CRÓNICA VII - Peixe do Capim
Os preconceitos alimentares de quem vive no mato longe dos grandes rios ou lagos, marcam a diferença em relação à atitude das populações ribeirinhas que pescam e comem peixe. A pesca em Angola, tal como hoje se pratica, regista muita influencia dos métodos introduzidos pelos portugueses, mas nem sempre foi assim. De qualquer modo, não é da moderna pesca artesanal nem da indústria da pesca que vou ocupar-me, porque a minha idéia é recordar aos mais jovens, antigos métodos da pesca tradicional e velhas estórias de pescarias em épocas passadas.
O litoral, a Sul, era quase desabitado e a pesca no mar fazia-se especialmente no norte do país, onde os habitantes construiam paliçadas nas encostas da praia, utilizando paus de bordão e folhas de palmeira, para beneficiarem do movimento de vai-vem das marés. Na maré vazante, os peixes que penetram no cerco, devido à subida das águas, não podem escapar-se, retidos na precária rede e podem ser agarrados à mão.
Sistema similar ainda se utiliza hoje nos grandes rios do país, especialmente no Cuanza, Cuango, Cubango, Cassai, etc. Este tipo de actividade pesqueira é praticada normalmente pelos homens. São eles que constroem as represas com paus espetados no leito do rio e contra os quais colocam as armadilhas, cestas cónicas de vime, que aprisionam os peixes que circulam ao sabor da corrente. Diferente é a pesca lacustre, estacional e praticada essencialmente por mulheres, que fazem da pesca da «tukeya» uma festa. A «tukeya» é um peixe minúsculo, peixe de chana mais pequeno do que os chamados «joaquinzinhos» e que se encontra na região da Cameia, no leste do país, onde, com as chuvas, se formam grandes lagos temporários e de pouca profundidade.
As mulheres juntam-se em ranchos e metem-se nas águas das lagoas, praticando grandes pescarias colectivas, enquanto cantam e dançam. Trata-se de uma actividade secular, embora as referências escritas sobre esta prática tradicional datem apenas da primeira metade do século XX. As primeiras anotações escritas sobre a «tukeia» pertencem a Don António d’Almeida, com apóstrofe, homem de letras e linhagem, que foi goverrnador do Bié e Luchazes, vasto território que abrangia as superfícies das actuais províncias do Bié, Moxico e Cuando-Cubango.
Amo e senhor desse domínio imenso e ignoto, D. António quiz conhecê-lo palmo a palmo. Investigador, meteu-se pelo mato e pelas anharas que calcurreou. A pé, em tipoia, a boi cavalo, em carro boer, automóvel ou combóio, que já avançava pelas chanas do leste, Don António viajou muito e conheceu bem a região que devia administrar mas não administrou. Quando somou suficiente conhecimento sobre o território que ia governar, já se tinha esgotado o tempo da sua comissão como governador. Desse tempo e dessas viagens ficaram os seus escritos e entre eles anotações da sua passagem pelas chanas da Cameia, lugar de areais e vegetação de meia altura. Nesses relatos refere-se, reticente, ao tema fascinante da «tukeya». Don António escrevia com deleite e era minucioso na descripção de tudo o que observava, mas nem sempre investigava a fundo.
Seria meia manhã quando notou, ao longe, quase sobre a linha do horizonte, a existência de um estranho manto de prata que reflectia a luz do Sol. Era um manto que cobria as bissapas e o capim, numa vasta área. Intrigado com o fenómeno, foi perguntando aos sipaios e logo aos pisteiros, o que era aquilo, luminoso, lá ao longe. Foi aí que o governador ouviu falar pela primeira vez da «tukeya», o peixe da anhara. À medida que a caravana avançava, o manto branco desdobrava-se mais nitidamente no que pareciam peixinhos prateados, incrivelmente empoleirados nas bissapas e no capim.
O cheiro que exalavam era nauseabundo e o assombro de Don António, indescriptivel. Até onde a vista alcançava não existia rasto de água, todo o chão era de areia ou lama seca e gretada, aqui e ali plantado de arbustos entremeados no capim com mais de um metro de altura. O insólito desta paisagem é que os peixes eram peixes de verdade e estavam empoleirados na vegetação. De entre os acompanhantes, os poucos que conheciam ou eram da região, não compreendiam o assombro dos demais e com naturalidade, respondiam, simplesmente, que os peixinhos eram «tukeia». Havia os que permaneciam em silêncio ou conversavam entre si, mas a maioria, sobretudo os carregadores, que chegavam ao lugar pela primeira vez, manifestavam-se curiosos, também, perante a novidade.
Não havendo explicação lógica e à falta de outros elementos, deduziu D. António que estava perante uma espécie desconhecida de peixes voadores, que se haviam reunido, inexplicavelmente, em tão estranho lugar. E assim nasceu a lenda dos peixes voadores das anharas ou dos peixes do capim.
(Leia a seguir «Tukeya o Peixe Voador»).
- AUXILIAR DE LEITURA
- Anhara – Savana.
- Bissapa – ou Vissapa – Qualquer arbusto silvestre.
- Chana – O m.q. anhara. Savana. Lezíria.
- Luxazes – ou Luchazes – Nome pelo qual se conhecia uma vasta região do Leste de Angola.
- Tukeya – tukeia ou tuqueia – Peixe lacustre das anharas do leste da Angola.
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