via Sopas de Pedra de A. M. Galopim de Carvalho em 28/09/09
.JÁ O CONTEI NOUTROS escritos, entrei tarde e mal preparado para a escola oficial. A aprendizagem das 1ª e 2ª classes fi-la em casa, com a minha mãe, nas muitas horas que ela dedicava à costura, recitando a tabuada e juntando as letras na Cartilha Maternal de João de Deus.
Nesse tempo, quase tudo o que vestíamos, pais e filhos, era feito em casa, das cuecas às camisas, dos vestidos aos fatos, das roupas de cama e de mesa às cortinas e cortinados, tudo ela fazia de novo, passajava, remendava e adaptava dos mais crescidos para os mais novos. Solteira, havia aprendido costura e trabalhara, sobretudo, para alfaiates, em fatos de homem. De agulha na mão ou a pedalar na máquina Singer, era trabalho que fazia por necessidade e, também, por gosto. Mais do que cozinhar para uma família, nesse tempo, com cinco filhos, sendo eu o mais novo, a mãe gostava de costurar.
Um fato que o pai deixasse de vestir era desmanchado, virado do avesso e feito de novo para o filho mais velho, aproveitando as mesmas entretelas e os mesmos forros e chumaços. Só se notava a transformação, porque o bolso do peito, onde ainda hoje se coloca um lenço a condizer com a gravata, passava a ficar do lado direito, denunciando a situação, o que agastava o filho que não tinha outro remédio que não fosse usá-lo assim até que voltasse para o cabide, à espera que o irmão mais novo crescesse. As camisas tinham, também, a sua história. Quando os colarinhos e os punhos, ao fim de um certo tempo de uso e de lavagens, ficavam roçados, cortavam-se as mangas e, com elas, faziam-se novos colarinhos. Reparada a camisa, agora de meia manga, ficava nova uma segunda vez. Mas havia uma terceira ressurreição destas peças do vestuário masculino. Inutilizado o último colarinho, ou seja, o que nascera das mangas, cortavam-se as fraldas, das quais ressurgia a última geração de colarinhos. A camisa, amputada da sua fralda original, recebia um transplante de uma qualquer camisa dadora, posta de lado para se transformar em pano de limpeza, depois de lhe serem retirados os botões.
Foi assim, entre trapos, linhas e botões, que aprendi, mal, os rudimentos da leitura, da escrita e da aritmética. Em 1940 dei entrada na Escola Oficial de São Mamede, na 3ª classe, na classe da dona Júlia, professora nova, simpática e bondosa que, praticamente, não nos batia e que, quando tinha de nos aplicar umas reguadas, como instrumento pedagógico então aceite e seguido, o fazia num jeito de deixar cair a régua sobre a mão da criança. Nada que se comparasse com os castigos dos outros mestres-escola que conheci.
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