sexta-feira, 3 de abril de 2009

Era uma vez… Portugal (III)

via Carreira da Índia de Leonel Vicente em 02/04/09

A POLÍTICA CASTELHANA DE D. AFONSO V E O TRATADO DE ALCÁÇOVAS

Os Descobrimentos Portugueses, iniciados nas primeiras décadas do século XV pelo Infante D. Henrique, não deixaram de suscitar cobiça por parte de outros reinos peninsulares, sobretudo a partir do momento em que a exploração da costa africana começou a dar grandes lucros. Assim, o ritmo do avanço dos portugueses para Sul está ligado ao relacionamento com os países vizinhos, sobretudo Castela, e ao modo como conseguiram os monarcas portugueses salvaguardar para si a exclusividade da navegação e comércio no Atlântico. Vamos hoje falar de um período particularmente difícil neste processo, em que a interferência de D. Afonso V nos assuntos internos do reino de Castela colocou em perigo a primazia portuguesa nos Descobrimentos.

É bem conhecida a inclinação do rei D. Afonso V para a expansão em Marrocos e o seu desinteresse pelos problemas do descobrimento e avanço na costa africana. Desde 1460, data da morte do Infante D. Henrique, que as viagens de exploração estavam arrendadas a particulares, uma vez que não havia interesse visível do rei em chamar a si a condução das viagens. Por outro lado, esta nova fase dos Descobrimentos é marcada pelo comércio cada vez mais rendoso que os portugueses conseguiam obter nas costas africanas, uma vez que se havia já alcançado regiões onde o rico tráfico do ouro era possível. Finalmente, resta lembrar que em 1474 entrara em cena uma nova personagem, o príncipe D. João, futuro D. João II, que desde logo se interessa por este processo, vindo gradualmente a acompanhar e conduzir a empresa africana. Nesta época, Portugal havia conseguido obter do Papa importantes garantias do seu direito á exclusividade de navegação e comércio naquelas paragens, medida indispensável para tentar afastar a cobiça castelhana. No entanto, entre 1475 e 1479 o rei português promove uma política intervencionista nos assuntos internos de Castela, o que provocou a guerra aberta entre os dois países e constituíu um excelente pretexto para os reis espanhóis promoverem a navegação nas costas africanas, entrando em concorrência directa com Portugal e não respeitando a exclusividade portuguesa naquelas regiões.

Este incidente foi provocado pela morte, em Dezembro de 1474, do rei de Castela Henrique IV. A corte Castelhana estava dividida em duas facções: os que apoiavam a irmã do rei, Isabel, casada com o rei de Aragão, e os apoiantes da princesa D. Joana, sobrinha de D. Afonso V. Esta detinha a teoricamente a legitimidade, como filha do falecido rei, mas na prática a sua pretensão ao trono era posta em causa por vários sectores da corte castelhana, tanto mais que se murmurava nos bastidores que ela não era filha do rei, mas de um nobre castelhano pelo qual a rainha se havia apaixonado no passado. Ficou, aliás, para a História com o nome de Joana, a Beltraneja, cognome retirado do tal nobre castelhano, chamado Beltrán de la Cueva.

De qualquer modo, o rei português D. Afonso V empreende imediatamente uma arriscada política de intervenção em Castela, ao promover o seu casamento com a sua sobrinha e coroar-se rei de Castela e Leão, recolhendo apoio de parte da nobreza espanhola. Abriu-se, assim, um período de guerra entre os dois países, pois os reis Católicos, Isabel de Castela e Fernando de Aragão, imediatamente reagiram a esta pretensão do rei português, atacando várias praças fronteiriças portuguesas e enviando várias esquadras para as costas da Guiné.

Portugal estava, deste modo, de novo em guerra com Castela, arriscando-se agora a perder os seus direitos adquiridos no que toca á exploração do Atlântico e das costas da Guiné, o que a longo prazo poria em risco o futuro do processo dos Descobrimentos. O país arruinava-se devido ás despesas militares decorrentes da guerra. No plano militar, a situação não era melhor. A batalha do Toro, ocorrida a 2 de Março de 1476, anunciara o arrastar das hostilidades por tempo indeterminado. Porém, o cansaço provocado pela guerra, assim como os riscos que o seu arrastamento poderiam provocar para a soberania nacional, cedo obrigaram a uma rápida solução. O próprio príncipe D. João, certamente mais interessado em dedicar-se ás viagens de Descobrimento do que a dar cobertura á ambição política de seu pai, manifestara-se contra o prosseguimento da guerra. As Cortes do Reino, reunidas em Montemor-o-Novo e depois em Santarém no ano seguinte, demonstraram as dificuldades financeiras em prosseguir o conflito e assinalaram o descontentamento popular face á situação do país na época. Cresceram assim as pressões para que o problema fosse resolvido pela via diplomática. Foram então iniciadas as conversações para a obtenção da paz. As negociações foram longas e difíceis, devido á complexidade e gavidade dos problemas a resolver. Os Reis Católicos, embora numa posição mais favorável, acusaram igualmente um grande desgaste interno e uma igual vontade em resolver o conflito. A paz viria então a ocorrer algum tempo depois, em 1479, com a assinatura do Tratado das Alcáçovas, que resolveu de uma vez por todas os diversos conflitos que opunham Portugal a Castela.

O Tratado de Alcáçovas garantiu a Portugal a salvaguarda dos seus direitos sobre a navegação e comércio das costas africanas, permitindo assegurar a cantinuidade dos Descobrimentos e afastar de vez a interferência castelhana na região. Ficou estipulado que todo o espaço a sul do paralelo das Canárias e do Cabo Bojador, assim como todas as terras descobertas e a descobrir, incluindo os arquipélagos atlânticos, ficariam sob jurisdição portuguesa, obtendo ainda o direito á conquista do reino marroquino de Fez. Em troca, o rei de Portugal foi obrigado a desistir de todas as pretensões sobre o trono de Castela, assim como a sua sobrinha D. Joana. Do mesmo modo, foi obrigado a reconhecer a soberania castelhana sobre as Canárias, que desde há muito eram um foco de tensão entre os dois estados, e reconhecer a Castela o direito de conquista de Granada. Estamos, assim, perante o primeiro Tratado de partilha do Mundo, que garantia a Portugal, sob a direcção do príncipe D. João, o caminho livre para prosseguir o descobrimento da costa africana a caminho da Índia e do Oriente. Foi sob os seus auspícios que se avançou rapidamente para Sul e se contornou o Cabo da Boa Esperança, até que a viagem de Cristóvão Colombo, em 1492, ao serviço dos reis espanhóis, veio a provocar novo conflito diplomático e a assinatura de um novo Tratado, em Tordesilhas, sobre o qual comemoramos este ano o 5º Centenário.

Paulo Jorge de Sousa Pinto - texto de apoio a programas de rádio sob a designação "Era uma vez… Portugal", emitidos entre 1993 e 1996 pela RDP-Internacional, em associação com a Sociedade Histórica da Independência de Portugal

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