via INCONFORMISTA.INFO de Miguel Vaz em 13/05/09
(Continuação da edição de uma entrevista original do blogue Dissonance)Assistimos actualmente no mundo a uma espécie de renascimento de grandes espaços na Ásia (China, Índia), no mundo muçulmano (Turquia, União Pan-Africana), na Eurásia (Rússia), na América do Sul (Brasil, Venezuela). O corolário desse renascimento é o enfraquecimento do império Americano. Segundo este processo, quais as suas previsões para a próxima década? Pensa, como alguns, que existe um risco de "fuga para a frente" (deflagração de guerras) ou, pelo contrário, acha que estamos apenas no início de um processo quase inevitável: o mundo multipolar (caótico ou nem por isso)?
A grande questão passa, de facto, por saber se nos encaminhamos hoje para um mundo unipolar, dominado pela hiperpotência americana, ou para um mundo multipolar, um pluri-versum, articulado, como acabo de dizer, em torno de diversos blocos civilizacionais. Acredito, pessoalmente, que nos dirigimos, felizmente, para um mundo multipolar onde os países emergentes, como a Índia, a China e o Brasil, desempenharão um papel cada vez mais importante. Um tal mundo não será necessariamente instável, já que a ordem geral das coisas não será posta em causa. As leis da geopolítica determinam efectivamente as linhas de fractura e os desafios futuros. O grande conflito é o que opõe, estruturalmente por assim dizer, a potência do Mar (Estados Unidos) e a potência da Terra (o continente euroasiático). Nessa perspectiva, a Rússia desempenha um papel particular, porque corresponde àquilo a que os geopolíticos chamam de Heartland, ou seja, o coração do continente eurasiático.
Paradoxalmente a esse renascimento dos espaços, a Europa parece incapaz de se unir politicamente. As divergências parecem tão fortes que Aleksandr Dugin descreve-as no seu blogue como uma oposição entre a "velha Europa" (continental) e a "nova Europa" (atlantista). Qual a sua opinião?
A impotência da União Europeia não se explica unicamente pela oposição que descreve, apesar de ela ser bem real. Como partidário da construção europeia, não deixo de constatar que a Europa, desde o início, tem sido construída ao contrário da lógica. Tem dado permanentemente prioridade ao comércio e às finanças em vez da política e da cultura. Edificou-se sem legitimidade democrática - sem que algum povo tenha sido consultado - e a partir do alto (a Comissão de Bruxelas, que se autoproclama omnicompetente) em vez de se construir a partir da base, no respeito ao princípio da subsidiariedade (ou das competências suficientes). Em lugar de procurar aprofundar as suas estruturas políticas, preferiu alargar-se apressada e imprudentemente a países que estavam apenas preocupados em beneficiar da estabilidade monetária da União e em colocar-se sob o guarda-chuva americano, aderindo à NATO. Por fim, nunca esclareceu claramente quais os seus objectivos. Trata-se de fazer da Europa um grande mercado de fronteiras abertas, sucedendo-se a integração numa vasta zona de livre comércio euro-atlântico, ou pelo contrário, construir uma Europa-potência verdadeiramente autónoma, cujas fronteiras sejam rigorosamente determinadas pela geopolítica? É evidente que os dois modelos são totalmente opostos.
Têm soado apelos (de movimentos de extrema-esquerda e diversos intelectuais gaullistas) à integração da França na Organização para Cooperação de Xangai (organismo internacional de defesa composto essencialmente por países asiáticos). Na sua posição de crítico do regresso da França ao comando da NATO, que opinião tem sobre este tema?
Não tenho opinião formada sobre esse ponto. A NATO é uma organização defensiva criada no contexto da guerra fria. Não tem qualquer razão de existir após o desmoronamento do sistema soviético. Devia ter desaparecido ao mesmo tempo que o Pacto de Varsóvia. Em vez disso, essa organização totalmente controlada pelos EUA desenvolveu-se como uma espécie de clube ocidental americano-centrado, com capacidade de intervir em qualquer lugar do globo.
Nesse contexto, a decisão da França de reintegrar as estruturas da NATO, de onde o general De Gaulle a tinha feito sair em 1966, é mais do que uma falta: é ao mesmo tempo uma traição e um crime. Em todo o caso, a participação francesa na Organização para Cooperação de Xangai não é mais que uma hipótese teórica. A questão, neste caso, é saber se o grupo de Xangai tem uma vocação meramente regional, ou mais vasta. O meu desejo seria antes ver constituir-se, inicialmente pelo menos, uma organização europeia de defesa digna desse nome, e como tal, inteiramente independente da NATO. No entanto, neste momento, não é mais do que um desejo vago.
Numa época de crise financeira, todo o mundo diz que "pode ser" que a globalização liberal tenha "estourado", e que o modelo ocidental para a humanidade não é o "melhor". Do seu ponto de vista, "de onde" virão os novos modelos civilizacionais, filosóficos e económicos?
A crise financeira mundial deflagrada nos Estados Unidos no Outono de 2008 abriu sem dúvida os olhos a um certo número de pessoas. Mas essa crise, que está longe de terminada, não será provavelmente suficiente para fazer emergir um sistema alternativo. Os novos modelos surgirão quando o sistema actual estiver verdadeiramente no seu limite, sem que se possa saber especificamente quais as formas que daí surgirão. Ainda que as coisas se possam processar muito rapidamente, há ainda bastante por fazer para "descolonizar" os espíritos, tanto que os contemporâneos tomaram o hábito de viver num sistema da mercadoria, governado pela dialéctica da posse. Toda a modernidade foi tomada pela ideologia do progresso, os recursos naturais foram considerados ao mesmo tempo gratuitos e inesgotáveis, mesmo que não sejam nem uma coisa nem outra. A verdade é que um crescimento material infinito é impossível num mundo finito. Quando o compreenderem plenamente, poderão talvez sair da obsessão económica e dessa ideologia utilitarista que constitui um dos principais corolários do universalismo ocidental (o qual, como qualquer universalismo, não é mais do que um disfarce de etnocentrismo).
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