Durante a madrugada de hoje, não consegui adormecer devido ao tiroteio perfeitamente audível na Baixa. Subitamente, o pessoal do hotel decidiu fechar as portadas, evitando tiros perdidos. Sentimos o passo apressado dos militares da Guarda Municipal que ocupavam posições na Praça dos Restauradores, enquanto corriam boatos contraditórios acerca da adesão ou passividade dos regimentos aquartelados na capital. Tínhamos a perfeita consciência de que por muitas bombas artesanais que pudessem arremessar, os chamados anarquistas e carbonários - eufemismo pelos quais os republicanos se faziam tratar -, jamais poderiam conseguir qualquer resultado positivo face ás tropas de linha, bem armadas, organizadas e municiadas. O factor vital consistia na capacidade de decisão dos comandantes e pelo que ouvira da boca do coronel Cunha, a obediência à hierarquia era um facto. Desta forma, continuei seguro de uma rápida extinção do movimento subversivo que politicamente, teria de ter consequências na ordem interna. Julgava muito candidamente, ter agora o governo a oportunidade única de decretar a imediata expulsão da camarilha do directório do PRP que já há quase três décadas impedia o normal funcionamento das instituições. Muito a propósito, entabulei então conversa com um francês que há muito residia neste hotel e que para meu espanto, está plenamente convencido da inevitabilidade da derrota monárquica. Procurando retorquir com o evidente carácter minoritário e local dos republicanos, respondeu-me exactamente aquilo que todos os estrangeiros consideravam um sinal evidente: no dia 1 de Fevereiro de 1908, sendo demitido João Franco das suas funções de presidente do Conselho de Ministros, assinara-se assim a queda do regime. Condescendera-se com os criminosos, permitira-se o enxovalho público do rei, da sua família e da própria ordem constitucional. E voltando-se subitamente para mim declarou:
"Olhe que esta situação não é nova! Vivo neste país há quinze anos e o que tenho assistido durante todo este tempo, prova sobejamente tudo aquilo que lhe disse!" Dito isto, pediu-me para o acompanhar ao seu quarto, onde me mostrou alguns volumes com recortes de imprensa, cópias de actas de sessões parlamentares e uns quantos livrinhos mal amanhados que me informou serem propaganda paga pelo PRP.
" - Está a ver esta colecção? Desde já lhe digo, cher ami, que é um autêntico libelo de acusação do criminoso processo de sabotagem do Estado constitucional. Consiste num aterrador dilúvio de todo o tipo de infâmias inimagináveis além-fronteiras! Olhe e leia com atenção! Por exemplo, aqui estão excertos de alguns discursos do António José de Almeida no parlamento. Acha isto possível em qualquer país civilizado? Já viu em que termos esta gente se refere à rainha e ao resto da família? E o Costa, sabe quem é?"
Dito isto, acrescentou: - "é uma das mais desprezíveis, cobardes e turvas criaturas que conheci em toda a minha vida. Homem capaz de todas as vilanias, de um egoísmo à prova de qualquer análise de foro psicológico. Acredito no que lhe digo. Esta gente não presta, é má, incompetente e tornará a vida deste país num inferno! Por exemplo, já ouviu falar deste exemplar de literatura de cordel? É o famoso Marquês da Bacalhoa que arrastou até ao precipício a reputação da rainha e da sua entourage. Coisa mais infame é difícil de conceber e claro está, tem a chancela do directório do PRP, disso não existe hoje qualquer dúvida! Questiono-me quotidianamente acerca da atitude que as potências tomarão perante a quase certa vitória final destes bandidos e sempre lhe vou garantindo - rivalidades históricas à parte - que muito mal faz o governo de Londres em não intervir decididamente, pois o que está em causa, é também a segurança do flanco peninsular da nossa Entente Cordiale que no rei Carlos tinha um firme esteio. Com esta gentinha no poder, não poderemos contar com um exército português capaz sequer de garantir a inviolabilidade das fronteiras das suas extensas colónias africanas. Veja bem o enorme perigo que isso representa para o Império Britânico. Terão enlouquecido em Westminster?!"
Questionei-o então, cerca da verdadeira situação que o país vive, pedindo para se abstrair um pouco da guerrilha da propaganda. Respondendo, foi dizendo ..."pede-me o impossível, pois aqui é impensável tomarem-se medidas sejam elas de que carácter forem. Vigora a política da terra queimada e na verdade, só a instauração de um novo modelo constitucional que exima o soberano do jogo partidário - à semelhança daquilo que acontece na Inglaterra - poderá tranquilizar os espíritos. No entanto, os partidos nada mudarão, pois a garantia do seu sustento são os rendosos lugares proporcionados pelo exercício do poder político. O que pensa você pretenderem os ditos republicanos que aliás têm sido muito beneficiados pelos partidos rotativos? Até hoje têm sido uma arma de arremesso de ambos, na feroz disputa pelo governo e nada mais que isso! No plano social, Portugal, sendo um país de escassos recursos materiais, não está assim tão atrasado como parece à primeira vista. Possui institutos e infraestruturas. Se você quiser, pode escolher hoje ir à Ópera, ao teatro de variedades ou tão só deleitar-se com uma representação clássica. Existem boas livrarias com todas as novidades que do estrangeiro chegam. A imprensa é livre e se existe censura, esta é sempre a posteriori, quando o mal já está dito e feito. Sempre quero ver o que os ditos republicanos farão com a liberdades de imprensa de que o país ainda beneficia... tenho sérias e razoáveis dúvidas quanto a tudo isto, para nem sequer mencionar a questão eleitoral"...
Esmagado pelas inesperadas revelações, decidi perguntar a sua opinião sobre a reacção possível das forças armadas:
- "Olhe, essas também estão em dúvida, porque desde o assassinato do rei, a impunidade da propaganda nos quartéis granjeou-lhe a progressiva deterioração do respeito á hierarquia. Aqui também nada de bom parece podermos esperar. Não se trata de uma questão de cobardia, mas sim de puro e simples laissez-faire, oportunismo, falta de sentido daquilo que verdadeiramente interessa e consequentemente, talvez aceitarão a nova situação sem se manifestar... enfim, mais uma vergonhosa ignomínia!"
Soubemos então do motim a bordo de alguns dos cruzadores da armada, pelo que considerámos tornar-se de hora a hora, mais crítica a situação das forças leais ao regime. Apanhadas entre dois fogos, a única solução seria tomar de assalto a posição dos revoltosos na Rotunda, ao cimo da Avenida da Liberdade. Do directório do PRP nada se sabia, sendo muito provável uma fuga ou esconderijo enquanto espera o desenlace dos acontecimentos. A posição das unidades militares da área de Lisboa é totalmente desconhecida e suspeitámos que o silêncio indiciava a pura abstenção. Contudo, o resultado da luta ainda parecia incerto, dada a resistência oferecida pelas tropas realistas que acabaram por confinar os revoltosos à Rotunda. Tudo parecia possível ou provável e claro está, a situação residia única e simplesmente na decisão dos militares em intervir, esmagando a sedição. O porteiro do hotel acabou finalmente por nos informar que um dos caudilhos republicanos, o almirante Reis, se tinha suicidado, ao que parece por julgar perdida a causa.
Os períodos de intensa fuzilaria - quase sem baixas de parte a parte, há que afirmá-lo - alternavam com outros de aparente calma. Surpreendentemente, soubemos que ambos os lados recebiam visitas de populares, como se de uma festa ou romaria se tratasse. Aquele que vencesse, contaria com a imediata adesão das massas citadinas, sempre prontas a festejar o herói do momento, o que dava a esta situação, uma nota de ópera bufa.
Tentei durante algumas horas, telefonar para a nossa Legação, sem que tal fosse possível e assim, já a altas horas da noite, decidi ir uma vez mais a casa do coronel Cunha, procurando obter o máximo de informações credíveis. Tocando a sineta, mal pude acreditar quando o próprio me veio abrir a porta, em roupão. Da forma mais amistosa que lhe foi possível, convidou-me a entrar e pelo caminho até ao salão foi dizendo que nada sabia do que se estava a passar.
- "E a sua unidade"?, perguntei-lhe incrédulo.
- "Lá deve estar, de portões fechados e aguardando os acontecimentos"...
- "Aguardando os acontecimentos?! Mas não era suposto V. Exa. encontrar-se neste preciso momento à frente do seu regimento, honrando o juramento que fez questão em reafirmar há apenas 48 horas?!"
Empalidecendo, o coronel Cunha balbuciou algumas palavras incompreensíveis e depois, de forma mais decidida, concluiu a nossa rápida entrevista, apontando-me o caminho da saída:
- "Sabe, o meu compromisso é para com o país e não com este ou aquele regime. Os juramentos são feitos a uma determinada situação de um momento preciso. Se amanhã tivermos de proferir um outro, paciência"...
e encolhendo os ombros, deixou cair mãos, dizendo ..."é a vida"...
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