via Sopas de Pedra de A. M. Galopim de Carvalho em 13/09/09
O SENHOR CAMILO era o mordomo da Sociedade Harmonia Eborense nos anos quarenta e cinquenta. De nacionalidade espanhola, dizia-se à boca pequena que era refugiado da Guerra Civil. Nunca soube ao certo se era ou não, nem isso me interessava nessa altura. Cedo conquistou a estima e a muita amizade de todos os que com ele privavam, acabando por se tornar figura querida da cidade. Barrigudo, de meia-idade, de ralos cabelos grisalhos e farto bigode a tapar-lhe metade da cara macia e sempre risonha, o senhor Camilo era uma figura carinhosa e doce, mesmo no seu "portunhol" que nunca perdeu. Este homem bom, com provas dadas de grande amizade pela nossa família, tinha um gosto muito particular pela arte dos sabores e introduziu em muitos dos seus amigos o hábito de "pinchar". A cozinha do senhor Camilo era um salão confortável, enorme, onde as frutas e os legumes, artisticamente dispostos em belos cestos e outros recipientes, eram sempre motivo de decoração. Do mesmo modo que os vinhos, as mercearias e os mais variados utensílios, de todos os tamanhos e feitios, davam ao espaço uma organização estética a condizer com os aromas sempre ali reinantes, entre os quais o do seu inseparável charuto. Ali saboreámos todas as guloseimas que sempre tinha para nos regalar. Para nós, crianças, que ali passámos muitos dos nossos tempos livres, no jogo da glória, no dominó e, mais tarde, no do bilhar, o senhor Camilo ficou-me na memória como o avô que não tive.
– Quieres un helado, hijo mio? No le digas nada, que te dé um regalo.
Nesse tempo os homens saíam sempre depois de jantar. O meu pai reunia-se com os amigos na Sociedade e aí passava o serão, as mais das vezes, em torno do bilhar. Vê-lo jogar era uma festa, sempre animada por assistência numerosa e atenta. Vê-lo ganhar enchia-me de uma vaidade gostosa. Ouvir os elogios do outro jogador, acompanhados das convencionais pancadinhas com o taco no soalho, em sinal de aplauso, faziam-me transbordar de satisfação. Tantas vezes que, nas séries de duzentas carambolas, ele as fazia de seguida, sem que o companheiro tivesse tido oportunidade de pegar no taco. As bolas, a puxar e a seguir, com massés, tabelas secas ou outras habilidades, acabavam sempre por se juntar num canto. Aí, o meu pai iniciava a "série americana", algo monótona, diga-se, mas de uma precisão extrema. Sempre juntas, as três bolas, tacada a tacada, iam dando a volta à mesa. E se alguma se afastava demasiado, era de imediato recolocada no devido lugar com uma tacada aberta que a enviava e trazia de volta, a morrer, como se dizia. Havia sempre um voluntário que, no final, contava em voz alta as derradeiras carambolas.
–... cento e noventa e sete, cento e noventa e oito, cento e noventa e nove... duzentas!
– Boa tacada! - Gritava alguém, excitado pela qualidade da última carambola, espectacular, de amplo desenho geométrico, alargado às várias tabelas.
Seguiam-se os aplausos, ruidosos, as felicitações e os comentários, só então se quebrando o silêncio em que decorriam as partidas.
– E tu, já sabes jogar? – Perguntou-me, um dia, o senhor Firmino, colega de emprego do meu pai, acrescentando – Filho de peixe sabe nadar.
Eu apenas sorria, vaidoso, encolhendo os ombros e olhando para o pai como que esperando que respondesse por mim.
– Lá irá, lá irá – dizia ele, rematando com uma frase que só mais tarde entendi. – Os chaparros crescem e as azinheiras minguam.
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