sexta-feira, 17 de abril de 2009

Era uma vez… Portugal (XII)

via Carreira da Índia de Leonel Vicente em 16/04/09

FERNANDO OLIVEIRA

A época dos Descobrimentos foi fértil em vidas aventurosas, de que são conhecidos tantos exemplos. Ficou célebre, entre outras, a de Fernão Mendes Pinto, descrita pelo próprio na sua Peregrinação. Mas outras personagens, igualmente interessantes e não menos curiosas, viveram no século XVI uma vida recheada de peripécias. Entre elas destaca-se uma, pouco conhecida ou mesmo geralmente ignorada. Trata-se do Padre Fernando Oliveira, de cuja vida verdadeiramente excepcional e obra ímpar vamos hoje falar.

Fernando Oliveira nasceu em 1507, em Aveiro, não se possuindo informações seguras sobre a sua ascendência. Estudou durante a sua juventude em Évora, no Convento de S. Domingos, Ordem na qual ingressa. Cedo se distinguiram os seus dotes académicos, sobretudo na disciplina de Gramática. Porém, Fernando Oliveira aliava a mais fina inteligência a um carácter irrequieto e desassossegado, que lhe causaria diversos problemas ao longo da sua vida. O primeiro surgiu cedo quando, aos 25 anos, o nosso homem, por motivos desconhecidos, deserta da Ordem religiosa e e foge para Castela. Mas alguns anos mais tarde está de regresso. Publica então uma Gramática de Língua Portuguesa, a primeira que se conhece. Até 1545 exerce a profissão de professor, chegando a dirigir a educação dos filhos de João de Barros, o célebre cronista. Fernando Oliveira ganha a amizade de gente poderosa, que mais tarde lhe seria necessária em tempos de dificuldades. Sabe-se que por esta altura viajou a Itália, desconhecendo-se os motivos de tal estadia. De qualquer modo, o seu carácter irrequieto não se adaptava a uma vida sedentária, pelo que não ficou muito tempo em Lisboa. Nesse ano de 1545 alista-se como piloto, e com nome falso, numa armada francesa ancorada no porto. Esta parte rumo a Inglaterra, com o objectivo de defrontar as armadas inglesas. Fernando Oliveira participa nos combates que se seguem, alcançando uma grande notoriedade junto do almirante francês. Acabou por ser feito prisioneiro pelos ingleses, e levado para Inglaterra. Os seus dotes diplomáticos, a sua habilidade, inteligência e cultura levaram a que alcançasse grande prestígio na corte inglesa, mesmo junto do rei Henrique VIII. Vive durante alguns anos em Inglaterra, regressando depois a Lisboa, onde entrega a D. João III uma carta do rei inglês.

As aventuras de Fernando Oliveira, a sua estadia em Inglaterra, a simpatia que sentia pela religião protestante, o contacto com o rei inglês que se havia revoltado contra o Papa, acabaram por lhe criar problemas. Pouco depois do seu regresso a Portugal é denunciado á Inquisição como hereje, preso e interrogado. Só em 1551, e devido á amizade de gente influente, é posto em liberdade. Este período difícil não o fez esmorecer no seu gosto pela aventura. Embarca imediatamente numa armada com destino a Marrocos. Esta é atacada por uma frota de piratas argelinos, e derrotada. Tal deveu-se em grande parte á má preparação dos marinheiros portugueses que navegavam na armada, que rapidamente se desorientaram, como ficou escrito numa das suas obras:

"Os marinheiros eram lavradores de Entre Douro e Minho, e soldados vagabundos de Lisboa (…); desta feição equipadas as nossas caravelas, com a vista dos Turcos desatinou a gente delas de tal maneira que ferviam de uma para outra sem ordem, como formigueiro esgravatado. Uns faziam vela sem haver vento, (…) outros cortavam as amarras sem olhar para onde viravam as proas, outros deixavam os navios como homens que não cuidavam o que faziam. (…) A graça toda foi (…) quererem depois de perdidos dar a culpa uns a outros, tendo-a todos (…)".

Foram os portugueses levados como prisioneiros para Argel, e mais uma vez conseguiu o nosso homem destacar-se, sendo encarregue das negociações com vista á obtenção do resgate. Regressado uma vez mais a Lisboa, segue para Coimbra, onde exerce o ofício de revisor na Imprensa da Universidade. Entre 1554 e 1555, Fernando Oliveira rege na mesma Universidade a cadeira de Humanidades. Mas os seus problemas não tinham ainda terminado. Fernando Oliveira era o que se pode chamar de um homem "sem papas na língua", rebelde e irrequieto; a sua sinceridade e frontalidade grangeavam-lhe grandes amizades, mas criavam igualmente grandes inimigos. De qualquer modo, em 1555 é novamente preso pela Inquisição, que lhe criou problemas até ao fim da sua vida. Não sabemos a data da sua morte, e pouco conhecemos dos últimos anos da sua vida. Apenas sabemos que, mais tarde, quando contava cerca de 58 anos de idade, D. Sebastião lhe concedeu uma pensão vitalícia de 20 000 reis.

O padre Fernando Oliveira deixou-nos algumas obras escritas, sendo as mais importantes as que tratam de náutica e construção naval, onde revela ser um profundo conhecedor. A mais famosa chama-se "A arte da guerra do mar". É um tratado de guerra naval, verdadeiramente notável e avançado para a época, onde se pode notar a lucidez e inteligência do autor ao tratar de problemas ainda actuais no nosso tempo. Eis como define ser a guerra justa:

"Mal feito é fazer guerra sem justiça, e os cristãos a não podemos fazer a nenhuns homens que seja, de qualquer condição nem estado. (…) doutro modo seria falso nosso nome, e poder-nos-iam culpar de hipócritas, como aqueles de que Cristo diz; dizem e não fazem. Os quais ele mesmo chama hipócritas, que quer dizer falsos e mentirosos. Mentiroso é aquele que apregoa vinho e vende vinagre, aquele que se nomeia pacífico e faz guerra sem justiça."

No resto da obra, o padre Fernando Oliveira traça o quadro completo da vida naval, desde a qualidade das madeiras para a construção dos navios, a escolha, treino e comportamento dos marinheiros e soldados, as tácticas navais, os equipamentos, materiais e mantimentos adequados, as condições de navegação, os ventos e marés. Tal decorria do conhecimento prático que tinha dos navios e navegação, do contacto com as gentes e lides do mar. Veja-se, por exemplo, e para terminar, o que diz acerca dos mantimentos adequados para os navios:

"O biscoito, que é a principal vitualha, de trigo é o melhor, porque o centeio e cevada são mais húmidos e frios, e o pão deles toma mais bolor e corrompe-se mais cedo; o melhor é muito seco, e sendo muito cozido segundo se requere para biscoito por tempo esboroa-se e desfaz-se em pó."

Paulo Jorge de Sousa Pinto - texto de apoio a programas de rádio sob a designação "Era uma vez… Portugal", emitidos entre 1993 e 1996 pela RDP-Internacional, em associação com a Sociedade Histórica da Independência de Portugal

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