"Chorei no dia em que mataram Amílcar Cabral"
Justino Pinto de Andrade.
Angola, 61 anos, director da Faculdade de Economia e Gestão da Universidade Católica de Luanda. Esteve preso no Tarrafal de 1970 até ao seu encerramento, a 1 de Maio de 1974. Militante do MPLA, havia sido condenado a oito anos de cadeia.
Será que acreditava que o "Império Colonial" jamais terminaria?
Nunca pensei em Portugal e nas colónias em termos de Império. Acreditei que Portugal seria capaz de construir uma comunidade de nações amigas, cada qual com o seu Governo e Parlamento, que pudessem enfrentar juntas o futuro, com mais segurança que agora. Era esse o meu sonho, e não esse império. Como assinalei no meu livro, fiquei chocado com o estado em que encontrei Angola, depois de 500 anos de presença portuguesa.
Nunca lhe passou pela cabeça que o facto de estarmos ali presos, indivíduos de várias gerações e de origens sociais diversas, era uma clara demonstração da justeza da nossa causa?
Nunca pensei nesses termos. Para mim, os prisioneiros pertenciam apenas a organizações políticas proibidas.
Qual foi a sensação que teve no dia em que fomos libertados e o senhor director ficou ali retido, no seu gabinete, à guarda dos militares?
À guarda dos militares? Não é verdade. Dei um abraço a muitos, entre eles o próprio Justino. E houve um outro, também de Angola, que me deu um abraço tão apertado que fiquei sensibilizado, ao mesmo tempo que me dizia: "acredite que sou seu amigo!"
Hoje, sabendo que Cabo Verde é tido como "um bom exemplo de gestão económica e política em África", não sente que valeu a pena a sua independência?
Em Cabo Verde, o povo não lutou pela sua independência. E os políticos combateram foi pela unidade da Guiné com Cabo Verde. Eu não concordava com isso. Por Cabo Verde, aceitaria; com a Guiné, não! Mas o povo não foi consultado. E Portugal abandonou Cabo Verde - como não abandonou os Açores ou a Madeira. É isso que nunca entendi e não posso esquecer.
Que sensação teve quando tomou conhecimento da morte de Amílcar Cabral, seu colega de escola?
A minha mulher Regina que o diga: ela chorou. E eu também. Quem não chorou?! Dormimos juntos numa caminha de solteiro, na galhofa toda a noite, lembrando-nos dos tempos passados juntos no liceu. Eles não conheceram o Amílcar. Eu conheci!
Sem a pressão da PIDE, teria ido dar a notícia aos presos da morte de Cabral, nos termos em que fez, como se fosse uma "boa notícia"?
Pressões da PIDE? Essa está boa! A PIDE estava na Praia e a do Tarrafal não metia lá o bedelho.
Lembra-se quando, no refeitório do Tarrafal, ao almoço, Justino Pinto de Andrade se recusou pôr-se de pé na presença dos pides, e depois foi de castigo para a Cela Disciplinar?
Pides no Tarrafal? Nunca os pides estiveram no Campo de Trabalho senão comigo e para acompanhar a visita de individualidades vindas da Europa e que queriam conhecer o campo. Convencidos que era a PIDE quem mandava no campo, dirigiam-se ao posto do Tarrafal, que os acompanhavam até ao campo. Só isso. Assim se constrói a mentira.
Mesmo sendo o Director do Campo, não sentiu dentro de si, como africano, uma pontazinha de orgulho por um jovem, na altura com 23 anos de idade, manter o espírito combativo com que tinha entrado para a prisão?
Nunca senti esse espírito combatente. Não houve um só preso que tivesse lá estado por denúncia ou por ordem minha. Não pus ninguém na cadeia. Enquanto lá estive, tratei-os a todos com dignidade e humanidade.
"A PIDE não decidia nada no Campo de Trabalho"
Vicente Pinto de Andrade
Angola, 59 anos, professor de Sociologia e Economia da Universidade Católica de Luanda. Na cadeia, teve um percurso em tudo idêntico ao seu irmão Justino. No ano passado, anunciou a sua candidatura a Presidente da República.
Por que razão chegou a censurar um pedaço de um discurso do Prof. Marcelo Caetano, publicado no jornal "Arquipélago", numa altura em que o mesmo já era Presidente do Conselho de Ministros?
Não me lembro. A correspondência passava pelos guardas prisionais antes de vir a mim. Isso pode ter sido uma patifaria feita por um deles, não sei, mas eu não fui.
A decisão de nos oferecer o passeio à ilha de Santiago, depois das provas desportivas que nós organizámos, foi decisão sua, ou foi preciso o aval da PIDE?
A PIDE não decidia nada, absolutamente nada, noCampo de Trabalho. A PIDE nunca soube disso.
Qual o sentimento que nutria por pessoas como eu e o meu irmão Justino, uma vez que teve acesso às cartas que nós escrevíamos aos nossos familiares e amigos?
Que era boa gente e que a mãe tinha uma grande coragem. Eu tinha muita pena deles e da mãe, sobretudo desta - já que eles estavam a cumprir uma missão.
"Estou de bem com a minha consciência"
Luís Fonseca
Cabo Verde, 64 anos, é um dos mais cotados diplomatas do país. Foi até há pouco tempo o secretário-executivo da CPLP. Antes, esteve à frente das embaixadas em Haia, Moscovo e Nova Iorque (ONU). Militante do PAIGC, esteve no Tarrafal durante três anos e meio, tendo sido libertado em Fevereiro de 1973, após o assassínio de Amílcar Cabral. Natural de Santo Antão, está conotado com o PAICV, o partido no poder.
No dia da chegada de um grupo de presos cabo-verdianos ao Campo de Concentração o Director mandou sair da cela disciplinar o poeta e preso político angolano António Cardoso e, depois de uma altercação entre os dois ordenou ao Chefe dos Guardas: "Ó Sr. Reis, dê uma tosa neste gajo" Seguiu-se uma sessão de bastonadas, após o que António Cardoso foi de novo atirado para o isolamento, a pão e água. Tratava-se de um problema pessoal com António Cardoso ou foi um pretexto para avisar os cabo-verdianos que acabavam de chegar?
Não foi isso que se passou. O que conta é uma meia verdade. O António Cardoso não se levantou quando eu passei por ele. Ora, quando eu recebia os presos no meu gabinete, levantava-me e recebia-os em pé, com todo o respeito. Exigia que me tratassem de igual modo. Admoestei-o por isso, ao que ele respondeu de uma forma intempestiva e agressiva. Mandei então um guarda pô-lo na cela disciplinar, mas ele atirou-se ao guarda, que puxou do bastão e abriu-lhe uma pequena ferida no sobrolho. Mas não foi sovado. Aliás, depois, até chamei o guarda e recriminei-o: "Não devia ter feito aquilo". Mandei-o depois para a cela. Foi isto que se passou. As cadeias têm as suas regras.
O Director correspondia-se directamente com a PIDE em Angola e Cabo Verde, como atestam ofícios disponíveis na Torre do Tombo, nos quais ele tece várias considerações sobre a melhor forma de "recuperar" os presos, indicando, por exemplo, medidas restritivas relativamente às leituras que poderiam ter. O cargo de director do Campo implicava este tipo de colaboração, fazia igualmente parte das suas atribuições receber orientações directamente da PIDE ou tratava-se de um esforço para ser bem visto pela polícia política?
O jornalista viu o meu processo na PIDE. Tive muita alegria em ver os elementos que me mostrou. Não houve cartas minhas para a PIDE. Isso são tudo fantasias e mentiras. É incrível! Não lhe disse que tinha inimigos? A verdade é que fui perseguido pela PIDE em Angola e desterrado, com a minha mulher e os nossos quatro filhos, para a Baía dos Tigres.
Qual foi o objectivo de levar o escritor Manuel Lopes a visitar os presos políticos cabo-verdianos dentro das instalações do Campo, onde jamais era permitida a entrada dos familiares dos presos? De quem partiu a iniciativa?
Foi do próprio Manuel Lopes, que pediu para visitar os presos. Eu não escondia nada do campo de trabalho, que foi visitado por muitas outras pessoas. Incluindo, por duas vezes, pela Cruz Vermelha, que só teve palavras de elogio quando comparadas com as restantes prisões de África.
Aristides Barbosa, um dos presos guineenses regressados a Bissau em 1969, beneficiou, enquanto recluso, de privilégios especiais, sendo muito amigo do Chefe dos Guardas, de nome Reis, que não se cansava de elogiar a sua inteligência e outras supostas qualidades. Qual a razão desse tratamento privilegiado?
Desconhecia completamente isso. Nunca me constou essa intimidade com o Reis. A minha intenção era recuperar de facto os prisioneiros políticos, tratando-os com toda a dignidade e humanidade, para se integrarem novamente na sociedade. Tentei inclusivamente reconciliar os homens do MPLA e da UNITA, e disse-lhes isso mesmo. Mostrei-lhe documentação que revela isso mesmo.
Aristides Barbosa foi, mais tarde, associado ao assassinato de Amílcar Cabral, tendo sido condenado à morte e executado. O Director estava a par das relações de Aristides Barbosa com a PIDE e dos planos existentes para eliminar Amílcar Cabral?
Não! Se eu soubesse, dava com a língua nos dentes, através do governador de Cabo Verde, que não deixaria de alertar o governador da Guiné. Eu era amigo e admirador de Amílcar Cabral. A minha mulher também. Era um rapaz sensato e educado. É pena que o governo central não tivesse ouvido o Amílcar como ele queria. É muita pena.
O Director esmerou-se em "recuperar" os presos políticos cabo-verdianos e várias vezes recomendou a manutenção das medidas de segurança para os manter no Campo, muito tempo depois de terem cumprido as penas a que tinham sido condenados. Afirmou a várias pessoas que se orgulhava perante Deus de cumprir o seu dever como Director do Campo. Cabo Verde é um país universalmente reconhecido como tendo grandemente beneficiado da independência, contra a qual Eduardo Fontes tanto se empenhou enquanto director do Campo. 34 anos após o encerramento do Campo, continua a orgulhar-se do seu papel nos anos em que esteve à frente da instituição prisional?
Sim. Estou de bem com a minha consciência. Não me arrependo nada de ter ido para lá. Mas eu não tinha poderes para manter os prisioneiros na prisão. É uma falsidade. Podia propor a prorrogação das penas, se os presos tivessem mau comportamento. Mas isso não aconteceu. Relativamente aos cabo-verdianos, não propus a continuação das medidas de segurança. O próprio Luís Fonseca saiu antes de terminar a pena, em liberdade condicional proposta por mim. Ele próprio me agradeceu em carta que então me enviou. Ele lembra-se certamente da carta que me escreveu - e que, infelizmente, desapareceu do meu arquivo.
"Era um funcionário, tinha que cumprir ordens"
Edmundo Pedro
Portugal, 90 anos, foi um dos portugueses que "estreou" o campo do Tarrafal quando este foi aberto por Salazar, em 1936. Era então um jovem comunista, de 17 anos. Militante do PS, é um dos dois únicos portugueses "tarrafalistas" ainda vivos. Apesar de não ter conhecido Eduardo Fontes, acedeu em colocar-lhe uma pergunta.
Porque razão demorou tanto tempo a libertar os presos, entre 25 de Abril e o 1º de Maio?
Fiquei à espera de ordens. Logo nos dias seguintes ao 25 de Abril - não posso precisar a data -, quando tive a certeza do que se tinha passado, propus o encerramento do campo e a libertação de todos os presos políticos. Fiz essa proposta ao governador de Cabo Verde, a quem competia depois apresentá-la ao Ministério. Essas eram as vias hierárquicas - o governador é quem despachava com o ministro. Estive, pois, a aguardar ordens. Não me arrependo. Era um simples funcionário. público, que tinha que cumprir ordens.
Versão integral da entrevista publicada na edição do Expresso de 25 de Abril de 2009, 1.º Caderno, páginas 18 e 19.
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