segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Do lume de chão ao forno de microondas

Do lume de chão ao forno de microondas

via Sopas de Pedra by A. M. Galopim de Carvalho on 11/8/09
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É CORRENTE OUVIRMOS EXPRESSÕES nas quais se alude a uma vincada preferência pelos grelhados no carvão ou pelo pão cozido no forno de lenha. Havendo algo de verdadeiro nestas vozes, há nelas, sobretudo, a nostalgia pelo tempo em que fomos filhos e netos. Quem me conhece sabe do meu interesse pela culinária, interesse que não se esgota nas confecções, mas que se alarga a tudo o que as suporta, nomeadamente, os produtos alimentares, os utensílios e as histórias relativas a esta velhíssima actividade da espécie humana.

Do lume de chão da cozinha da minha avó materna, tal como a conheci nos anos trinta do século passado, ao forno de microondas, vai uma distância tão grande quanto o tempo que entretanto decorreu, em que, de menino passei a avô, reformado e utente dos transportes públicos com passe de terceira idade.
Esta cozinha, onde brinquei e briguei boa parte da minha infância com o meu irmão Mário, dois anos mais velho do que eu, situava-se na Rua de Frei Brás, três prédios abaixo da casa dos nossos pais, alargando-nos o espaço e as experiências. De porta sempre aberta durante o dia, como única fonte de luz, permitia-nos alterná-la com a rua ao sabor das nossas brincadeiras.

Além de ser aquilo que lhe dava o nome, era sala de tudo, de entrada, de jantar, de estar e, até, de dormir, se fosse o caso de algum parente, chegado de fora, ali ter de pernoitar. Era só pôr-lhe uma enxerga no chão e dar-lhe uma ou duas mantas. Num canto desta divisão multiusos havia o poço com água fresca, nunca analisada mas que nunca causou problemas. A contaminação dos aquíferos era um tema que ainda não preocupava ninguém.
O meu irmão Mário, o Marecas, como todos o tratavam, era o neto preferido da avó. Era o que passava mais tempo com ela, comendo e dormindo ali mais vezes do que qualquer um de nós, os irmãos. De vez em quando também eu lá almoçava ou jantava. Umas vezes eram sopas da panela com linguiça, toucinho do alto e carne da salgadeira, aromatizadas com raminhos de hortelã, outras vezes era açorda de bacalhau e outras, ainda, eram migas com carne entremeada, temperada de alho e pimentão, frita em banha. Ocasionalmente, havia sardinhas albardadas fritas em azeite. A meio da manhã ou da tarde, sempre que nos dava a fome, a avó dava-nos pão barrado com marmelada ou, à falta desta, com banha e açúcar.


Num tempo em que o frigorífico estava longe de ser o indispensável electrodoméstico dos dias de hoje, o cação e as sardinhas de barrica (em camadas com sal grosso de permeio) eram, praticamente, os peixes de maior consumo nas terras do interior. O bacalhau era ainda o "fiel amigo" e a carne fresca, um luxo. Num dia de festa, a avó matava uma galinha, outras vezes, um coelho. Por doença de alguém da casa, era a vez de um franganito.

Nos meses mais frios a avó acendia o lume de chão ao fundo da grande chaminé, tão grande que cabíamos todos lá dentro, ao borralho, sentados em mochos e cadeirinhas baixas. Tão grande que lá dentro cabia ainda uma mesinha onde duas pessoas podiam tomar uma refeição. O mesmo homem que, com uma carrocita e uma mula, fornecia os feixes de lenha ao padeiro da vizinhança, levava-lhe a lenha grossa e miúda que ela ia queimando com parcimónia, à medida das suas necessidades e das suas posses. Manhãzinha cedo, acendia o lume com a matula, nome que se dava a um trapinho sobrado da costura, embebido em azeite de fritar e, como tal, posto de parte para esse fim. Deixada a arder entre os gravetos, a matula transmitia o fogo às cavacas mais graúdas e estas, por seu turno, ao lenho maior, encostado à "boneca", ao fundo da chaminé. Aí aconchegava uma cafeteira (também dita chocolateira) de barro, onde fazia o café (de cevada torrada e moída) para ela.
Para nós, à falta de leite, a avó fazia caldo de farinha, uma beberragem feita de água, farinha e açúcar, aromatizada com uma casquinha de limão e " enriquecida" com uma colherzinha de banha "para dar sustento". Vivia-se um tempo em que se valorizavam os alimentos mais gordos. Basta lembrar a frase corrente, "gordura é formosura", para nos darmos conta dessa realidade. Neste mesmo lume de chão, ferventava, horas a fio, o cozido numa panela de barro e se aquecia a água para encher a botija que, à noite, se levava para a cama.
Um outro modo de fazer lume era o que usava o fogareiro de barro ou de ferro fundido. Os de barro eram baratos mas duravam pouco, ou porque estalavam com o calor, ou porque, num descuido, se partiam. Os de ferro resistiam a tudo, duravam uma vida mas eram mais caros. O fogareiro da avó era dos baratos No Inverno usava-o em complemento do lume de chão, alimentando-o com brasas que ia tirando dali. Nos meses em que não se servia da lareira, acendia-o, pegando-lhe fogo com a matula colocada entre os carvões, a que se seguia o avivar a chama com o abanico. À medida que este combustível doméstico da minha infância, ia perdendo calor, iam-se colocando novos carvões, a fim de manter o nível da temperatura necessário à confecção.


Nesse tempo a rede de distribuição de electricidade, em Évora, era rudimentar, assegurada por uma pequena central térmica, do lado de fora da muralha da cidade. Nem todas as residências beneficiavam desse conforto e a casa da avó pertencia a este conjunto. Ao fim do dia, acendia o candeeiro de petróleo, que pousava sobre a mesa, dando à casa a luz suficiente para o que nela se fazia àquela hora e nela se andar sem encalhar no que por ali estivesse. Trabalho necessitando de boa luz, como era a costura, fazia-se de dia, muitas vezes na rua, à sombra, se fosse Verão, ao sol, se o houvesse, em dias de Inverno. À hora de deitar, acendia uma vela, apagava o candeeiro e subia ao piso de cima, onde era o quarto de dormir.

A casa dos meus pais já tinha luz eléctrica e, embora tivéssemos uma grande chaminé na cozinha, não se fazia lume de chão. Tínhamos, sim, uma bancada de alvenaria com duas fornalhas a carvão. Eram os novos tempos e o progresso. Para a minha mãe, com mãos feitas ao dedal e às agulhas, e para o meu pai, escriturário, tinha de haver uma forma mais fina de usar o lume, mais consentânea com o seu dia-a-dia. Era assim que se pensava, e estas preocupações faziam a diferença entre os diversos protagonistas. Cozer um bolo ou assar uma perna de borrego, o que era uma necessidade em certas quadras festivas, obrigava-nos a recorrer ao forno do padeiro ou de alguém conhecido que o tivesse em casa. Um belo dia o meu pai comprou um fogão a lenha, todo em ferro, com uma caldeira em cobre e uma torneira em latão. Esta bela peça da serralharia de então só era acesa na ditas ocasiões. O resto do tempo não passava de um vistoso elemento decorativo, a meio da chaminé e a embelezar a cozinha. Um tostão era a recompensa que um dos filhos arrecadava pelo trabalho de lhe lixar, com lixa da mais fina, as partes de ferro a pedirem esse polimento (o aço inoxidável ainda estava por aparecer) e fazer brilhar, com solarina, o cobre da caldeira e o latão da pequena torneira.

Como hoje, o progresso não parava de avançar e eis que chega a nossa casa o então moderníssimo fogareiro a petróleo, da Casa Hipólito.

Acabavam-se o moroso acender do lume com a matula embebida em azeite, as mãos sujas do carvão, o estar sempre a avivar o lume, uma tarefa da mãe, e o ter de o ir buscar à carvoaria, uma tarefa dos filhos que muitas vezes me coube. Um litro de petróleo rendia mais do que dois ou três quilos de carvão. Nos anos cinquenta eram ainda muitas as famílias que continuavam a usar este popularíssimo, elegante e eficaz utensílio - a "máquina", como lhe ouvi chamar em Lisboa, no início dos anos 50 do século que passou - tornado obsoleto com a vulgarização do gás, quer o canalizado, distribuído ao domicílio, quer o engarrafado. Esta tecnologia de liquefazer o gás e engarrafá-lo sob pressão permitiu às famílias do campo fruir de um bem que estava reservado às das grandes cidades.

Mais ou menos paralelamente, a expansão dos fogareiros e fogões eléctricos, acompanhou a electrificação de, praticamente, todo o país, um progresso tecnológico que tem vindo a permitir a vulgarização dessa outra inovação que é o forno de microondas, electrodoméstico indispensável no ritmo vertiginoso das metrópoles, em perfeita conjugação com os congelados, os enlatados, os fast food e os take away dos dia de hoje.

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