via O FUTURO PRESENTE de noreply@blogger.com (jaime nogueira pinto) em 23/11/08
JORNAL DE NOTÌCIAS, 23 Novembro 2008 ," Jogos africanos"
Jaime Nogueira Pinto lança amanhã obra autobiográfica em que narra a África do seu imaginário até às experiências no terreno desde 1974 até agora.
"O meu primeiro encontro com a África e os africanos foi no sótão do n.º 28 da Rua João das Regras, no Porto. Estou quase certo disto porque nasci e vivi até aos oito anos nessa casa. O Miguel Bénis e eu tínhamos descoberto o sótão naqueles roteiros iniciáticos dos miúdos, feitos de explorações de quintais, jardins, becos, bosques, caves e outros lugares selectos de mistérios e aventuras.
E o sótão, por estar proibido às crianças, era um desses fascinantes longes de além porta que nos metemos a desvendar. E no meio de um característico cheiro a mofo e do pó dos tempos, à luz de uma clarabóia baixa, jazia um armário fechado a cadeado. Conseguimos abri-lo, e demos com uma enorme quantidade de papéis - livros, revistas, títulos de obrigações e acções de companhias falidas, pastas, dossiers, retratos.
Mas havia sobretudo livros, muitos livros, em estado desconjuntado mas ainda folheáveis. Foi aí, entre uma série de itinerários africanos de viajantes portugueses do século XIX, que nos apareceram o Capelo e o Ivens sentados numa sanzala, de chapéu colonial, carabina, pistolão e bota alta. Do mesmo armário saiu-nos o Serpa Pinto em forma de foto-desenho, de cabelo e barbas hirsutos, no seu Como eu atravessei África. E lá vinha outra vez o explorador, agora sob a legenda «Serpa Pinto e os seus moleques de confiança», sentado, armado e ladeado por dois negros com bom aspecto, também de carabinas. Pretos bons, concluíamos nós.
Esta África, descoberta com algum risco nas tardes de chuva em que a casa ficava por nossa conta, era completada por outras expedições africanas que vinham nas revistas aos quadradinhos como o Mosquito, o Mundo de Aventuras ou o Cavaleiro Andante. Nas minhas primeiras leituras de livros sem bonecos - ler livros sem bonecos era, na época, um rito de passagem - apanhei As Minas de Salomão, de Ridder Haggard, na versão do Eça de Queirós.
Vivi a fundo, com o Eça, este mundo das raças negras guerreiras, dos regimentos zulus ou impis, das danças rituais, das batalhas da colina e de Lu, onde as armas de fogo dos europeus fazem a diferença. E vivi também a morte, sempre tão presente nesta e noutras narrativas de África. A morte à espreita no campo aberto da savana com o leão, nos rios, com o crocodilo, na selva, com as cobras. Ou a que vem dos homens, das setas envenenadas, das emboscadas, dos recontros.
Era uma história paradigmática. Os brancos metidos em África sempre pelas razões mais nobres e mais sórdidas: para salvar almas e para o saque, para ajudar perseguidos, mas também para patrocinar protegidos, usando-os para controlar os outros. E naquela ficção, como na vida real, tudo quase sempre tão misturado, tão indistinto, tão próximo, apesar do aparente preto e branco. As Minas de Salomão foram, para o meu imaginário, um impressionante baptismo de fogo africano. Que iria revelar-se muito mais exacto e próximo da realidade do que eu, na altura, poderia supor."
As a go-between
"A partir de um certo momento, nestes jogos africanos, quando quis ser mediador num conflito pouco mediável, tive o risco e o privilégio de poder estar simultaneamente em dois campos. Foi uma tentativa que falhou no seu plano substancial e objectivo: a guerra continuou e a paz só veio quando houve um claro vencedor. Pelo meio, vivi com gente em risco moral e físico, gente dividida, gente animada de um pathos político verdadeiro, gente empenhada e séria, gente até ao fim.
Tinha acabado de entrar nos 50 e nunca passamos pelo tempo impunemente. Descobrimos que, se existem ideologias ou sistemas mais ou menos perversos - e alguns até intrinsecamente perversos, como Pio XII qualificava o comunismo -, os homens e a natureza humana obedecem a outras constantes e, nesse sentido, são iguais em todo o tempo e lugar. Também aqui, os quadros e o povo da UNITA e os quadros e o povo do MPLA não eram melhores ou piores uns que os outros pela sua ligação ou opção ideológica. Aliás, essa opção fora quase sempre determinada por factores étnicos, culturais, territoriais, familiares, de tempo e de circunstância. Uns tinham ido para a guerrilha contra a administração portuguesa - de Savimbi a Ndalu, de N'zau Puna a Samuel Chiwale ou a Pepetela -, enquanto outros, a maioria dos jovens quadros da UNITA do Planalto e uma parte dos quadros militares das FAA, tinham feito a tropa no exército português.
Num e noutro lado havia os corajosos, os coerentes, os decentes, os cultos, os sensíveis, os que viam os inimigos como seres humanos separados pela História e pelas conjunturas, e os oportunistas, os cínicos, os mal-formados, os facciosos, os brutos, os racistas, os pregadores do extermínio dos contrários, sempre sectários e guiados por um único fito - sobreviver, subir, enriquecer, estar no momento certo no lado da vitória. A todo o custo."
Com Chissano em Moçambique
O general João de Matos dera-me um contacto para um elemento da Inteligência militar moçambicana, o coronel Estanislau Fidelis de Sousa. Fidelis era de uma família de cristãos de Goa (Moçambique, na organização administrativa do império português, foi muitos anos governado a partir de Goa) e era um homem cortês, que se mexia bem na nomenklatura local, com fácil acesso bem acima. Através dele combinei um encontro com o Presidente da República Joaquim Chissano.
Eu sabia que Chissano sabia do meu envolvimento na política moçambicana e do meu papel junto de Dhlakama e da RENAMO, mas não estava bem certo se os relatos eram fidedignos e até que ponto. O coronel Fidelis preparou o encontro e, nas vésperas do regresso a Lisboa, num sábado ao meio-dia, enfiei o meu fato azul de riscas, próprio para chefes de Estado, ministros e presidentes de Bancos.
Chissano recebeu-me pontualissimamente, ao meio-dia e dois minutos, no jardim do seu gabinete da Presidência, na Julius Nyerere, ao lado do Polana. Foi uma conversa franca e descontraída. Detivemo-nos - é sempre uma conversa recorrente com moçambicanos - na comparação do processo de Moçambique com o processo angolano e eu, a este propósito, disse-lhe: "Presidente, o Senhor tem a sorte de ter um líder da oposição que leva a sério o seu papel e que gosta de ser líder da oposição. É uma sorte e deve tratá-lo bem, com respeito, sobretudo com respeito!"
Referia-me às queixas recebidas dos meus amigos da RENAMO e do próprio Dhlakama sobre as dificuldades financeiras do partido, e uma certa exclusão em que se encontravam os seus membros mais destacados em relação a benefícios económicos e a estatuto social. O Raul Domingos chegara a falar -me uma vez para saber se seria possível arranjar em Portugal uma linha de crédito para os deputados da RENAMO poderem comprar automóveis. Eu dissera-lhe que me parecia muito complicado, ou melhor, muito difícil.
"É que o Doutor Nogueira Pinto compreende, em Moçambique, sobretudo nas províncias, o povo vê os chefes e deputados da FRELIMO nos seus carros privados… e os deputados da RENAMO no machimbombo. E não nos levam a sério! Dizem: 'Você não é mesmo deputado! Deputado tem carro, não anda de machimbombo!'"
Assim, e embora subsistissem alguns problemas e também alguns rancores e desconfianças do tempo da guerra civil, a verdade é que, seis anos depois dos Acordos de Paz de Roma e quatro anos depois das primeiras eleições multipartidárias, a paz e a reconciliação nacional eram uma realidade. Isto alegrava-me especialmente, pois apesar de ter sido um processo em que despendera menos tempo, esforço e recursos do que em Angola, tivera nele uma maior autonomia e influência, já que os grandes deste mundo - e particularmente os do mundo paralelo dos "arranjos" e "canalizações" - tinham estado ausentes e o processo fora mais livre."
E o sótão, por estar proibido às crianças, era um desses fascinantes longes de além porta que nos metemos a desvendar. E no meio de um característico cheiro a mofo e do pó dos tempos, à luz de uma clarabóia baixa, jazia um armário fechado a cadeado. Conseguimos abri-lo, e demos com uma enorme quantidade de papéis - livros, revistas, títulos de obrigações e acções de companhias falidas, pastas, dossiers, retratos.
Mas havia sobretudo livros, muitos livros, em estado desconjuntado mas ainda folheáveis. Foi aí, entre uma série de itinerários africanos de viajantes portugueses do século XIX, que nos apareceram o Capelo e o Ivens sentados numa sanzala, de chapéu colonial, carabina, pistolão e bota alta. Do mesmo armário saiu-nos o Serpa Pinto em forma de foto-desenho, de cabelo e barbas hirsutos, no seu Como eu atravessei África. E lá vinha outra vez o explorador, agora sob a legenda «Serpa Pinto e os seus moleques de confiança», sentado, armado e ladeado por dois negros com bom aspecto, também de carabinas. Pretos bons, concluíamos nós.
Esta África, descoberta com algum risco nas tardes de chuva em que a casa ficava por nossa conta, era completada por outras expedições africanas que vinham nas revistas aos quadradinhos como o Mosquito, o Mundo de Aventuras ou o Cavaleiro Andante. Nas minhas primeiras leituras de livros sem bonecos - ler livros sem bonecos era, na época, um rito de passagem - apanhei As Minas de Salomão, de Ridder Haggard, na versão do Eça de Queirós.
Vivi a fundo, com o Eça, este mundo das raças negras guerreiras, dos regimentos zulus ou impis, das danças rituais, das batalhas da colina e de Lu, onde as armas de fogo dos europeus fazem a diferença. E vivi também a morte, sempre tão presente nesta e noutras narrativas de África. A morte à espreita no campo aberto da savana com o leão, nos rios, com o crocodilo, na selva, com as cobras. Ou a que vem dos homens, das setas envenenadas, das emboscadas, dos recontros.
Era uma história paradigmática. Os brancos metidos em África sempre pelas razões mais nobres e mais sórdidas: para salvar almas e para o saque, para ajudar perseguidos, mas também para patrocinar protegidos, usando-os para controlar os outros. E naquela ficção, como na vida real, tudo quase sempre tão misturado, tão indistinto, tão próximo, apesar do aparente preto e branco. As Minas de Salomão foram, para o meu imaginário, um impressionante baptismo de fogo africano. Que iria revelar-se muito mais exacto e próximo da realidade do que eu, na altura, poderia supor."
As a go-between
"A partir de um certo momento, nestes jogos africanos, quando quis ser mediador num conflito pouco mediável, tive o risco e o privilégio de poder estar simultaneamente em dois campos. Foi uma tentativa que falhou no seu plano substancial e objectivo: a guerra continuou e a paz só veio quando houve um claro vencedor. Pelo meio, vivi com gente em risco moral e físico, gente dividida, gente animada de um pathos político verdadeiro, gente empenhada e séria, gente até ao fim.
Tinha acabado de entrar nos 50 e nunca passamos pelo tempo impunemente. Descobrimos que, se existem ideologias ou sistemas mais ou menos perversos - e alguns até intrinsecamente perversos, como Pio XII qualificava o comunismo -, os homens e a natureza humana obedecem a outras constantes e, nesse sentido, são iguais em todo o tempo e lugar. Também aqui, os quadros e o povo da UNITA e os quadros e o povo do MPLA não eram melhores ou piores uns que os outros pela sua ligação ou opção ideológica. Aliás, essa opção fora quase sempre determinada por factores étnicos, culturais, territoriais, familiares, de tempo e de circunstância. Uns tinham ido para a guerrilha contra a administração portuguesa - de Savimbi a Ndalu, de N'zau Puna a Samuel Chiwale ou a Pepetela -, enquanto outros, a maioria dos jovens quadros da UNITA do Planalto e uma parte dos quadros militares das FAA, tinham feito a tropa no exército português.
Num e noutro lado havia os corajosos, os coerentes, os decentes, os cultos, os sensíveis, os que viam os inimigos como seres humanos separados pela História e pelas conjunturas, e os oportunistas, os cínicos, os mal-formados, os facciosos, os brutos, os racistas, os pregadores do extermínio dos contrários, sempre sectários e guiados por um único fito - sobreviver, subir, enriquecer, estar no momento certo no lado da vitória. A todo o custo."
Com Chissano em Moçambique
O general João de Matos dera-me um contacto para um elemento da Inteligência militar moçambicana, o coronel Estanislau Fidelis de Sousa. Fidelis era de uma família de cristãos de Goa (Moçambique, na organização administrativa do império português, foi muitos anos governado a partir de Goa) e era um homem cortês, que se mexia bem na nomenklatura local, com fácil acesso bem acima. Através dele combinei um encontro com o Presidente da República Joaquim Chissano.
Eu sabia que Chissano sabia do meu envolvimento na política moçambicana e do meu papel junto de Dhlakama e da RENAMO, mas não estava bem certo se os relatos eram fidedignos e até que ponto. O coronel Fidelis preparou o encontro e, nas vésperas do regresso a Lisboa, num sábado ao meio-dia, enfiei o meu fato azul de riscas, próprio para chefes de Estado, ministros e presidentes de Bancos.
Chissano recebeu-me pontualissimamente, ao meio-dia e dois minutos, no jardim do seu gabinete da Presidência, na Julius Nyerere, ao lado do Polana. Foi uma conversa franca e descontraída. Detivemo-nos - é sempre uma conversa recorrente com moçambicanos - na comparação do processo de Moçambique com o processo angolano e eu, a este propósito, disse-lhe: "Presidente, o Senhor tem a sorte de ter um líder da oposição que leva a sério o seu papel e que gosta de ser líder da oposição. É uma sorte e deve tratá-lo bem, com respeito, sobretudo com respeito!"
Referia-me às queixas recebidas dos meus amigos da RENAMO e do próprio Dhlakama sobre as dificuldades financeiras do partido, e uma certa exclusão em que se encontravam os seus membros mais destacados em relação a benefícios económicos e a estatuto social. O Raul Domingos chegara a falar -me uma vez para saber se seria possível arranjar em Portugal uma linha de crédito para os deputados da RENAMO poderem comprar automóveis. Eu dissera-lhe que me parecia muito complicado, ou melhor, muito difícil.
"É que o Doutor Nogueira Pinto compreende, em Moçambique, sobretudo nas províncias, o povo vê os chefes e deputados da FRELIMO nos seus carros privados… e os deputados da RENAMO no machimbombo. E não nos levam a sério! Dizem: 'Você não é mesmo deputado! Deputado tem carro, não anda de machimbombo!'"
Assim, e embora subsistissem alguns problemas e também alguns rancores e desconfianças do tempo da guerra civil, a verdade é que, seis anos depois dos Acordos de Paz de Roma e quatro anos depois das primeiras eleições multipartidárias, a paz e a reconciliação nacional eram uma realidade. Isto alegrava-me especialmente, pois apesar de ter sido um processo em que despendera menos tempo, esforço e recursos do que em Angola, tivera nele uma maior autonomia e influência, já que os grandes deste mundo - e particularmente os do mundo paralelo dos "arranjos" e "canalizações" - tinham estado ausentes e o processo fora mais livre."
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