Tinha deixado a promessa de por aqui passar com mais regularidade, deixando uma ou outra intervenção que ecoasse a nossa memória colectiva daqueles anos 71/73. Não que não tenham buscado e rebuscado uma ou outra história ainda "secreta" que valesse a pena trazer ao conhecimento dos nossos cabelos brancos e olhos ávidos de lembranças de uma mocidade que nos calhou viver em comunhão e em sofrimento.
Mas a verdade é que, para já, não encontrei senão episódios dispersos a que acabei por não dar relevo.
Prometo continuar a procurar. A memória já não é o que era; mas aquela daqueles anos ficou como marca indelével, que se nos vai avivando em cada ano em que matamos saudades nos encontros que o Duarte em boa hora empreendeu.
Mas este vazio de reconstrução de histórias novas também tem uma outra justificação que se prende a uma ou outra aventura literária em que me fui metendo, acabando por quase esgotar o manancial de narrativas passíveis de reproduzir agora e de novo.
Entendo, no entanto, que este lugar nos deve merecer um inusitado carinho, louvando, desde já, o Egídio Cardoso pelas belas prosas e fotos com que nos tem brindado. Pela minha parte farei o possível.
Deste modo, e perdoem-me a falta de originalidade, achei que talvez não fosse despropositado trazer um ou outro eco de trechos que já escrevi noutros sítios, na certeza de que muitos dos nossos companheiros ainda os não terão lido e outros nem tenham lá chegado, se porventura se aventuraram a lê-los.
Escolhi duas situações. Esta que aqui vos vou deixar e uma outra que transcreverei noutra folha.
Especialmente para a malta do "arame" (para os leigos, não confundir com "malta do dinheiro"… O "arame" aqui era o arame farpado, querendo referir os militares especialistas que faziam a sua actividade militar no aquartelamento, logo, dentro do arame farpado); dizia então que, para estes, e não só, deixava a recordação da entrega do aquartelamento à Companhia que nos foi render e os milhares de apetrechos e artefactos que foram necessários contabilizar e conferir, numa saga inimaginável, ou só admissível numa instituição como a militar. Também para muitos outros que não fará a mínima ideia de como aquilo era.
Então foi mais ou menos assim que eu senti aqueles três ou quatro dias em que cheguei a ter cãibras na mão direita de tanto assinar papel:
"… Por fim a trouxa militar está entregue. As mais de mil e quinhentas assinaturas estão rabiscadas noutros tantos formulários e modelos militares garantindo a passagem de testemunho, consubstanciado em milhares de peças e pecinhas com os mais variados tamanhos e funções.
Garfos, quase conferidos dente a dente para verificar da sua operacionalidade, colheres, casas, pré-fabricados com telhas de zinco que voam nas tempestades mas param submissas a cinquenta metros de distância e aguardam que as tragam de volta vezes sem conta, como crianças que se obstinam em fugir ao controlo dos progenitores; máquinas de escrever, que por vezes escreviam; mapas, que falavam mas nada diziam e por vezes mentiam; cadeiras, secretárias (de madeira…), chaves de fenda, de cruzeta, de boca, sem boca, com dentes, sem dentes; motores que trabalhavam, outros que se reformavam, e ainda os que morreram há muito e já não respiram, mas continuam pertença e tesouro da República; retretes que fediam, camas que gemiam, colchões sem edredões; passeios de tabuinhas cruzados por milhões de viagens nos dois sentidos e sem sentido; arame farpado com bicos que ameaçavam rasgar a carne aos que queriam entrar, mas também dos que queriam sair; holofotes com luz, sem luz, antenas, bombas de água que nos bombeavam a paciência, geradores que muitas vezes trabalhavam; câmaras frigoríficas a funcionar, avariadas, inutilizadas, obsoletas, mas ainda zelosamente à carga, não fosse desertarem para as bandas do inimigo; camiões, unimogs, jipes, uns a andar, outros parados, vandalizados, canibalizados; uma prisão com telhado de capim, paredes de barro (espesso…!) e grades de vento; areia, muita areia, pedrinhas pintadas de branco que faziam de ruas que não levavam a lado nenhum e davam uma ilusão de ordem que apontava um caminho que não existia; uma taberna travestida com o eufemismo de cantina; bidões de gasóleo, cunhetes de munições contadas caixinha a caixinha, cunhetes de cerveja contadas na garganta duas a duas; janelas com rede mosquiteira, quartos com mosquitos, panelas de 50 litros e tachos de 30 que tresandam a um aroma de gordura militar que se esvai três dias depois da fome nos ter dizimado as resistências do olfacto e o último furo do cinto; um Chiado (vazio) onde em época alta se pode encontrar o último grito de sabão azul cortado em fatia fina com faca de queijo; um clima variado (de 45º a – 3º), noites escuras, de solidão, de desespero, de medo, blenorragias, pagas em moeda corrente ou géneros de primeira necessidade; ("… furrié é bom p'ra mim; furrié dá sapato, dá pano, dá dinhêro p'ra comprá cérvêja lá nos cantina…"); paludismos distribuídos gratuitamente a febres de 41º repartidas por 15 dias de férias em cama fresca de abundante suor; vacinas contra a mosca do sono (1cm3 por cada 10 kg inoculados por agulhas de 8cm enterradas na alva nádega sem dó nem piedade); medicamentos, para as doenças e para afugentar o medo das balas; um milhar de bugigangas agrupadas em pacotes de função, outro milhar dividido em função de pacotes, ainda um outro sem pacote nem função, e, por fim..., um kimbo com gente viva dentro, porque se mexia; uma bandeira num mastro altaneiro que se esfalfa todos os dias para afirmar a nossa autoridade naquele lugar e uma guerra; uma guerra que começa à porta de armas e termina nas margens de um rio Cuando majestoso e indiferente, que nos separa da soberania do povo do lado de lá, mas que os do kimbo não entendem porque os apartam dos família do outro lado de um rio sem paredes nem muralhas, feito apenas de água que corre límpida e sem raivas em ambas as margens.
Ficam de fora, com o consentimento das NEP's (normas da coisa militar que nos orientavam em tudo, por vezes até os gestos e os desejos) depois de demorada consulta para esse efeito, a gata (a "chaninha" para os mais íntimos, companheira inseparável das noites de insónia em que nos achávamos a fazer de ratos para a gata brincar); uma cabra bebé, poupada a um tiro de G3 num intervalo da guerra, passando a fazer parte da carga da Companhia (até que um dia a fome ditasse um outro destino) e… o Dango (depois Dango Cabrita), a peça de guerra mais representativa que foi possível achar, depois de capturada ao inimigo nas terras do Cuando-Cubango.
Tudo contado, conferido e entregue, soa um batuque fúnebre que carpirá noite dentro uma dor cíclica de perder quase para sempre, e de uma só vez, um amontoado de amigos trazidos pela guerra e pela guerra levados.
Tropa matchiririca parte amanhã bem cedo…"
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