Enviado para você por Rui Moio através do Google Reader:
Fizeram bem em escolher aquela fotografia para os cartazes. A da menina que se entre esconde, laço no cabelo, dois ou três dedos na boca, a olhar para o lado esquerdo. Fizeram bem, porque os olhos são, talvez, o que mais marca neste filme, Cartas a uma Ditadura.
Entendam-me: não pretendo, nesta frase, menorizar o documentário de Inês de Medeiros. Pelo contrário: entendo sublinhar a força de algumas das imagens de arquivo que escolheu. Imagens que mais facilmente nos voltam à memória, quando - ao contrário do que então sonhávamos - a Democracia não resolveu, até agora, o problema da pobreza: a oferta de géneros a quem deles precisa, o peixe, em vez da cana de pescar.
Chamávos-lhe, então, «a caridadezinha». José Barata Moura escreveu mesmo, sobre ela, uma canção. Lembram-se? «Vamos todos brincar à caridadezinha, festa, canasta e boa comidinha». Também ele provavelmente acreditava que bastava derrubar o regime para acabar com a humilhação da esmola.
A humilhação da esmola. A de quem recebe, por certo: é isso que mostram os olhos, duros, sem um soriso, daquela mulher a quem oferecem - nas imagens de arquivo do documentário de Inês de Medeiros - enxoval para o filho recém-nascido. É uma imagem longa - como se a pessoa que filmava, constrangida, sentisse a necessidade de aguardar que a mulher finalmente sorrisse. E ela finalmente sorri, mas sem que os olhos mudem. Recebe a esmola - e devolve-nos o desconforto. A humilhação de quem recebe, mas também a humilhação de quem dá: como a senti quando, no Ramalhão, o Natal significava uma visita à «nossa» pobre, com roupinhas para a criança que esse ano tivera, porque as gravidezes se seguiam umas às outras, para alegria do país católico e conservador e das senhoras esmoleres, mães de muito menos filhos.
Os olhos. Os olhos dessa mulher no filme. Os olhos das crianças que, também elas, recebem roupas e brinquedos e guloseimas e não sorriem. Os olhos duros. Os olhos no chão. Acodem-me à memória versos de Manuel Alegre: «Pergunto à gente que passa/ por que vai de olhos no chão. / Silêncio — é tudo o que tem/ quem vive na servidão».
Era esse o país que tínhamos. O que queríamos mudar. As senhoras que falam no filme, as que escreveram a Salazar, as que ainda hoje - não são todas - não distinguem «ditadura» de «democracia» já não me iritam, magoam-me. Porque fazem parte de nós, porque aquele país está dentro de nós, os que vivemos nele, ainda que contra ele. Ainda nos sustém o riso e a alegria. Ainda nos perturba.
Ao meu lado, uma jovem ri - e tem razão. Nascida em democracia, o Estado Novo parece-lhe, sobretudo, ridículo. Não tem, como os que o viveram, o peso desses anos a endurecer-lhes os olhos, a retraír-lhes o riso.
E fico grata aos cineastas que, crianças ainda no 25 de Abril, têm vindo a preservar a memória do que vivemos: Teresa Vilaverde e «Idade Maior», Serge Tréfaut e «Um Outro País», Maria de Medeiros e «Capitães de Abril», Inês de Medeiros e estas «Cartas a uma Ditadura», entre outros. Que recusam a amnésia.
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