N'riquinha - Um E.T.D. sem retorno...
via Caçadores 3441 de Pedro Cabrita em 29/03/09
Jamais consegui explicar a razão da minha afeição às gentes do aldeamento da N´riquinha.
Porque fiz quase minhas as dores daquela gente e porque sofri na partida, quando era uma incontida alegria que me deveria inundar por finalmente abandonar aquele autêntico "buraco" onde nos amarraram longos dezoito meses e meio.
Porque interiorizei o sofrimento daquela gente e, nesse sentido, quanto martirizei a "minha tropa" em apoios, transportes e protecção de uma população que não tinha que me dizer nada, porque eu estava ali para fazer a guerra e não para me sensibilizar com o sofrimento escorrido dos nossos 500 anos de ocupação, em que nem a língua materna fomos capazes de lhes transmitir.
Talvez a minha origem humilde possa explicar este acolhimento insensato para um "guerreiro" armado para fazer a guerra. Talvez se tenham enganado os Senhores da Guerra quando me descortinaram engenho e chama para a beligerância a que me destinaram; ou, quem sabe, nem tenham tido tempo para perceberem que a peça não era muito talhada para a função almejada.
Talvez a comunhão sempre viva no dia-a-dia da minha aldeia tenha permitido e incentivado esta minha extensão às agruras das gentes das Terras do Fim do Mundo que nos calharam em sorte e em tempo de guerra.
Talvez "a minha tropa" nunca venha a entender porque os obriguei a tanto tempo extra em devoção a gente tão despida de valores materiais, mas tão rica na nobreza de nos aceitarem com 500 anos de soberania prepotente, tempo aparentemente insuficiente para lhes termos dispensado uma réstia de dignidade que nunca fomos capazes de lhes proporcionar.
Quem sabe se não me pesaram na consciência esses 500 anos de ostracismo e desdém com que brindámos o seu consentimento em deixar-se ser portugueses sem o pedirem.
A partida de N'riquinha foi dos momentos mais doridos de entre todos os 1400 dias de serviço militar a que me vi obrigado a cumprir.
Não encontro melhor forma de vos fazer compreender o meu sentimento por aquela gente senão transcrevendo-vos como o vivi.
Apenas referir que este escrito tem cerca de nove anos. Li-o uma única vez depois de publicado. Não consegui voltar a lê-lo.
Não será hoje que o faço. Transcrevo-o apenas.
"…A grande viagem vai começar. N'riquinha-Luanda.
Dois mil quilómetros em linha recta. Bastantes mais pelas picadas e asfaltos que nos esperavam.
As despedidas estão feitas. Cerca de 140 militares distribuem-se por não sei quantos camiões civis, sentando-se sobre as caixas, malas e múltiplas embalagens, que albergam uma mistura de espólios de guerra com esbulhos de uma civilidade havia muito perdida e encaixotada, e que agora cortejavam a esperança de poderem voltar a florescer, depois de vencido o bafio e a poeira do tempo.
A primeira viatura faz-se preguiçosa e indolente à porta de saída. Soam os primeiros gritos de alegria de despedida de um inferno que por fim se extinguia. Em pé os soldados, enfardados num camuflado desbotado dos tombos da guerra, erguem a G3 como se acabados de conseguir a maior vitória das suas vidas. Os putos, menos doridos e molestados pelos sentimentos de proximidade e pieguice dos adultos, saltitavam em bandos ao lado das primeiras viaturas, alegremente contagiados pela alegria que explodia em cada uma delas.
Ao fundo, comedidamente à distância, na beira do kimbo defronte da picada por onde iríamos passar, aglomera-se um magote de gente silenciosa e mortalmente imóvel. Mulheres com crianças às costas, velhos que se vergam à frente apoiados em paus longos, raparigas adolescentes de braços cruzados que mordem uma ponta do pano que lhes envolve o corpo esguio, mulheres idosas, que se ficam mais atrás apoiando-se na última cubata, com a mão sobranceira aos olhos protegendo-se do sol.
Um kimbo inteiro.
Um kimbo inteiro veio despedir-se da tropa matchiririca que chegou um dia para fazer a guerra com armas que matam e acabou por se consumir noutras batalhas tão indesejáveis e perversas quanto aquela. Uma luta pela dignidade da vida dos que nada tinham e uma autêntica guerra contra o isolamento e as agruras duma fome ignóbil de comunidade perdida nos confins de África, uma autêntica tribo de índios ainda perdida nos confins duma Amazónia deserta, também esta em vias de extinção por via do progresso e de causas justas.
A coluna já se forma lá fora do aquartelamento iniciando preguiçosa uma caminhada de serpente, marcada por nuvens de poeira que se vão elevar nos céus assinalando a sua passagem. A picada segue inicialmente a linha da pista de aviação em direcção a Mavinga, correndo paralela ao quartel e ao kimbo.
Agitam-se lenços, braços e gritos. Uns quantos não resistem e correm até junto da picada. Crianças, adolescentes e mulheres, algumas com crianças às costas. O movimento das viaturas induz-lhes o acompanhamento destas.
Correm. Num impulso contagiante, mais gente vem descendo por entre tufos de capim seco que saltam com destreza. Já há uma pequena multidão que corre paralela à coluna acenando e gritando palavras que continuo sem entender o significado mas que desta vez dispenso tradução. Alguns correm apenas e nada dizem, nada fazem. Apenas querem correr e ficar mais um pouco junto de nós. Uma derradeira companhia, um último momento de uma despedida que já levava dias. Apenas o prolongar um pouco mais da agonia do fim de uma amizade fraterna que a proximidade confortava e induzia um pouco mais de segurança, bem-estar e protecção.
Centenas de metros percorridos e quase ninguém desiste. Corações ao alto, corações ofegantes, corações que persistem numa corrida sem fim nem proveito. Uma corrida quase suicida de ir até ao fim, de ir até cair.
Estou sentado ao lado do condutor que sorri meio estupefacto e me diz.
- Nunca vi nada disto.
Mando abrandar.
Que raio de ideia. Retemperam-se do esforço e dispõem-se a ir muito mais longe.
Mando acelerar e deixo de olhar. Fecho os olhos naufragados numa comoção que transcende aquilo que se espera de um comandante de guerra. Esqueceram-se que um militar nasce militar, não se fabrica por conveniência. Sinto que aceleramos e deixo passar mais uns metros seguros de não ver mais aquela espécie de loucura, de suicídio colectivo, um mar de baleias que dão à costa e se matam com um sorriso de prazer inexplicável recusando voltar atrás, que nos sobreleva o entendimento ou nos desvirtua a propalada razão e superioridade humana.
Por entre um marejar turvo de imagens desfocadas consigo perceber que há ainda um resistente que ao nosso lado se mantém firme de olhos em frente e um sufoco estampado no rosto. Traz vestida uma pequena tanga que esvoaça e denuncia os restos de um camuflado há muito esquartejado, que disfarça agora a sua nudez e sufoca o que resta de uma dignidade que recusa perder.
Fecho os olhos em definitivo e recosto-me no banco. Passo as costas da mão pela testa em busca de um suor que não existe e prolongo o gesto pelos cantos dos olhos, onde estrangulo uma dor que se me escorre de dentro sem que se entenda bem onde nasce. Preciso urgentemente de me explicar quando percebo que o condutor me olha de soslaio e desvia a atenção da picada.
- ... Esta poeirada...!
- ...?!
Mantenho-me assim por dez minutos e percorro em sentido inverso aqueles dois, três quilómetros já percorridos. Tento entender e não consigo. Ficamos sempre com uma imagem de um determinado bem que se faz, de umas migalhas que se oferecem e nos deixam alguma paz de espírito que nos conforta o sentimento de bem-estar connosco próprios. De acordo com as circunstâncias em que ali fomos vivendo todo aquele tempo, atribuímos um determinado significado às coisas, sempre parco quando o comparamos com os nossos padrões de vida, os nossos hábitos e anseios. Esquecemo-nos que o pouco que por vezes se oferece tem um significado tão intenso e duradouro quanto miserável é o significado das suas vidas e quão vulneráveis ficam os seus corações a gestos de pouca monta, mas tesouros de riqueza desmedida que retribuem com as únicas moedas que possuem: a solidariedade e o reconhecimento.
O condutor não pára de olhar pelo retrovisor.
- Parece que já ficaram para trás, diz espreitando dos dois lados como que receando que se tivessem passado para o outro lado.
Não arrisco a abrir os olhos para confirmar. No fundo, talvez eu quisesse guardar aquela imagem lá bem no meu íntimo. Uma prenda simbólica que nos cinzela a memória corroída por inutilidades. Uma fenda esculpida a marteladas de vida que nos deixa marcas que perduram pela vida fora e nos humedece ainda os olhos, trazendo à mente uma catadupa de sons e imagens de significado imenso e de tão grata recordação.
- Estava a ver que vinham atrás de nós até Mavinga...
Diz-me ainda o condutor, mais preocupado com aquela perseguição tenaz, que com o trilho baço de poeira da viatura da frente.
Não! Virão atrás de nós muito para lá de Mavinga. Virão atrás de nós todo o tempo que eu viver e for capaz de me lembrar deles, da sua simplicidade, dos seus corações abertos, dos seus hábitos e tradições, da sua inocência de fazer casa grande para captão e mulher do Puto, de acreditarem numa pátria que nunca viram nem sentiram como sua, de serem capazes de acreditar todos os dias em qualquer coisa sem terem nada em que acreditar.
Abro por fim os olhos. Agora sim mergulhados num verdadeiro tormento de poeira, uma extensão daquele escuro de nuvem confusa que me faz perder o norte e me baralha a mente com pensamentos descoordenados que me desalinham a recentíssima alegria de partir.
Não me sinto.
Não sei se venho. Não sei que partes de mim vêm. Não sei o que trago. Não sei o que deixo. Não sei o que perco.
Mas sei o que ganho.
E que me dói já a certeza de jamais poder com eles usufruir do que bebi dessas lições de vida sentida e dorida, trituradas a golpes magoados de pilão e sublimadas a bálsamos de batucadas ardentes vencidas pela noite dentro, até que a dor morresse e um novo dia de fé ausente nascesse.
Já não ouço vozes. Só corações soçobrando num adeus derradeiro que se extingue num último suspiro sem sinais de revolta.
Agitam-me os tombos da picada. Agitam-me os meus pensamentos desarrumados. Agitam-se-me revoltas de sentimentos de impotência e remorsos de me vir embora quase feliz. De deixar para trás um fosso com gente dentro que chegou a acreditar que tinha chegado a hora de fugir daquele gueto de guerra e poder morar livre como o vento no mato longínquo e seguro das terras do Cuando-Cubango.
- Estava a ver que vinham atrás de nós até Mavinga… (120 Km)
De soslaio vou dando miradas pelo espelho retrovisor, não sei se na esperança de ainda ver alguém, se de não ver. Mas se vir, garanto a mim próprio que mando parar a coluna e o abraço longamente até sentir que o seu coração se acalma e se me ensurdecem os gritos de despedida que ainda ouço.
Convenço-me por fim que já não vêm. Convenço o condutor a olhar apenas em frente porque é por ali que passa o futuro. Tenho pela frente quatro dias de comer quilómetros de poeira que embaciam um céu limpo sem nuvens. Um circo em movimento que se move em busca de outros públicos e os mesmos aplausos dos que querem continuar donos e senhores da terra que, para muitos, os viu nascer.
Mavinga, de passagem. Quase sem tempo para uma cerveja refrescante que nos lave estômago e a bexiga dos primeiros 120 km de um pó eterno que mastigávamos já com naturalidade, quando o sentíamos ranger entre dentes ou lacrimejar turvo que escorria pelo canto do olho levado pelo vento que nos temperava das ondas tórridas de um calor sempre sufocante.
Andar, andar. Está no andar. Dali para fora. Com calor, com sufoco, com gosto ou desgosto.
Um último relance pelo fim da picada que vinha de N'riquinha. Um último sossego de caminho vazio onde a poeira fina ainda paira no ar como cacimbo seco e colorido obstinado em ficar por ali tingindo as árvores da cor da picada.
- Estava a ver que vinham atrás de nós até Mavinga… – ainda me ressoa perturbador como vaga que me quer engolir e atirar de encontro ao rochedo do meu medo de olhar para trás…"
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