via Centenário da República de noreply@blogger.com (Rui Monteiro) em 23/05/09
Esse esclarecimento foi feito nas candidaturas seguintes e, em particular, através do lançamento, em 1880, de um manifesto aos eleitores do círculo 98.800 Na verdade, aproveitou a oportunidade para contestar os fundamentos do demoliberalismo, os seus postulados individualistas e as suas nefastas consequências, a saber: o parlamentarismo, o empolamento da questão do regime e a secundarização do problema social. Nesta perspectiva, o republicanismo era apresentado como uma ideia política radical e anacrónica, e os seus adeptos acusados de serem <~acobinos declamadores» que, com verbalismo e demagogia, encobriam a sua visão conservadora do mundo. Deste modo, a sua propagandeada república mais não seria que - como a III República francesa estaria a mostrar - «a república do capital, assim como a monarquia dos conservadores não é mais do que a monarquia do capital». Este criticismo explicitava posições já expostas em O que é a Interna cional?, no sentido de se ter de dar prioridade à questão social: «A todos os parti dos, a todos os governos, a todos os salvadores fazemos uma só pergunta: e a reforma social? Se nos responderem com negativas ou com evasivas, tê-Ios-emos por inimigos - pouco importa que~se chamem monarquia, constitucionalismo, ou república802.>> Como se verifica, a sua posição de fundo não se modificou com o tempo, antes se precisou e aclarou. E se, em 1871 e nos anos seguintes, o seu ideal de sociedade ainda era identificado pela expressão «república democrática e social»803, crescentemente, os termos foram sendo dissociados. O entendimento da questão do regime à luz da sobre determinação ética e social relegava a dicotomia monarquia ou república para o limbo das coisas secun dárias. Por isso, no citado manifesto, a sua mensagem culminava num apelo directo aos trabalhadores para que não se deixassem enredar na teia daquela querela: «Que temos nós, Proletariado, que ver com essa estéril questão de forma? É uma questão de fanulia entre os membros da burguesia, nada mais.» A resposta republicana não se fez esperar, fosse em livro ou na imprensa.
Por exemplo, o jornal do grupo de Teófilo Braga e Carrilho Videira escrevia (anonimamente): «O Sr. ,Antero de Quental publicou finalmente o prometido manifesto aos eleitores. E um documento curioso e que dificilmente se acreditará que fosse escrito pelo autor das Odes Modernas. Nós tributamos a mais sincera admiração pelo Sr. Antero das Odes Modernas, e por isso custa-nos a crer que o antigo poeta revolucionário escrevesse aquele monstruoso agregado de palavras e frases, com que nada prova a favor do seu socialismo. Faz diversas afirmações, confundindo todos os grupos monárquicos e republicanos, sem apresentar prova alguma do que avança, e chamando burgueses a todos os que não pensam como ele. Que entende o Sr. Antero de Quental por burgueses? Francamente não o sabemos; pois que um grande número dos republicanos é formado pelos proletários, pelos operários que vivem do rude trabalho manual.» E, fazendo uma referência concreta à origem social do poeta e dos seus proventos financeiros, rematava: os proletários republicanos, «para o Sr. Antero de Quental, são burgueses, ao passo que ele próprio, que vive dos seus rendimentos sem trabalhar, como proprietário rico, considera-se como proletário!» e acordo com este anátema, o poeta socialista havia passado de correligionário a inimigo a bater. Em 1876, Carrilho Videira - um dos mais aguerridos activistas do republicanismo federalista - já o tinha apelidado de «grande traidor». Mas, com aquela proclamação eleitoral, os vitupérios atingiram o auge. «Os federais», explicava a Martins, «a quem a existência do socialista incomoda altamente, abriram contra mim uma campanha de insinuações muito tolas, com o fim de me demolirem no conceito dos operários, persuadidos que, demolido eu, acabaria o socialista.>> E estes ataques não se limitavam a contestar o seu pensamento - Teófilo tenta-o na sua História das Ideias Republicanas em Portugal (1880)807 -, mas desciam ao terreno da injúria, pois chegaram a afirmar que, ética e psicologicamente, ele era um «céptico»,«um bocado cínico», que andava a «desfrutar os operários», para se rir «deles com os amigos». E Antero não tinha dúvidas quanto à origem da campanha: todas as atoardas saíam do «laboratório merdoso do Teófilo». Não surpreende este choque directo entre o poeta e os republicanos-federais: estes eram os que mais íntimos contactos mantinham com o associativismo popular (lisboeta) e, no plano doutrinal, eram os mais receptivos à questão social; por outro lado, alguns deles haviam militado com os socialistas. Ora se, antes de 1871, o projecto federalista, ainda que subordinado à solução do problema social, havia seduzido Antero, a sua maior consciencialização acerca dos elos existentes entre as séries (a série económica e a série política), a fundamentação organicista do seu modelo social e a própria lição que ia recolhendo dos acontecimentos fizeram-no rever o entusiasmo federalista e compreender que a questão do regime era de somenos na transformação da vida social. O radicalismo populista daquela tendência seria ainda mais perigoso do que a do republicanismo moderado. Exigia-se, por isso, uma luta sem tréguas contra todas as formas de jacobinismo, imperativo que terá aumentado com as tentativas de unificação do movimento (1876) e com o aparecimento de textos que visavam fundamentá-lo à luz dos ditames da filosofia positivista e do cientismo em geral.
De facto, na segunda metade da década de 70, Teófilo Braga, que já gozava de grande prestígio como intelectual, lançou-se numa teorização apostada em justificar e em unificar o republicanismo português. E, se Antero era visto como o maior ideólogo da corrente socialista, não se estranha que aquele o tivesse escolhido como seu adversário principal, tanto mais que entre ambos existia uma evidente rivalidade no que respeita à liderança de um novo «poder espiri tual» emergente - o poder dos intelectuais.
Fosse em termos sociocráticos (Teófilo), fosse a partir de uma funda mentação ético-metafísica, os intelectuais, reactualizando a ideologia cívica da «república das letras», actuavam como novos deres, ao reivindicarem para si, e geralmente contra a Igreja, um novo poder espiritual, assente na razão crítica e na ciência, e que devia iluminar o poder temporaladequado às sociedades científico-industriais. Isto implicava a redução da política a uma mera arte (de aplicação), prática que, sem a luz dos grandes princípios - que só eles, qual vanguarda, poderiam fornecer -, ficaria nas mãos de uma burguesia medíocre. Porém, neste terreno, por mais antiéticas que tenha sido as suas posições, Antero e Teófilo não divergiam tanto como pensavam. E alguma da animosidade que, a partir de 1872, existiu entre ambos também não é indissociável da luta interna pela hegemonia no interior dessa «república» e do novo poder «intelectual» e «moral» (Renan). Com efeito, se o positivista e republicano criticava o poeta metafísico e socialista (que, para muitos, era o guia espiritual da geração), Antero também não poupava o «merdoso do Teófilo», aplicando -lhe, entre outros epítetos, os de «Dr. Caos»8IO e «Marat de soalheiro»
Fonte : Antero de Quental, de Fernando Catroga, Editorial Notícias
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