sexta-feira, 7 de novembro de 2008

A tanto chegava a abjecção!

A tanto chegava a abjecção!

via As Causas da Júlia by juliacoutinho@gmail.com (Júlia Coutinho) on 11/1/08
(uma visita aos arquivos da PIDE/DGS)
Ali estava ele na ampla sala de leitura da nova Torre do Tombo, à espera que lhe trouxessem os documentos requisitados. Consultava, finalmente, o seu processo nos arquivos da PIDE/DGS. (...)
Pessoalmente não tinha nenhum prazer em regressar a esse mundo da PIDE/DG, que só muito palidamente aflora nos seus arquivos.
Sim, lá não estão: o suplicio da tortura, as dores dos espancamentos, as alucinações da privaçao do sono, a angústia da incomunicabilidade sem fim, o medo dos interrogatórios feitos por uma roda de esbirros, o pesadelo dos longos anos de prisão, a permanente incerteza do dia de amanhã para quem caia nas garras dos torcionários e para os que viviam permanentemente perseguidos por eles, como acontecia com os clandestinos.
Bastou-lhe, no entanto, o propósito de consultar os arquivos, as formalidades para proceder à consulta e o período de espera que estava agora a viver, para que tudo isto lhe viesse a pouco e pouco à memória. Nunca tivera pressa de saber o que se dizia lá a seu respeito, ao contrário de outros que correram à Antonio Maria Cardoso «para consultar a ficha» (...) talvez por que tinha a consciência absolutamente tranquila quanto ao seu comportamento sempre que enfrentara aquela máquina de terror e de desonra e, além disso, não tinha a menos espécie de vocação masoquista. Ou seria antes por que se entregou de alma e coração à revolução, muito mais virado para o futuro que se queria construir, do que para o passado que se devia soterrar para sempre?
(...)
A primeira peça que o interessou foi um volume que constituia o auto das apreensões feitas pela Pide de uma das vezes que lhe assaltara a casa. Lá estavam alguns raros jornais e folhetos clandestinos, pois tinha o cuidado de não os guardar depois de lidos, mas muitos manifestos, declarações, apelos, tarjetas, selos dos movimentos oposicioistas, legais e semi-legais, rascunhos de artigos da sua autoria, versando matéria mais ou menos política. Achou óbvias estas apreensões. A sua indignação começou quando deparou com um diploma de curso, cuja falta lhe causara os maiores transtornos profissionais. Procurara-o por toda a parte, inclusivamente em casa dos pais e dos avós, nunca pensando que pudesse ter sido objecto de apreensão pela PIDE.
- Com que direito! - interrogou-se interiormente, mas era tanta a veemência da sua pergunta que deve ter produzido alguns sons, pois vários rostos se viraram, com expressa reprovação, na sua direcção.
O espanto indignado que começara a possui-lo não cessava de aumentar à medida que ia encontrando cartas pessoais da mulher, da mãe, dos amigos tratando questões familiares, as mais pessoais e íntimas, mesmo sobre doenças, partilhas, situações afectivas - tudo o que a devassa pidesca abocanhava.
- Com que direito? - Era a pergunta que lhe vinha das entranhas e que tinha de sufocar para não perturbar os restantes leitores.
Não conseguiu ficar sentado, quando, entre muitas outras fotografias, apreendidas, deparou com vários retratos do irmão, já então falecido, dispostos numa fila, com vistas de vários ângulos, como a indicar que se tratava de um elemento suspeito.
(...)
Veio-lhe então às mãos uma peça que continha um conjunto de cartas de «bufos» com denúncias sobre uma viagem que em certa altura fizera ao Algarve, para visitar os pais e outros familiares. Davam informações precisas das terras onde tinha estado, o que fizera, pessoas com quem se tinha encontrado.
Um das cartas informava da descida do Guadiana que tinha feito num barco de carreira - o «gasolina» - que então estabelecia ligação entre Mértola e Vila Real de Sto Antonio, acostando a Alcoutim e parando ao largo de outras povoações ribeirinhas. Referia, velhacamente, como «contactos», as conversas que tivera a bordo com diferentes pessoas, indo ao ponto de identificar algumas delas. Nunca podia ter imaginado que fosse seguido com esta minúcia pelas forças policiais. Os «bufos» algarvias deviam ter sido alertados por ordens de Lisboa.
- Caramba, como o nosso país estava minado! - Comentou para si.
Viu então a última carta do conjunto. Era um «bufo» que o denunciava como tendo participado e dirigido uma reunião em Aljezur. Tratava-se de uma rematada mentira, não estivera em Aljezur, nem de lá se aproximara, nessa viagem.
Ali estava a confirmação de como os «bufos» ao serviço da PIDE, além de denunciarem o que escutavam, observavam ou que de qualquer forma conheciam, faziam também denúncias que sabiam ser falsas, chegando a enganar os comandos repressivos, por razões de pura vingança contra os denunciados ou para mostrarem serviço, os que recebiam subsidios regulares, ou ainda para ganharem mais algum, os que eram pagos à peça, por denúncia apresentada.
- A tanto chegava a abjecção! (...)

Carlos Brito, águas do meu contar, campo das letras, 2002

Sem comentários: