domingo, 4 de janeiro de 2009

DAS MEZINHAS E REZAS AOS FÁRMACOS

via Sopas de Pedra de A. M. Galopim de Carvalho em 01/01/09
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UM TEMA ANTIGO, bem gravado na memória, é o das enfermidades e dos meios com que se procurava dar-lhes combate. Nos curtos anos da minha infância e adolescência pude assistir à substituição das mezinhas e dos remédios manipulados na farmácia pelos fármacos produzidos industrialmente. É claro que não conheço o suficiente de história da medicina e da instituição farmacêutica que me permitam abordar este tema em moldes minimamente fundamentados. Mas o que eu posso e sei fazer é relatar o que, neste domínio, se passava nesse tempo, no seio da minha família.
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Constipações, anginas, otites, gripes, sarampo, varicela, papeira e desinterias, embora com nomes diferentes, tudo isso andou lá por casa, tocando todos os filhos, seis, ao todo. Falava-se, de anginas, de dores de ouvidos, de bexigas doidas, de dores de barriga, de pontadas nas costas, tudo situações que a mãe ultrapassou, por si só ou com a ajuda do médico, mas sempre com muita fé, velas e promessas de cera ao Senhor Jesus dos Passos e muitas rezas a Nossa Senhora e às duas santas da sua devoção, Santa Rita e Santa Luzia.
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Uma purga com óleo de rícino ou um clister eram coisa certa sempre que aparecíamos com febre. Dizia a mãe que serviam, antes do mais, para limpar os intestinos. Vinham, depois, consoante os casos, os papelinhos de criogenina, para baixar a temperatura, as fricções com vinagre aromático ou com álcool canforado, o algodão iodado ou os emplastros de papas de linhaça e mostarda, a escaldar, colocados sobre o peito, as sanguessugas para sugarem o "sangue ruim". Se doíam as costas, davam-se umas pinceladas com tintura de iodo ou aplicava-se meia dúzia de ventosas.
Nas dores de ouvidos, e quão fortes eram, a minha mãe procurava dar-nos alívio vertendo, lá para dentro, leite levemente aquecido, o que, segundo me lembro, pouco ou nada resultava. As dores só passavam quando a infecção era debelada pelas defesas próprias do organismo. Com as amigdalites era a mesma coisa. As correspondentes dores de garganta, a febre e a dificuldade de engolir passavam ao fim do tempo que durava a luta dos leucócitos sobre o agente patogénico. Mas era crença generalizada que as anginas se curavam com as mezinhas caseiras e, assim, besuntava-nos a parte anterior do pescoço, onde se localizavam as ínguas, com pomada de beladona, sobre a qual se passava um lenço de algodão. Em complemento, gargarejávamos com água e sal, chupávamos sumo de limão, engolíamos colherzinhas de mel e fazíamos zaragatôas com azul de metilene. Este último tratamento, feito ao deitar, era aceite como uma brincadeira porque tingia de verde a urina da manhã seguinte. Ir para a escola com um lenço atado ao pescoço, a cheirar a beladona não era agradável. Mas muito pior era quando o tratamento tinha sido feito com enxúndia de galinha que, com o mesmo propósito, era preferida pela minha avó. Esta gordura amarela da ave era guardada numa velha tigela de faiança de Sacavém, onde se oxidava, tornando-se rançosa e mudando a cor para castanho. Era nesta fase de apodrecimento, exalando um cheiro nauseabundo, que este unguento estava, dizia ela, em condições de produzir o efeito desejado.
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Na maior parte do casos estas anginas eram passageiras e com ou sem mezinhas acabavam por passar. Havia, porém, situações graves como o garrotilho, designação que dávamos à angina diftérica. Esta exigia o recurso ao médico, mas havia uma norma nesse tempo, segundo a qual o doutor só era chamado se, ao fim de três dias, o doente não desse mostras de recuperação, em resposta aos tratamentos caseiros. Por vezes, este tipo de procedimento tinha consequências fatais. Isto aconteceu com um meu vizinho e colega de escola, vítima desta doença. O estado da infecção causada pelo Corynebacterium diphtheriae não cedeu ao soro que lhe foi ministrado tarde demais. Foi a consternação na minha rua. Morrera um menino.
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Foi um tempo em que muitos medicamentos eram manipulados pelo farmacêutico e prescritos por ele ou, nas situações mais complicadas, pelo médico. Nas farmácias, em grandes frascos com água, havia sanguessugas à venda, que se colocavam sobre os hematomas para que absorvessem o sangue pisado. Um tempo em que os filhos nasciam em casa, com a assistência de uma parteira ou de uma comadre, sob a Divina Graça do Senhor.

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