quarta-feira, 2 de julho de 2008

(título desconhecido)

via Grand Monde de Grand Monde em 02/07/08
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Número de Julho / Agosto já nas bancas.
"A filha do carcereiro", um texto sobre o fotógrafo Júlio Siza
por Ângela Camila Castelo-Branco
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Thomaz Teixeira Nunes ao lado a filha Laurentina Nunes Siza, as fotografias (albuminas) de cerca de 1865, foram posteriormente coladas nos cartões do estúdio que Manoel Nunes Siza abriu em Barbados nas Ilhas das Caraíbas. © Colecção Teresa Siza


A filha do carcereiro

Quando em 1997 Manuel Maria Carrilho convidou Teresa Siza para estar à frente do maior projecto fotográfico até então sonhado para Portugal e que culminaria na criação do Centro Português de Fotografia – CPF, na Cadeia da Relação do Porto, estava ela longe de imaginar os enredos à moda de Camilo que a espreitavam.
Em 2001 Teresa Siza adquiriu na Livraria Histórica Ultramarina em Lisboa – espaço que, infelizmente, já desapareceu, e onde reuniam alguns intelectuais à conversa com José Maria Costa e Silva (Almarjão) -, um Almanaque de Anúncios de 1873, onde descobre que Tomás Teixeira Nunes (Braga?-?), seu trisavô, era o carcereiro da Cadeia da Relação do Porto em 1873. Até então Teresa desconhecia este dado.
Tomás Teixeira Nunes, o carcereiro da Relação, tinha dois filhos: o fotógrafo Henrique Nunes (1820-1882), com estúdio desde 1863 na Rua das Flores, n.º 152, no Porto, e onde, por ventura, terá trabalhado Júlio Augusto Siza (Braga,1841-Matosinhos, 1919), antes mesmo de casar com a filha do carcereiro, Laurentina Augusta Nunes (1839-1878). Quando casou em 1865, a noiva tinha 26 anos e vivia com o pai na Relação, como aliás consta da certidão de casamento.
Em 1862 o trisavô de Teresa Siza, Tomás Teixeira Nunes, ainda não seria o carcereiro da Relação do Porto – pelo que, possivelmente, aí não conheceu Camilo Castelo-Branco. O escritor não se refere a Tomás Teixeira Nunes nas Memórias do Cárcere escritas na cela n.º 12 daquela cadeia num período conturbado da sua existência e em que a escrita funcionou como um salvatério para a sua alma amargurada.
No entanto, no curso da narrativa, editada em 1862 mas redigida enquanto durou a detenção (1/10/1860 a 16/10/1861), Camilo refere-se, pelo menos três vezes, a um carcereiro ("Fui visitado pelo carcereiro Nascimento..."; " ... tinha injuriado o inofensivo Nascimento" e "O carcereiro era um alferes de veteranos... Era de supor que o senhor Nascimento (já lá está na presença do Rei dos reis)...". Cita, igualmente, e por duas vezes um outro carcereiro ("Quando o carcereiro interino, um tal Guimarães - despedido depois como ladrão -"; "... demitindo-o virtualmente por ladrão. Chamava-se ele José Francisco Guimarães...")*.
Possivelmente Tomás Teixeira Nunes terá entrado ao serviço da Cadeia da Relação depois da libertação de Camilo e Ana Plácido. Se fosse anteriormente o carcereiro da Relação, teria, certamente, participado na autorização que permitiu as deambulações do escritor pelo estabelecimento o que facilitaria encontros - nem que fosse apenas de troca de olhares - com Ana Plácido, aí também enclausurada na ala das mulheres em virtude do caso de adultério de que ambos eram acusados. Teria, igualmente, conhecimento da autorização concedida a Camilo para, por motivos de saúde, sair a tomar ares na cidade, oportunidades que o escritor não perdia para arrostar a inimizade da burguesia portuense. Na cadeia, escreveu Camilo "Amor de Perdição", um dos grandes romances da literatura romântica portuguesa.
Tomás Teixeira Nunes seria, então e igualmente, carcereiro de Abílio da Cunha Moraes (1825-1871), o relojoeiro/fotógrafo que daí partiu para o degredo em Angola em 1863, condenado por falsificar moeda e acusado de ter subornado meia Coimbra, de jornalistas a juízes. Abílio tornar-se-ia o primeiro da família Moraes a fotografar a África ocidental portuguesa. Os filhos seguir-lhe-iam os passos, primeiro Augusto César, depois José Augusto seguido por Joaquim Júlio e finalmente pelo irmão mais novo Alfredo Adelino Cunha Moraes. Mas estas são outras estórias, também envolventes, também na senda de enredos camilianos. Do que temos a certeza é de que o carcereiro Tomás Teixeira Nunes aí viveu, na Cadeia da Relação do Porto, entre 1865 e 1873.


Henrique Nunes e Júlio Siza, ca de 1870 © Colecção Teresa Siza

Pouco depois do casamento Júlio Siza foi para Lisboa onde trabalhou para o cunhado no atelier de Fillon (1825-1881), que Henrique Nunes ficou a dirigir quando o francês se ausentou para participar na Comuna de Paris. Trabalhou, ainda, noutros estúdios da capital: na Casa Fritz e como operador do Atelier Camacho na sua casa de Lisboa na Rua Nova do Almada, n.º 116. Daí passou para o estúdio de Camacho na Rua de S. Francisco n.º 21 no Funchal, Madeira. Isto mesmo anuncia João Francisco Camacho no Diário de Notícias do Funchal de 9 de Setembro de 1881. No ano seguinte já está a trabalhar na casa Photographia Vicentes (http://www.nesos.net/imgdocs/nesos_publicar/exposicoes/museu/contacto.html) na Rua da Carreira, já depois de remodelada.
Laurentina, a filha do carcereiro, deu oito filhos a Júlio Siza, alguns não sobreviveram à nascença. Os mais velhos, Manuel Nunes Siza (Lisboa, 1867–Brasil, 1938) e Henrique Nunes Siza (Porto, 1869–Brasil, 19??), seguiram a profissão do pai que os terá iniciado no oficio já em Demerara (região da então Guiana britânica, nomeada pela alta qualidade do açúcar aí produzido). Manuel Nunes Siza teve estúdio em Barbados, W.I. (West Indies), o "Anglo-Luzo Photographic Gallery"; Manuel assinava "Nunes Siza" ou "M.N.Siza". Henrique Nunes Siza também teve estúdio, o "Union Photographic Gallery", igualmente em Barbados, nas ilhas das Caraíbas.

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Júlio Siza na casa Photographia Vicentes na Madeira, quando aí foi operador. No cartão ao lado, Júlio Siza com os filhos Manoel e Henrique Nunes, a 15 de Setembro de 1887 no seu estúdio no Guiana Britânico. © Colecção Teresa Siza.

Quando Júlio Siza resolve emigrar, entre 1884 e 1897, fixa-se na Guiana Britânica (hoje Guiana), primeiro em Demerara e depois em Georgetown onde abriu o "Lusitana Photographic Gallery", na Water Street, como podemos ler no Directório Britânico do Guiana de 1887.
Numa das suas viagens à Madeira em 1889, vai contrair o segundo matrimónio com D. Guilhermina Alves de quem terá 2 filhos. Dídio Alves Siza (Geogetown, 1890 - ?) e Ângela Alves Siza (Georgetown, 1895 – Belém do Pará 1986).
Cerca de 1897 Júlio Siza decide trocar Georgetown por Belém do Pará. O estúdio da Guiana poderá ter sido comprado pelo industrial da fotografia C.K. Jardine. Júlio Siza chegou ao Brasil a 3 de Maio de 1897, em Belém do Pará abriu estúdio na Rua do Conselheiro João Alfredo, n. º 7, a "Photographia Amazónia". Soube recentemente que de mão em mão, a Photographia Amazónia (depois Fotografia Amazónia) durou pelo menos até aos anos 1960's. Mas ninguém sabe se conservava ou não o espólio inicial.
Apresentou trabalhos nas exposições de Londres de "1884 e 1886" e em Chicago, 1893. Foi premiado com a medalha de Bronze na Colonial and Indian Exhibition (Londres 1886) e em 1892-93 recebeu a medalha de Bronze na World Columbian Exposition, (Chicago) e em 1894 a medalha de Mérito na Berbice Industrial Exhibition.

Diploma World Columbian Exposition, 1893 Chicago

Diploma World Columbian Exposition, 1893 Chicago © Colecção Teresa Siza

"Os Estados Unidos da América, por acto do seu Congresso, autorizaram a Comissão do Mundo Colombiano na Exposição Internacional que teve lugar na cidade de Chicago, Estado de Illinois, no ano de 1893, premiar com uma medalha pelo mérito específico descrito em baixo em nome de um júri que exerce o papel de examinador, após ter sido encontrado um grupo de jurados internacionais, a Júlio Siza, Georgetown, Guiana Britânica."

W.F. Terry, (President of Department Committee); Alice M. Fletcher, (Individual Judge); (?), (Director General); (?), (Chairman Executive Committee of Awards); T. W. Palmer, (President, World's Columbian Commission); J. J. Dickinson, (Secretary, World's Columbian Commission).

No diploma da medalha de Mérito que recebeu em Chicago está descrita a versatilidade do fotógrafo, permitam-me expor aqui a tradução de uma parte desse documento que concerne ao trabalho do fotógrafo português:
"Esta colecção de fotografias representa as diversas raças e gentílicos da Guiana Britânica. Os chineses e os coolies, ou indianos orientais, representam as importadas classes trabalhadoras; o negro, a raça herdada dos tempos da escravatura africana; as tribos de índios da floresta, savana e costa, a etnia nativa do país; os tipos de descendentes de espanhóis, franceses, crioulos, escoceses e ingleses. A série mostra adultos e crianças e proporciona um interessante estudo das raças e das modificações climáticas. Existem imagens de habitações nativas, assim como cenas de floresta, além de testemunhos do actual e considerável desenvolvimento do país que está sob a influência dos europeus. A totalidade da colecção é um valioso contributo para a compreensão do povo da Guiana britânica, assim como do seu ambiente."
"Fotografias que ilustram as casas, indústrias e pessoas da Guiana Britânica"

Pela descrição são as imagens reunidas num álbum com 86 fotografias que se encontra na Cambridge University Library: Royal Commonwealth Society Library. As que seguramente são de Siza representam: a High Street e a Câmara (Town Hall) de Georgetown (248x199mm); uma "vista" de uma aldeia índia nas margens do rio Masuruni, com um grupo de índios e um europeu posando em frente de uma cabana (242x191mm); uma sepultura de índio Orinoco numa clareira, com o cadáver envolto em folhas de palmeira e amarrado a um cavalete de madeira, vendo-se ainda 3 índios ao fundo (171x235mm); um acampamento de pesquisadores de ouro numa clareira, com trabalhadores europeus e da Guiana posando para o fotógrafo em frente das tendas; um homem ao fundo mostra uma bandeira inglesa (243x193mm).

Aldeia índia nas margens do rio Masuruni, com um grupo de índios e um europeu posando em frente de uma cabana (242x191mm). Fotografia de Júlio Siza. Cambridge University Library: Royal Commonwealth Society Library

Acampamento de pesquisadores de ouro numa clareira, com trabalhadores europeus e da Guiana posando para o fotógrafo em frente das tendas; um homem ao fundo mostra uma bandeira inglesa (243x193mm). Fotografia de Júlio Siza. Cambridge University Library: Royal Commonwealth Society Library

Como se pode concluir estamos perante um grande fotógrafo. Acrescente-se o facto de Júlio Siza e os dois filhos Manoel e Henrique não serem os únicos portugueses fotógrafos a trabalharem naquela época na região.

High Street e a Câmara (Town Hall) de Georgetown (248x199mm) Fotografia de Júlio Siza. Cambridge University Library: Royal Commonwealth Society Library.

Georgetown, Market Square Looking South. Fotografia de Júlio Siza. Cambridge University Library: Royal Commonwealth Society Library

Escreve Maria Cristina no blogue, Cultura Pará que: "Segundo alguns poucos e primários registros locais, o primeiro fotógrafo a chegar na Amazônia, atraído pelo exotismo da região, foi Charles Fredricks, em 1844. Depois de uma passagem conturbada, retornou em 1846 e inaugurou o 1º estúdio fotográfico, dando início a uma prática que veio confrontar o medo diante do novo, porque supunha-se que aquele invento "roubava-lhes a alma". Sem sucesso, permaneceu apenas três meses na cidade onde oferecia "em superior grau de perfeição (..) uma semelhança de seu original (...) por modicos preços".
Junto com a comitiva do Imperador D. Pedro II, que veio a Belém para a Abertura dos Portos da Amazônia ao Comércio Exterior, chegou Felipe Augusto Fidanza, que aqui se estabeleceu e se tornou o maior nome da fotografia paraense, abrindo o Photo Fidanza, maior referência na cidade, que se manteve por aproximadamente 100 anos sobressaindo-se em qualidade e solidez, não obstante os outros estabelecimentos de igual porte que já existiam no final do século, como o Photo Oliveira, inaugurado em 1884." e também a Photographia Amazónia de Júlio Siza, não referenciada por Maria Cristina mas, da maior importância. Isso podemos constar nas imagens em postais e no álbum "Belém da Saudade", algumas das fotografias do álbum foram reproduzidas em selos.
Teresa Siza mostrou-me ainda belíssimas fotografias que o bisavô fez da filha Ângela e dos netos. Fotografias à maneira do escritor Lewis Carroll, pseudónimo de Charles Lutwidge Dodson, (1832 – 1898) ou à maneira da fotógrafa inglesa Julia Margaret Cameron (1815 – 1879).
Júlio Siza era mais que um simpatizante da causa republicana e, talvez que tal facto não seja alheio ao seu regresso à Pátria em 1910, ano da implementação da Republica. Veio acompanhado da filha Júlia, o genro Joaquim Vieira, os 6 filhos do casal e a 2ª mulher; não há a certeza que tivessem regressado para ficar. Se pensavam regressar ao Brasil isso não aconteceu. Guilhermina faleceu no Porto em 1915 e Júlio Siza quatro anos depois em Matosinhos, em 1919. No mesmo ano da morte do pai, Manuel Nunes Siza abria ainda um pequeno estúdio a "Fotografia Ideal", na Rua 28 de Setembro no Reducto, bairro de Belém do Pará, Brasil. Desconhecemos a data da morte de Henrique; Manoel Siza, morreu em Belém do Pará em 1938. Teresa Siza preparou recentemente uma exposição sobre a vida do fotógrafo Júlio Siza, que inaugurou em Belém do Pará, no Brasil, no dia 3 de Junho, e que está inserida numa homenagem ao Arquitecto Álvaro Siza Vieira. Trabalha também num livro sobre o fotógrafo Júlio Augusto Siza, que terá texto de Maria do Carmo Serén e que todos aguardamos impacientemente.
Este texto só foi possível graças a Maria Teresa Melo Siza Vieira Salgado Fonseca (Matosinhos, Portugal, 19 de Fevereiro de 1948). Licenciada em Filosofia, (Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1970); Professora efectiva do ensino secundário de Filosofia, Comunicação Social e Fotografia (1970-1977); Professora do Curso Superior de Fotografia da Árvore, Cooperativa de Ensino Superior e Artístico (1984-1989); directora do Curso (1986-1989); Directora-adjunta e comissária de exposições dos Encontros de Fotografia de Coimbra (1991-1996); Directora do Centro Português de Fotografia / Ministério da Cultura desde Junho de 1997 até 2007. Fotógrafa e autora de textos sobre crítica e história da fotografia. Obrigado Teresa.

Ângela Camila Castelo-Branco, APPh.

* V. Memórias do Cárcere de Camilo Castelo Branco, edição da Parceria A. M. Pereira, comemorativa da inauguração da sede do Centro Português de Fotografia na Cadeia da Relação do Porto (Outubro de 2001), prefácio e fixação do texto de Aníbal Pinto de Castro. Referências aos carcereiros: Nascimento (pp. 98, 195 e 435) e Guimarães (pp. 251 e 309).

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