Durante toda a madrugada troou o canhão e já nem sequer sabíamos se os estrondos provinham de granadas lançadas pela esquadra amotinada ou pelas peças de 75 colocadas desde a Rotunda até ao Torel (estas bem perto dos Restauradores, onde ainda me encontrava). Quem estava no hotel e conhecia bem a situação, dizia que os sediciosos venceriam, dada a abstenção do grosso do exército que facilmente teria liquidado a triste aventura. Para dificultar as coisas às unidades combatentes fiéis à legalidade, começaram a escassear as munições, pois os tiros provenientes das suas linhas tornaram-se cada vez mais espaçados, até quase cessarem por completo.
Logo pela manhã, parece que um representante do kaiser Guilherme em Lisboa, cometeu a imprudência de se deslocar com uma bandeira branca à terra de ninguém que separava os dois grupos contendores e isto foi interpretado como uma rendição das tropas fiéis, o que provocou de imediato uma enorme aglomeração de gente excitada com os acontecimentos e consequentemente, terminaram os combates.
Decidi sair à rua para ver o que se passava e soube que tinham proclamado a república na Câmara Municipal, situada num largo muito perto da Praça do Comércio. Sabemos como psicologicamente funcionam as multidões, pois se a tropa tivesse cumprido o seu dever consagrado pelo juramento, neste preciso momento andariam pelas ruas bandos populares à caça dos traidores e decerto a sede do PRP seria já pasto das chamas. Mas como o resultado foi diferente, verifiquei de imediato aquilo que decerto será o modus vivendi futuro neste país. Dois padres que iam a passar no Rossio, estavam a ser violentamente sovados e de vestes despedaçadas, submetiam-se à vindicta de uma gentuça comandada por uns tipos de aspecto inclassificável que de espingarda na mão iam organizando grupos de acção punitiva. Coisa estranha esta, uma vez que desde o fim da guerra civil há já mais de setenta anos, a Igreja passara a ser fortemente controlada pelo Estado e até bispos pertenciam a organizações maçónicas, integrando plenamente a sociedade política liberal. Em Portugal, o radicalismo anti-religioso do prp decerto mergulhará o país no caos. Os sectores mais conservadores da Igreja estarão finalmente livres para o exercício das suas actividades, pois é isso mesmo o que significa a dita separação da Igreja e do Estado. No nosso país, a igreja anglicana encontra-se de tal forma submetida, que podemos até afirmar que exercemos uma espécie de política regalista, na qual o nosso rei assume as funções aqui reservadas ao próprio Papa! Que estúpidos, tacanhos e ignorantes são estes pretensos republicanos portugueses...
O resto, é o que se previa. Adesões de última hora, delírios dignos do carnaval e pasme-se, esta gente que agora comanda, vai apresentando a revolução como coisa ordeira e decente, pois à porta dos bancos colocaram rufias armados, não vão os populares lembrarem-se de roubar os bens dos donos da revolução, quase todos homens de cabedais e posses, latifundiários, banqueiros e agiotas. Grande revolução esta, que começa logo por ser proclamada - segundo me disseram -, por um conhecido latifundiário ocioso e dado a coisas do frisson mondain, um tal Relvas!
Já para o fim da tarde, conheci os nomes das novas autoridades no poder. Na Legação sabem bem quem eles são e junto a um senil com pretensões a literato que dá pelo nome de Braga, surge logo o tal facínora Costa de quem me falou monsieur Peyrot. A estes surgem igualmente associados um entusiasta das ditaduras que se chama Basílio Teles, um desertor das hostes monárquicas de nome Machado (e que segundo me disseram tem o curioso título de barão de Joane), e alguns mais, cuja insignificância não lhes dá qualquer direito a que retenha a identidade. Não me posso esquecer do tal grosseirão parlamentar, um dr. Almeida que alegadamente é o coordenador da manufactura de bombas terroristas do partido que ajuda a dirigir. O director do hotel disse-me que este sujeito é aquilo a que vulgarmente se designa de demagogo, capaz de grandes tiradas oratórias junto da ralé, ao mesmo tempo que no Parlamento protagoniza episódios onde a linguagem escandalosa, a infâmia e o simples insulto serviram sempre para agradar aos arrebanhados contingentes de populares que assistiam às sessões. Que regime sairá daqui, é coisa que até o maior idiota pode facilmente prever, porque esta gente não se encontra minimamente preparada, não tem a confiança das grandes potências, está envolvida em numerosos crimes de sangue e pior que tudo isto, durante anos lançou prodigamente ao solo, as sementes da anarquia, do ódio e da falta de respeito pelo outro. Prevejo um futuro infalivelmente manchado pela ruína, guerra civil e rebaixamento de Portugal no concerto das nações. E desta certeza ninguém me tira.
Infelizmente, fui involuntariamente obrigado a presenciar uma deplorável cena de escabrosa cobardia e oportunismo. Quando regressava ao hotel, vi passar o tal coronel Cunha, levado em ombros por populares, coisa que me fez de imediato recordar cenas semelhantes que presenciara há uns anos no México. O inepto oficial já não ostentava no boné, a coroa regulamentar do uniforme! Aderira de imediato à nova situação e fico a pensar naquelas palavras altivamente proferidas no jantar na nossa Legação, quando afagando o sabre de cerimónia - pois apenas para isso serve e o futuro decerto o confirmará -, dizia ..."atiraremos a matar!" Que vergonha, que miserável criatura e dizem-se eles os herdeiros daqueles que talharam pela espada e pelo sacrifício este país, levando a sua bandeira ao Brasil, Índia e Japão! Como é isto possível? São estes os homens que a Europa passou a admirar após as chamadas campanhas de pacificação em África? É a desonra, o total opróbrio e isto dias após um solene juramento! Como poderá no futuro este país confiar nos militares que há séculos guardam ciosamente a sua independência? Para a segurança da Inglaterra, a partir de hoje julgo que o nosso Estado Maior deverá deixar de contar com estas forças armadas para o cumprimento dos compromissos inerentes à Aliança, pois provaram-no até à saciedade que não merecem a mínima confiança. O que seria o seu desempenho num campo de batalha numa futura grande guerra europeia? Na verdade, não tendo manifestado num heróico impulso a sua indignação pelo vil assassinato do seu próprio Comandante-em-Chefe há apenas dois anos, deixaram de contar como força de confiança e respeitabilidade. São um bando de energúmenos uniformizados, apenas cientes do seu papel consumidor de recursos de um estado que lhes dá cama, mesa e imerecido estatuto social.
Foi esta a minha experiência durante os dias de uma revolução que não o é, pois não vejo qualquer viabilidade nos megalómanos projectos redentores propalados pelos seus próceres. Não terão os couraçados, nem o tal "bacalhau a pataco". O pão não será praticamente gratuito e agora definitivamente no poder, os grandes interesses económicos farão sentir pesadamente a sua mão estranguladora dos direitos dos operários. Estou seguríssimo de uma futura e radical repressão nas ruas, de mais sangue, repressão à imprensa, fraude eleitoral, esbulhos e ataques à integridade pessoal de muitos daqueles que dentro em pouco se recordarão amargamente dos tempos em que eles próprios de tudo se serviram para espezinhar quem durante décadas lhes deu liberdade de expressão, paz social e progresso material. O tempo o dirá.
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