via NOVA ÁGUIA de Ana Margarida Esteves em 14/06/08
Che Guevara já existia antes de ter nascido (07/10/2004)Não importa que retrato. Qualquer um: sério, sorrindo, arma em punho, com Fidel ou sem Fidel, dizendo um discurso nas Nações Unidas, ou morto, com o dorso nu eolhos entreabertos, como se do outro lado da vidaainda quisera acompanhar o rastro do mundo que teveque deixar, como se não se resignasse a ignorar parasempre os caminhos das infinitas criaturas que estavampor nascer.
Sobre cada uma dessas imagens se poderia reflexionar profundamente, de um modo lírico ou de um mododramático, com a objetividade prosaica dohistoriador ou simplesmente de alguém que se dispõe afalar do amigo que descobre haver perdido porque não ochegou a conhecer. Ao Portugal infeliz e amordaçado de Salazar e deCaetano chegou um dia o retrato clandestino de Ernesto Che Guevara, o mais célebre de todos, aquele feito commanchas fortes de negro e vermelho, que se converteuna imagem universal dos sonhos revolucionários do mundo, promessa de vitórias a tal ponto fertéis quenunca poderiam se degenerar em rotinas nem emexepcismos, antes dariam lugar a outros muitostriunfos, o do bem sobre o mal, o do justo sobre oiníquo, o da liberdade sobre a necessidade.Emoldurado ou fixo na parede por meios precários, esseretrato esteve presente em debates políticos apaixonados na terra portuguesa, exaltou argumentos,atenuou desânimos, namorou esperanças.
Foi visto como um Cristo que havia descido da cruzpara descrucificar a humanidade, como um ser dotado depoderes absolutos que fosse capaz de extrair de umapedra a água na qual se mataria toda a sede, e detransformar essa mesma água no vinho com que sebeberia o esplendor da vida.E tudo isto era certo porque o retrato de Che Guevara foi, aos olhos de milhões de pessoas, o retrato da dignidade suprema do ser humano. Mas foi também usado como adorno incongruente em muitas casas da pequena e da média burguesia intelectual portuguesa, para cujos integrantes asideologias políticas de afirmação socialista nãopassavam de um mero capricho conjuntural, formasupostamente arriscada de ocupar ócios mentais,frivolidade mundana que não pôde resistir ao primeirochoque da realidade, quando os fatos vieram exigir ocumprimento das palavras.Então, o retrato do Che Guevara, testemunha, primeiro, de tantos inflamados anúncios de compromisso e açãofutura, juiz, agora, do medo encoberto, da renúnciacovarde ou da traição aberta, foi retirado dasparedes, escondido, na melhor das hipóteses, no fundode um armário, ou radicalmente destruído, como sefosse motivo de vergonha.
Uma das lições políticas mais instrutivas, nos tempos de hoje, seria saber o que pensavam de si mesmos esses milhares e milhares de homens e mulheres que em todo o mundo tiveram algum dia o retrato de Che Guevara nacabeceira da cama, ou na frente da mesa de trabalho,ou na sala onde recebiam os amigos, e que agorasorriem por haver acreditado ou fingido crer.Alguns diriam que a vida mudou, que Che Guevara, aoperder sua guerra, fez perder a nossa, e por tanto erainútil chorar, como uma criança que chora pelo leitederramado. Outros confessariam que se deixaramenvolver por uma moda da época, a mesma que fezcrescer barbas e cabelos, como se a revolução fosseuma questão de barbeiros.Os mais honestos reconheceriam que lhes dói o coração,que sentem em ummovimento perpétuo de um remorso, como se suaverdadeira vida houvesse suspendido o curso e agoralhes perguntasse, obsessivamente, aonde pensam que vãosem ideais nem esperança, sem uma idéia de futuro quedê algum sentido ao presente.Che Guevara, se assim pode dizer, já existia antes deter nascido.Che Guevara, se assim pode afirmar,continua existindo depois de morto.Porque Che Guevara é somente o outro nome do que há demais justo e digno no espírito humano.O que devemos despertar para conhecer e conhecemos,para agregar o passo humilde de cada um ao caminho de todos.
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