via Sopas de Pedra de A. M. Galopim de Carvalho em 31/08/09
.HIPERMETROPIA, como se diz no jargão médico, tão ao gosto dos profissionais, sempre foi para a grande maioria do povo "vista cansada". É aquela perda progressiva de visão ao perto que a grande maioria começa a dar-se conta por volta dos 40 a 50 anos de idade. É o franzir dos olhos ou o afastar das páginas do jornal quando se desejam ler as letras mais miudinhas, é o enfiar, a tacto, a linha no orifício da agulha. Com o uso e o passar dos anos, a vista cansou-se. Felizmente que há lentes que fazem aquilo que os nossos olhos já não conseguem fazer e que é focar a imagem na retina.
Nos anos da minha meninice e adolescência, a par dos dois oftalmologistas da cidade de Évora, com consultório aberto a uma clientela mais endinheirada, ainda persistiam os oculistas ambulantes que percorriam o país, de feira em feira. Um destes feirantes, que conheci, vinha todos os anos pela Feira de São João. Montava um pequeno toldo, sob o qual estendia uma banca onde dispunha o material que trazia: dezenas e dezenas de pares de óculos, de muitos tamanhos e feitios, todos eles completos, isto é, com as lentes já montadas. Não se fazia ali qualquer avaliação prévia da deficiência ocular dos interessados. Cada um colocava nos olhos um par, ao acaso, e num pedaço de jornal e experimentava a eventual melhoria que o mesmo lhe proporcionava. Ia escolhendo e pondo de lado e, ao fim de muitas tentativas, das duas uma: ou, por sorte, encontrava uns óculos que lhe melhorassem a visão, ou acabava por desistir porque nenhum dos ali à sua disposição lhe resolvera o seu problema.
O senhor Alberto oculista, assim era conhecido, configurava um homem de uma certa idade, de pequena estatura, algo franzino, míope, de cabelo grisalho, ralo e liso. A bata, um tanto roçada pelo uso e que já não era bem branca, dava-lhe, apesar disso, o ar de eficiência e respeito profissional pretendido. De espanador na mão, ia removendo o pó, sempre muito, constantemente depositado sobre o delicado artigo exposto, e afugentando as moscas, também muitas, que lhe invadiam o espaço, fugidas do brasido naquelas tardes de finais de Junho no grande espaço térreo que ainda hoje é o Rossio de São Brás.
Era, sobretudo, gente do campo, com poucas posses, que fazia o grosso da sua clientela e, nesta, predominavam as mulheres. Dos homens só alguns sabiam ler, pelo que eram sempre poucos os que sentiam a necessidade de ir ao oculista. Viam ainda muito bem o chão onde enterravam a enxada ou o macho que lhes puxava o arado. Mas para as mulheres ver ao pé era crucial, apenas "por mor" da costura.
- Enfiar as linhas na agulha, é que me custa. É a minha neta que mas enfia. – Lamentava-se uma quintaneira, uma das muitas habitantes das redondezas que todos os anos só nesta ocasião vinham à Feira em busca do que ali podiam comprar e também para encherem a alma de multidão, luzes, cores, sons e festa, depois de meses e meses de isolamento, silêncio, solidão e luz de petróleo ou candeias.
- Passajar, vá que não vá, é a tacto. Pregar um botão é a mesma arrelia. Falta-me a vista. – Dizia ela para o senhor Alberto, que a ouvia ao mesmo tempo que procurava o par que melhor servisse esta sua possível cliente. Depois de várias tentativas e escolhido um que lhe pareceu adequado, deu-lhe uma limpeza com a flanela, que trazia no bolso superior da bata, e ajeitou-o na cara da mulher.
- Experimente lá estes, tiazinha - disse o oculista, ao mesmo tempo que lhe passava para a mão meia folha do "Notícias d' Évora". – Veja lá se consegue ler aí nas letras mais pequeninas?
- Leve lá daqui o jornal, criatura de Deus, "quê cá nã sê ler"! Eu trouxe aqui com que tirar a prova. – Disse a mulher, com ar de quem brinca com a sua própria mágoa, enquanto buscava na mala o trapinho onde espetara uma agulha e enrolara um pedaço de linha.
- Estes são uma maravilha! – Exclamou entusiasmada a quintaneira depois de, logo à primeira tentativa, ter enfiado a linha no buraquinho da agulha. Até vejo os fiozinhos mais fininhos. Louvado seja Deus!
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