domingo, 15 de novembro de 2009

UM RETRATO DO QUOTIDIANO EM DILI NOS ANOS TRINTA

via DA TAILÂNDIA COM AMOR E HUMOR by Jose Martins on 11/15/09-

.
De facto nunca tinha ouvido falar no Capitão Armando Pinto Correia.
Porém dado à visita, recentemente, do Bispo Belo à Madeira, procurei na minha biblioteca particular, a obra "Postais Antigos & Outras Memórias de TIMOR", de João Loureiro, patrocinada pela Fundação Macau e procurar informação, relativa, ao oficial do Exército Português que desempenhou funções de administrador de Concelho em Timor Leste, na década trinta do século passado. Transcrevo um trecho do seu livro "Timor de lés a lés" que viria a ser publicado em 1944. Econtro na prosa de Pinto Correia, a subtileza e onde nada ao seu olhar de observador lhe escapa. De um momento para outro Pinto Correia coloca-me em Moçambique, onde eu vivi na década de sessenta e onde por lá, passado, 30 anos tudo era muito parecido ao que relata em Timor. Vamos encontrar no transcrito abaixo o caricato e o humor que só Pinto Correia lhe soube dar o tom que a todos agrada ler.
José Martins
.
Assim o Capitão Armando Pinto Correia viu Timos:

"Dilly é sombria e parrana como qualquer burgo de província. Não há cafés, não há jornais, não há teatros. De manhã faz-se a vida de repartição. Às sete horas, os chefes-de-serviço desenterram-se dos mosquiteiros, tomam banho, saboreiam o pequeno almoço e, entre as oito e as noves, trocado o pijama pelas calças brancas e o casaco fechado "à holandesa", fazem sair os seus automóveis baratos e descem de Lahane. As esposas, dentro das suas batas matinais, vêm à varanda despedir-se. E enquanto elas ficam, bocejando, estendidas em cadeiras de viagem ou ralhando com os criados, os chefes seguem, levantando poeira pelas ruas sombreadas de gondões centenários, recebendo no trajecto as saudações dos transeuntoes: indígenas que tiram da cabeça o lenço enrolado e se curvam, de mão estendida, à laiua de quem pede a bênção.
-
A pressa é pouca. Um objecto a comprar, pergunta sobre os câmbios, negócios de florins. Mais adiante é a garagem de um colonial crónico: é o club da terra. Toca a amesendar-se um pouco e beber um whisky. Enquanto na casa ao lado, uma descacadeira de arroz vais despelando o neli, os "luminares da aldeia" trituram e desfazem reputações.
-
À tarde, após o costume ritual da sesta, a que poucos são refractários, o funcionários de 1ª. classe troca de novo o pijama pela quinzena branca, engomada até à rigidez, põe ou manda pôr o automóvel em marcha e deserta de casa.
-
As habitações, obscurecidas pelas largas varandas circulares, são insuportáveis para qualquer trabalho cerebral. Os quintais magros de espaço, a rua muito à beira e as construções debruçadas umas sobre as outras ladeira arriba: tão próximas, que dentro delas não há intimidade, não há conforto, não há isolamento, e o corpo, entorpecido da sesta e da torreira, enervado pela melancolia da tarde, precisa de uma viração tonoficante de ar, que só uma corrida de carro desloca.
-
São cinco horas. É preciso falar em surdina, quando o silêncio de Lahane se rompe com o ranger das alavancas e o rosnar das buzinas, o trepidar dos motores. Os senhores oficias e chefes de serviço saiem a passeio com as famílias em trajes leves, eles e elas.
-
As mulheres decotadas, braços à vela, gaforina ao vento; eles, de gola aberta, desportivos, derreados sobre os coxins, as pernas distendidas numa preguiça, esboçando conversas, que o calor não deixa prosseguir. Hás adeuzinhos, acenos e irónicas gracinhas para os retardatários que ainda se espreguiçam nas varandas ou nelas recebem, ali mesmo e em cadeira de rota, algumas dessas visitas de cerimónia, que é praxe fazer-se – eles de gravata e colarinho postiço: elas de chapelinho, a desabafar o seu horror por esta vida de vermes, insípida...
-
Eles aí vão, a caminho de Dilly, amodorrados nos assentos do carro, sequiosos de fresco, espalhando poeira sobre os indígenas que passam e se afastam para as margens da estrada amarela, descobrindo-se ou fazendo continência, ante as ilustres senhorias.
-
Presos consertam as estradas, sob as vistas sorridentes do velho capataz branco, de cachimbo entre os dentes.
-
No funco da ladeira, termina o vale de Lahane, e os carros curveteiam para a esquerda, atravessam uma ponte de betão, com grande bolas, atiram-se a toda a brida, ruidosos, pela anenida do Bispo Medeiros, sombreada de sumaúmeiros e aberta entre palmares do Montalvão e do Mascarenhas.
-
...Estamos em começos de Novembro, fim da época seca, prefácio do período das chuvas. A terra sopra calor por todos os seus poros. Em Dilly a atmosfera é irrespirável. Ao longo da rua dos Árabes, à porta das suas lojecas, os chinas espapaçam-se nos degraus das varandas, todos em camisola, os pés fora dos tamancos, abanando-se com ventarolas.
-
À porta de uma delas, descarrega-se um camion cheio de fardos de café- Troncos nus, luzentes de suor, um magote de indígenas passa dobrado sob os sacos. Além é o quartel de artilharia. Um ladim fardado de caqui passeia lentamente, a arma ao ombro, enquanto num banco, junto à porta, três soldados europeus, de gola desapertada cor de cidra, jazem em silêncio, com ar fulminado, quebrando a sua imobilidade para coçarem a mordedura de um mosquito ou expulsarem um enxame de formigas de asas que volteiam no ar. Em cabelo naufragados em automóveis, os funcionários que desceram de Lahane fazem a via sacra pelas ruas de Dilly, à procura de fresco. No Grémio dos Sargentos, graduados em camisa, mangas arregaçadas, ensaiam carabolas preguiçosas, enquanto na varanda, um grupo tece longas macarenas sobre o preço da vida, as rendas das casas e exiguidade dos prés.
-
Lojas e habitações particulares abrem todas as suas portas e janelas sobre a ruas apertadas. Cada casa é um forno.
-
Na rua dos Árabes demoram-se as senhoras em compras nas lojas de Joesoef e do Wanhdomal, um árabe e um indiano, enquanto os homens fugindo ao calor ficam à porta, palrando e olhando quem passa, por sob a nave dos gondões centenários, cujas folhas se imobilizaram...
-
O espectáculo é sempre o mesmo, exótico, pitoresco. Lojas de aspecto sujo,, tectos baixos, paredes manchadas do roçar de gerações de indígenas. Tabuletas de madeira com caracteres vermelhos em fundo. Valetas onde a água dormita. Chinas em pijama enforquilhados, em bicicletas, vagueiam diante das suas patrícias, que se encostam às portas, de calças pretas, muito largas, o cabelo à rapaz e muito enfarinhadas de pó de arroz. Algumas dão de mamar a bambinos com cara de luas cheias.
-
Timoras muito enroladas nas suas vestes claras, arrastando chinelas vistosas, em passinhos curtos, travados pela saia pequena roda, derriçam com marinheiros do vapor "Dilly" – descalços e impecáveis, na sua farda branca. Os alunos da escola china caminham, a um de fundo, maleta dependurada ao ombro. Árabes de olhos profundos, graves e de barbicha à Cristo passam lentos, pesados, silenciosos, sob os cofiós vermelhos, cinzentos brancos, que nunca tiram o toutiço – a caminho da praia, onde se irão pôr de cócoras, voltados para Meca, para a oração do sol posto. Indígenas com barretes, outros de palhinha, alguns arrastando porcos à sirga, uns com peixes salgado e ainda outros com hortaliça do Remexido.
-
Passam recrutas, impedidos, enfermeiros, guarda-fios, amanuenses e aspirantes aduaneiros... Mestiças namoradeiras, demoram-se a mirar, com olhos sonhadores, a casa do china fotógrafo. Um coronel médico europeu, de óculos, à porta do May Chong, fala com o proprietário sobre a melhor maneira de tranderir as suas patacas em florins. A loja Wadhomall é a tentação das damas.
-
Queima-perfumes, jarras, frascos de essências caras, sabões, lanternas e feitiços pendem do tecto. No balcão e nas estantes, cortes de seda, tapetes, tam-tans, quimonos, pijamas, chinelas brocadas, colchas bordadas, biombos, mantões, popelines, camisas e rendas.
-
O espertalhão, sorridente, trocando mãozadas, enriquece dia a dia, mas queixando-se sempre, num português mascavado: - Eu ser pobre indiano, senhora, dar sorte a mim, não faz negócio.
-
É um ladino, que às vezes, em momentos de bom humor, se alguma freguesa consegue arrancar-lhe por menos preço alguma daquelas bugigangas em que ele ganha 400% lhe diz: "Deixe lá, você assim é que vai para o céu", o patife sai-se com um riso escarninho: "Senhora, comerciante não poder ir para o céu, porque comerciante todo malandro, todo roubar!"...
-
...Pequenos funcionários, indígenas e indianos, em cabelo, curvam a espinha em cumprimentos. Alguns passeiam de braço dado, passos lentos, com mestiças vestidas à europeia, desgraciosamente, canelas descarnadas sob saias curtas, rostos de ceroulas tristes, a tomar fresco.
-
...Há uns quintais de funcionários, balizados de palapas ou pedras soltas, e, antes do jardim, canhões de ferro entre um cercado de correntes, com as armas de Portugal. A esses canhões amarram corcoras. Mais além. Na loja do china, três marinheiros europeus ,discutem com ruído as últimas novidades da Metrópole remota.
-
A noite aproxima-se. Um funcionário arrima-se a um canto da alfândega. Em frente dos gondões imóveis, cobertos de pirilampos, ergue-se uma voz de cana rachada, rouca, gritando espaçadamente:
- Toqué! Toque! Toqué!
-
Dilly pacata, subitamente imerge em plena treva, picada aqui e ali por um candeeiro de aldeia e alguns reflexos de lojas ainda abertas.
Os carros recolhem a Lahana. São oito horas e as ruas já está quase desertas. Soldados da polícia, de espingarda ao ombro, mantas coloridas sobre os troncos friorentos, fazem a ronda, aqui e além. As mais das ruas ermas.
-
Sobre as pontes ainda há uns derradeiros chineses e árabes acalmados, continuando a procurar no caneiro dos coliões a fresca brisa que vem do mar. Soldados europeus com nonas ao lado e garotelhos pela mão, marcham silenciosos, estugando o passo a caminho de casa.
-
Um cabito recém-chegado da Europa, barrete à orça, passa e repassa com ares de poeta-lírico, esfaimado de amor, junto de uma casa onde se toca piano. Duas indianas magricelas, debruçadas nos peitoris, de grandes trunfas à garçonne, cochicham, com risinhos comovidos. A névoa fumegada por pântanos e coilões torna a descer sobre a cidade.
-
Faz um calor de estufa e começa a cair uma cacimba miúda, que amolece a gente. Na rua dos Árabes, casas de sargentos e pequenos funcionários exibem as portas escancaradas, donde vêm notas fanhosas de gramofones, moendo fox-trots, desopilantes de figadeiras coloniais.
-
Lá dentro, nos quartos estreitos e baixoa, abafa-se de calor que a irradiação dos candeeiros de gasolina aumentou. Homens em pijamas e mulheres em bata, lavados de suor, mordidos de mosquitos e rodeados de formigas de asas – espapaçam-se em cadeiras, mudos, fulminados, as pernas abertas numa lazeira irresistível .
-
No Grémio dos Sargentos, na Colmera, quatro praças em mangas de camisa, jogam pacatamente ao bilhar, enquanto o servente Timor cabeceia à porta e ilude o sono, a mirar o travejamento da varanda onde crescem, nalguns vãos, arremedos de flores. Lagartixas e toques espreitam e perseguem enxames dde baratas voadoares"

P.S. Transcrito do livro "Timor de lés a lés", do Capitão Armamdo Pinto Correia. O texto foi extraído a obra "Postais Antigos & Outras Memórias de TIMOR" de João Loureiro, 1999 e patrocinado pela Fundação Macau.
Recomendamos um clique no endereço a seguir onde obterão mais informação sobre o Capitão Armando Pinto Correia.

Sem comentários: