses lêem menos jornais e periódicos do que qualquer país da União. Cinco a dez vezes menos, conforme os países. E tenhamos consciência de que as chamadas taxas de leitura desses países já eram o que são hoje há várias décadas. Tal como as portuguesas. Quer isto dizer que se pode quase admitir que existe um patamar de leitura de imprensa e de livros que o crescimento económico não parece conseguir elevar. Em muitos sectores, os portugueses recuperam atrasos ou, melhor dizendo, encurtam a distância que os separa de outros povos. Mas tal não é o caso quando olhamos para a leitura e a circulação de livros e periódicos.
Como sabem, diversas são as razões evocadas para este fenómeno. O analfabetismo crónico é uma explicação. O elevado preço dos livros e dos jornais será outra. O catolicismo oral e mediado pelo sacerdote, em oposição ao protestantismo sem sacerdote e de leitura bíblica, é também recordado. A tão precoce unidade nacional, a homogeneidade étnica e cultural e a unicidade linguística são ainda citadas como responsáveis pelo analfabetismo, ou antes, pela não necessidade de alfabetização. A pobreza geral, a industrialização tardia e a urbanização lenta poderão também ser referidos. A falta de esclarecimento das autoridades políticas e dos dirigentes nacionais poderá ter contribuído para esta situação, bastando recordar que, há menos de cinquenta anos, se discutia ainda, na então Assembleia Nacional, os méritos da alfabetização em oposição às virtudes da ignorância e aos perigos e ameaças que espreitavam ao virar da esquina de um tímido esforço de escolarização.
Os estudos e as investigações que conheço não concordam com a influência predominante de um destes factores. Historiadores há que têm demonstrado que o factor A ou B não é responsável pelo analfabetismo, dado ser fácil encontrar, em regiões portuguesas ou estrangeiras, demonstrações contrárias. Mas é possível que todos aqueles factores tenham desempenhado uma função. O mais estranho é que, com a escolarização universal, com o crescimento económico (pujante nos anos sessenta, sólido a partir de então), com a abolição de todas as censuras, com a fundação do Estado democrático e com a competição partidária por políticas activas de promoção da cultura (do livro e do jornal), não tenhamos assistido a uma evolução nitidamente ascendente dos indicadores de leitura.
A todas aquelas razões enunciados, quero acrescentar uma hipótese que observações superficiais confirmam, mas de cuja veracidade podemos sempre desconfiar. A leitura de livros e de jornais é um hábito, uma necessidade cultural e uma exigência profissional, relativamente independente dos níveis de desenvolvimento económico. Por outras palavras, a leitura de livros e de jornais, durante os séculos XIX e XX, não aumenta necessariamente com o Produto Nacional Bruto. Nem nas mesmas proporções que a alfabetização e a escolarização. As comparações entre Portugal, a Espanha, a Grécia e o Sul da Itália sugerem uma evolução muito diferenciada, não proporcional ou não ligada às taxas de crescimento económico e de escolarização. Quer isto dizer que há factores explicativos, designadamente históricos, que podem influenciar de modo determinante os níveis de leitura.
No caso português, para retomar a minha hipótese de trabalho, quando foram atingidos níveis razoáveis de escolaridade e quando as taxas de analfabetismo começaram a descer abaixo dos 40 a 50 por cento, já existiam a rádio e sobretudo a televisão. Para a maioria dos portugueses, a palavra escrita nunca foi a principal fonte de informação cultural, profissional, quotidiana, familiar ou política. A televisão instalou-se em Portugal e cobriu o território antes de a escola o ter conseguido. A partir dos finais dos anos cinquenta, a televisão passou a ser um factor de unificação cultural dos portugueses mais poderoso e eficiente do que a escola. Até porque esta não compreendia os adultos ou os idosos e apenas acolhia as crianças e os adolescentes, nem sequer todos, durante um muito curto período de tempo. Desde então, consolidou-se o lugar da televisão como fonte primordial de informação (e de entretenimento e de consumo cultural), sem que nunca antes a leitura de livros e de periódicos se tivesse generalizado ao país, às regiões e às classes sociais. A leitura de jornais e de livros nunca foi, em Portugal, uma actividade de massas, nem sequer das classes médias.
Ficarmo-nos por aqui seria fonte de equívocos. Os indicadores de leitura e de produção de texto escrito não são uma mácula única na sociedade portuguesa. Com efeito, têm como paralelo imediato todas as outras actividades culturais, tanto do lado do consumo, como no da produção. A frequência de museus, de teatros e de cinemas, a circulação de jornais e periódicos, o consumo de discos e de vídeos, a encenação de peças de teatro, a realização de concertos de música clássica, a produção de espectáculos de ópera e a consulta de livros em bibliotecas públicas: em todos estes indicadores, Portugal tem um seguro último lugar. Sendo todavia certo que a evolução de cada indicador tem o seu significado próprio. O cinema, por exemplo, depois de um longo decréscimo de décadas, conhece recentemente uma recuperação curiosa. A ópera mantém-se a níveis muito reduzidos, com um público que parece ser constante, para não dizer o mesmo, ao longo dos tempos. O teatro está em decréscimo geral. A música clássica em ligeiro aumento. E a frequência de bibliotecas encontra-se quase sem alteração, enquanto as visitas aos museus aumentaram consideravelmente nas últimas décadas. Assim é que a leitura, em Portugal, sempre em crise séria de reduzida produção, de mercado estreito e de público muito seleccionado, tem paralelos. Uma vez mais, não se trata de consolação, mas apenas de um esforço para ter uma visão mais larga.
Retomemos a relação entre o desenvolvimento económico, a alfabetização e a escolarização, por um lado, a leitura de livros e de jornais, por outro. O que acima disse parece traduzir-se na afirmação de que não existe qualquer relação entre os fenómenos citados. Nada menos verdade. Com efeito, sem correlações sofisticadas, é possível estabelecer o paralelismo: os países mais desenvolvidos economicamente são os que exibem níveis superiores de escolarização. Também são aqueles em que se lêem mais livros e se imprimem e lêem mais jornais. Basta recordar, por exemplo, que, em Portugal, a população dos 20 aos 60 anos que completou pelo menos a escola secundária (22%) é cerca de metade do que se verifica em Espanha e na Itália; menos de metade da Grécia e da Irlanda; e um terço ou um quarto dos restantes países europeus! E a população portuguesa que tenha completado um curso superior (9%) é de um terço da maioria dos países europeus e cerca de metade da Grécia e da Espanha. Ora, em qualquer destes países se lê mais do que em Portugal. Parece pois possível admitir-se que existe alguma correlação entre o grau de escolaridade e a apetência pela leitura.
Nesta altura da minha exposição, parece haver séria contradição. Ainda há pouco vos convidava a acreditar que talvez não houvesse uma relação clara e automática entre desenvolvimento económico, escola e leitura. Agora, acabo de afirmar o contrário. Eis que necessita de esclarecimento. Numa perspectiva geral, histórica e comparativa, não duvido que exista esta correlação. Sendo que, por acréscimo, não nos devemos limitar ao rendimento por habitante e aos anos de escolaridade. Muitos outros factores intervêm, como a religião, os regimes políticos, a composição étnica das populações, assim como as suas tradições culturais e linguísticas. E até as necessidades industriais e militares tiveram uma influência nos graus de literacia.
Esta perspectiva, todavia, pode não encontrar tradução automática em situações particulares, designadamente em curtos períodos de poucas décadas e muito especialmente quando se olha para um só país, comparando-o consigo próprio. Como é o caso de Portugal. O progresso da educação começou a tornar-se evidente, quanto mais não seja do ponto de vista quantitativo, a partir do fim dos anos cinquenta, princípio dos sessenta. Esta última década será a da expansão acelerada do sistema educativo. Não ainda suficiente, não universal, mas a ritmo bem superior aos anos anteriores. Algumas mudanças políticas ajudaram. Mas também a pressão da indústria e dos serviços a fazer-se sentir. A guerra colonial e as necessidades militares também contribuíram para o fomento da instrução. E o que permitiu este processo foi o crescimento económico desse período, inédito na história do país, aliás também não repetido depois. A partir daí, todas as forças impeliram a educação e a escolaridade: a indústria e os serviços, os investimentos externos, a pressão das novas classes médias em crescimento e uma nova consciência política emergente. A revolução de 1974, o sistema democrático, a competição eleitoral, a abertura cultural e a consciência dos novos direitos sociais fizeram o resto. Até finais da década de oitenta, tinha-se atingido a escolarização universal e a frequência do ensino superior conhecia um fenómeno muito parecido com a explosão.
Ora bem, se prestarmos atenção aos números e aos indicadores, a circulação da imprensa escrita, a produção livreira e a leitura em geral não tiveram uma evolução comparável ou proporcional. Registam-se alguns acréscimos, mas insignificantes. E aqui teríamos, em linhas gerais, não a excepção portuguesa, mas a maneira particular como, em espaço limitado e em tempo reduzido, um processo pode contrariar a que será a tendência geral. Já sugeri uma explicação, uma entre outras, para este fenómeno. O tempo histórico em que se realizaram a alfabetização e a escolarização da população marcou a sua especificidade. Na concorrência com outros meios de comunicação e informação de massas, para os quais a literacia não era necessária, o texto escrito ficou a perder. Se a alfabetização dos portugueses tivesse sido levada a cabo duas ou três décadas antes, talvez os hábitos de leitura fossem hoje diferentes. Eis uma conjectura para a qual não tenho qualquer demonstração.
Avancemos um pouco mais. A explicação da televisão e dos meios de comunicação de massa pode ser verdadeira. Mas não será certamente a única. Creio que haverá outros factores. Um deles será o método pedagógico em vigor ao longo destas últimas décadas, justamente aquelas em que se processou o crescimento quantitativo fenomenal do sistema educativo. Método pedagógico, por um lado; mas também a natureza ou o carácter da escola que se pretende construir desde então. É minha convicção que a escola, tal como se tem desenvolvido nos tempos recentes, contraria explícita e deliberadamente o hábito e a necessidade da leitura.
A escola actual resulta em grande parte da crítica severa que foi feita à educação do "antigo regime", à portuguesa, e, noutra acepção, do "ancien régime". A severidade, as punições físicas, o culto da erudição, a repressão, o primado da memória sobre a compreensão e a inteligência, o elitismo e o carácter classista da instituição, dos programas e dos métodos foram sistematicamente escalpelizados. Fez-se, durante anos, a crítica da "educação livresca" (reparem bem, "livresca"...). Assim como se fez a apologia da "escola para a vida", da "escola para a vida prática". As escolas que temos hoje resultam em boa parte dessa crítica, por vezes justa. Mas a alternativa, hoje reinante, não está isenta de defeitos graves. O princípio do "prazer de aprender" substituiu o do esforço e do trabalho. A "vida prática" e os utensílios imediatos para a sobrevivência afastaram a ideia de que existe um património cultural da humanidade que importa conhecer. A "cultura popular" e a "sabedoria do povo" denegriram e combateram a erudição. A chamada "alta cultura" foi considerada um malefício da história. Instaurou-se uma espécie de "hedonismo educativo" tendente a demonstrar que o divertimento e as actividades lúdicas eram melhores instrumentos de aprendizagem do que o sacrifício, o treino e a concentração. Apesar do poder intimidante que esta ortodoxia, como todas as outras, exerce sobre as consciências, os resultados destas novas modas são hoje visíveis e têm já sido objecto de observação. Os progressos da educação nem sempre são progressos de literacia. O crescimento das escolas e da escolarização não tem dado resultados proporcionais para a cultura e o conhecimento. O desperdício de recursos e de energias que tem representado esta nova orientação pedagógica e educativa é incalculável. Com a água do banho, deitou-se fora a banheira e o bebé.
O livro foi uma das principais vítimas desta nova escola. Todo o sistema educativo parece hoje concebido para reduzir ao mínimo a consulta do livro. Pela profusão de imagens e de fórmulas coloridas, os próprios manuais escolares fazem um esforço para se parecer cada vez menos com livros; e, pela arte das citações simplificadas e simplistas, para os substituir. Elogiam-se os métodos de ensino que dispensam o livro, das brincadeiras aos passeios, dos trabalhos de grupo aos projectos, sem falar nos resumos fotocopiados. Apresenta-se o computador como um sucedâneo do livro. Isenta-se qualquer aluno da leitura morosa e concentrada. Chega a lançar-se o anátema contra os trabalhos de casa, de que a leitura de livros faz parte essencial. Depois de se ter considerado, justamente, que a posse de livros e a existência de bibliotecas em casa da família eram traços de desigualdade, quase se concluiu que um ensino sem livros era a melhor maneira de combater essa desigualdade! Fez-se do livro um objecto arqueológico de atávicas reminiscências, a fazer pensar no pior de uma organização opressiva e repressiva.
É nesse sentido que digo que a escola moderna é o pior inimigo do livro. Porque é esta escola que dá legitimidade a uma educação que dispensa o livro. Porque é esta escola que transformou o livro num objecto de cultura de elite. E porque é esta escola que afirma que a educação democrática se pode fazer sem livros e sem esforço. Poderão dizer-me que confio excessivamente nas virtudes da escola e da educação. Tal como fazem milhões de compatriotas nossos que, diante de problemas difíceis, das filas de espera na saúde aos acidentes de automóvel, da limpeza das ruas ao consumo da droga, da evasão fiscal ao serviço militar obrigatório, não se coíbem de nos garantir que a solução está na escola e na reforma de mentalidades! Não! Não penso isso, nem gosto de confiar excessivamente na educação. E sei que a mentalidade é a última coisa a mudar. Não tenho a certeza que uma escola como a entendo seja um factor de expansão fenomenal da leitura. Mas creio firmemente que não seria, como é actualmente, um factor de aversão à leitura.
Acontece que uma escola sem livros, que admito perfeitamente poder existir, é uma escola desumana e de desprezo pelo património cultural e científico da humanidade. É uma escola que, a pretexto de igualdade social, provoca mais desigualdade, pois que faz do livro um bem de casta e um hábito de elite. E é sobretudo uma escola que, a pretexto do combate contra a "cultura livresca", legitima esta detestável forma de ignorância. Será preciso recordar que um ministro da educação, convidado a participar numa iniciativa organizada por editores, perguntou, perplexo: "Mas que tem o ministério da educação a ver com isso?". Ou será preciso recordar uma visita que fiz, há meia dúzia de anos, a uma das mais modernas e exemplares escolas portuguesas, que figura aliás na lista das melhores que se exibem aos organismos internacionais? Durante a visita da escola inaugurada há pouco mais de um ano, vi salas de recreio fantásticas, dezenas de computadores, auditório de cinema, excelente cantina, salas de estudo e gabinetes de professores. E uma quase luxuosa biblioteca, sem um único livro! A directora, interrogada, respondeu sem inquietação: "O dinheiro não chegou para os livros!". Mais do que a fotocópia ou o computador, mais do que a televisão ou a discoteca, a escola é, para mim, o principal inimigo do livro.
E, no entanto, o livro está por trás de toda a cultura da humanidade. De toda a ciência. De todo o inconformismo. De toda a criação. Poderá o artista, o cientista ou o político exprimir-se de outro modo que não seja o da escrita. Poderão aprender com mestres e com viagens. Poderão tirar da observação e da experiência o essencial da matéria-prima e dos fundamentos do seu trabalho. E poderão recorrer incessantemente às novas tecnologias de informação. Mas não duvido um segundo de que uma parte essencial da sua inspiração, da sua formação e da sua humanidade vem dos livros; nem de que para lá irá uma parte não menos essencial da sua criação.
Apesar de ser uma espécie de escritor compulsivo e de quase todos os dias ter de escrever qualquer coisa, linhas ou parágrafos, apesar disso, permitam-me terminar citando alguém, o autor de "Uma história da leitura", Alberto Manguel: não me é difícil imaginar que poderia viver sem escrever, mas não creio que poderia viver sem ler.
(*) I.º Congresso dos Editores Portugueses
Lisboa, Abril de 2001
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