Por solicitação do Ministro da Justiça, o historiador Fernando Rosas coordenou uma equipa de investigadores do Instituto de História Contemporânea (IHC) da Universidade Nova de Lisboa, constituída por Inácia Rezola, Irene Pimentel, João Madeira e Luís Farinha, que procedeu ao primeiro estudo académico sobre os tribunais políticos especiais que existiram em Portugal entre 1926 e 1974. Durante esse quase meio século do século XX português, funcionaram tribunais especialmente criados para julgar o que a Ditadura Militar e o Estado Novo consideraram como "crimes políticos e sociais" ou "crimes contra a segurança do Estado". Os tribunais políticos especiais foram uma peça importante do sistema de repressão punitiva, progressivamente centrado na polícia política, que a Ditadura foi montando até 1933 e que a emergência do Estado Novo, a partir dessa data, institucionalizou duradouramente.
Foram de dois tipos os tribunais políticos especiais criados pela Ditadura Militar e o Estado Novo entre 1926 e 1974. Entre o golpe militar de 1926 e o fim da II Guerra Mundial, funcionaram, com um estatuto jurídico só estabilizado a partir de 1933, os Tribunais Militares Especiais. Era uma justiça militar que expeditivamente executava as prioridades persecutórias definidas pela PVDE. Com a derrota do nazi-fascismo no conflito mundial, a judicialização formal da justiça política fez parte do pacote adaptativo do regime salazarista aos "ventos da vitória" das democracias. Em 1945 surgiram, assim, os Tribunais Plenários, tribunais judiciais da confiança política do regime que nunca deixaram de funcionar como verdadeiro apêndice judicial da PIDE, sigla do novo nome com que foi crismada a polícia política no âmbito, também, das alterações essencialmente cosméticas do pós-guerra.
Acerca de cada um destes tipos de tribunais políticos especiais, o trabalho debruça-se sobre a conjuntura histórica em que surgiram e sobre a evolução dos seus regimes jurídicos e funcionamento; estabelece a lista dos réus e analisa as suas características sociológicas, bem como os tempos de prisão e as sentenças de que foram alvo. Apura ainda a lista dos juízes e de outros magistrados, estuda a sua actuação; faz a lista dos advogados de defesa escolhidos pelos réus e debruça-se sobre o seu papel na defesa dos direitos e liberdades fundamentais, nas mais difíceis e arriscadas condições. Finalmente, divulga-se, quer para o TME, quer para os TP, o decorrer, em concreto de alguns processos mais significativos.
Entre as várias conclusões permitidas pelo estudo, conta-se, em primeiro lugar, a de que os tribunais políticos especiais sob a Ditadura nunca deixaram de ser um apêndice judicial das prioridades repressivas da polícia política e do regime, embora eles tivessem variado com as épocas e conjunturas históricas vividas pelo próprio regime. Entre 1926 a 1945, a Ditadura Militar e o Estado Novo, na sua primeira fase, adoptaram uma forma aberta e assumidamente discricionária de justiça político-militar de que o Tribunal Militar Especial foi uma peça importante. O carácter massivo da repressão política no parto e na consolidação do novo regime contradiz alguma visão corrente deste período como de passividade e desmobilização das forças sociais e políticas que lhe resistiam.
No entanto, os 10 366 processos políticos abertos no TME que foi possível localizar, só parcialmente espelham esse fenómeno de massificação da repressão. Em primeiro lugar, porque antes e depois de 1933 a justiça política é largamente governamentalizada, administrativa e extra-judicial. Os governos da Ditadura Militar, e depois os do Estado Novo, sempre usaram o poder de impor, por tempo indeterminado, a qualquer preso político, a prisão preventiva, o internamento em colónias penais, o banimento do país ou a fixação da residência, mesmo sem sentença condenatória em julgamento ou sequer culpa formada, e para além do cumprimento da pena quando ela existia. Em segundo lugar, porque o TME só começa efectivamente a funcionar em 1933 e antes, as várias soluções de tribunais militares ensaiadas em 1927, 1930 e 1932 apenas funcionaram limitadamente, o que facilitou o exercício discricionário de uma justiça extra-judicial por parte dos governos e da polícia política relativamente a uma massa crescente de presos políticos.
O carácter de massa de repressão política transparece na própria origem dos processos remetidos para os tribunais militares, até à criação da PVDE, em 1933. Os processos políticos chegados chegam das comarcas, das empresas, das autarquias locais, da PSP e da GNR, deixando entender que a polícia política só progressivamente terá ganho a capacidade de se afirmar - designadamente sobre os militares - como centro do sistema de justiça política, assegurando o "abastecimento" processual do TME. A afirmação da hegemonia da PVDE não significou contudo o abrandamento da repressão política massiva neste período. A conjuntura da Guerra Civil de Espanha, entre 1936 e 1939, com os seus 8293 presos políticos 3, mais de 2000 por ano, representa o pico de toda a história da repressão do regime (entre 1936 e 1939 só 21% dos presos políticos serão levados a julgamento no TME).
No período de 1926 a 1945, em Portugal, o Governo, as autoridades militares e depois a PVDE actuam como investigadores, julgadores, carcereiros, com uma ilimitada capacidade de investigar, interrogar, torturar, prender, condenar, deportar, exilar, banir, tudo por tempo indeterminado e em cadeias privativas da polícia, sem qualquer limitação legal específica, mesmo que formal. Fruto desta situação, os julgamentos que acabavam por realizar-se no TME (só 3 975 dos mais de 10 000 processos constituídos atingem a fase de julgamento), quase não chegam a ter nem uma aparência de legalidade formal. A maioria dos presos políticos não vai a julgamento (73% do total, de acordo com o registo de entrada de presos na PVDE entre 1933 e 1945); dos que são constituídos réus no TME, para uma amostra de 5 588 réus, 48% são condenados e mais de metade são despronunciados (784), absolvidos (1264) ou amnistiados (851).
O que de forma alguma quer dizer que, muitos deles, não tenham cumprido, às ordens da PVDE, períodos mais ou menos longos de prisão sem julgamento. Por outro lado, as penas aplicadas pelo TME foram prioritariamente penas correccionais, o que pouco significava, pois vários presos conheceram longas penas de prisão sem julgamento, para, pouco antes da sua libertação, no fim da guerra, virem a ser julgados e condenados em penas de prisão correccional. No entanto, se é difícil estabelecer com fiabilidade o tempo de prisão efectiva, foi possível concluir que para uma amostra de 1 276 presos, o tempo médio de encarceramento entre o julgamento e a sua libertação foi superior a 4 anos. Se a isto se somar o tempo de prisão antes do julgamento, obtém-se um elevado padrão médio de confinamento efectivo (1).
(1) Dados retirados da «Introdução» e da «Conclusão» do estudo sobre os tribunais militares e plenários da ditadura militar e do Estado Novo, entregue ao Sr. Ministro da Justiça, em Junho de 2008.
(Continua)
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