sábado, 30 de janeiro de 2010

O FIM DA LIVRARIA BUCHHOLZ

O FIM DA LIVRARIA BUCHHOLZ

via Justino Pinto de Andrade by Justino on 1/5/10
1. O encerramento, por falência, da Livraria Buchholz, entristeceu-me. Conheci a Buchholz e frequentei-a. Sempre que regressei a Lisboa, visitei-a. Fi-lo, às vezes mesmo, pelo simples prazer de a percorrer. É que eu sempre gostei de livrarias, de livros, mesmo até sentir o prazer de apreciar as suas estantes e prateleiras.

2. Em Luanda, nesta Luanda de agora, não posso dar vazão ao meu prazer pelas livrarias, por várias razões: porque elas existem em número exíguo; porque as poucos que existem, nem sempre possuem o conforto que gosto de desfrutar; porque estacionar o meu carro em local próximo e seguro é já uma miragem.

3. No período colonial, em Luanda, havia não só livrarias consagradas, mas, igualmente, livreiros consagrados. Em muitos casos, os livreiros eram nossos cúmplices. Alguns desses livreiros tiveram um papel importante na minha tomada de consciência e no meu enriquecimento cultural. Houve livreiros que nos guardavam livros declaradamente proibidos, ou que tornavam suspeito quem os lesse. Tínhamos a Lello, o Centro do Livro Brasileiro, a Argente Santos, a Minerva, quer a da Baixa, quer a do São Paulo.

4. Herdámos do nosso pai e da nossa mãe o hábito da leitura e o respeito pelos livros. Qualquer um deles possuía os seus próprios livros. Por isso, fui assíduo utilizador dos livros da Biblioteca da Câmara e também da Biblioteca do Liceu Salvador Correia, onde estudei. Mantive esse estilo de vida, enquanto vivi em Lisboa. Daí o meu carinho especial pela Buchholz.

5. A Buchholz teve sempre frequentadores de referência. Por norma, eram homens e mulheres da sociedade portuguesa: políticos, gente de cultura, académicos, também gente ligada a profissões liberais. Foi também muito requisitada por estudantes do ensino superior. Antes de frequentar a Buchholz, eu já ouvira falar dela como uma livraria de referência. Tinha, pois, um enorme simbolismo.

6. A Livraria Buchholz não estava muito exposta. Estava recatada, quase sobre a esquina da Rua Duque de Palmela, na Baixa da cidade. Era emblemática. Dentro da Buchholz respirava-se conforto e serenidade. Um ponto de encontro seguro. Depois, procurava-se um outro local para trocar um bom dedo de conversa, geralmente nos seus arredores. Ou então, caminhava-se num qualquer dos sentidos da Avenida dos Restauradores. Fiz isso algumas vezes.

7. Quando alguém me perguntasse onde nos poderíamos encontrar, em função do interlocutor e da conversa, eu escolhia o local. Se fosse alguém com os mesmos interesses intelectuais e científicos que eu, a resposta era quase inevitável: "Na Buchholz, na Duque de Palmela. Depois, logo se vê para onde vamos!"

8. Foi na Buchholz que estive com o Mário Pinto de Andrade, no nosso derradeiro encontro, poucos dias antes da sua morte. Eu, o Mário, o Vicente. Coube ao Mário escolher o local. Afinal, a Buchholz também exercia sobre ele um forte poder atractivo. Inclusive, o Mário era conhecido, e até mesmo amigo de algumas das suas empregadas. Registei, por exemplo, a excitação de uma delas, sua amiga de longa data, quando nos reconheceu como parentes. Também ficámos amigos, até hoje. Revelou a mim e ao Vicente que um dia esteve tentada a seguir o Mário, a ir trabalhar com ele, quando ocupou o cargo de Ministro da Informação e Cultura na Guiné-Bissau, no governo do também já falecido Luís Cabral. São memórias que perduram, que o tempo não apaga… Elas dão um sentido melancólico à vida, emprestado-lhe um singular significado.

9. Uma das características marcantes no Mário era a modéstia. Por isso, levou-nos a almoçar num restaurante relativamente simples, de classe média. O restaurante era ali mesmo junto da Buchholz – ficava do outro lado da rua. Comemos e falámos de muita coisa. Naturalmente, falámos de cultura, da família, de política. Trocámos informações. Esse meu último encontro com o Mário foi quase uma conspiração. Foi um encontro de velhos camaradas de trincheira política. Gente que partilhou cumplicidades.

10. Do ponto de vista anímico, o Mário estava bem, e parecia determinado a retomar o percurso político. Disse-nos que era a altura de fazermos de novo alguma coisa em conjunto. Assim, contribuiríamos, mais uma vez, para a pluralidade de ideias. Urgia, pois, criar um novo espaço democrático, retomar o perfil do MPLA original, reagrupar a gente sã que nele existia. O Mário queria a nossa opinião, queria saber se isso ainda tinha viabilidade, no novo contexto.

11. Aí estava novamente o Mário a convocar-nos, naquele que seria o seu derradeiro esforço. Traçámos projectos de intervenção. Parecia que, por dentro daquele corpo frágil, reemergia o espírito do leão. Por isso, senti uma tremenda comoção por vê-lo ali, firme, determinado, entusiasta, depois de ter feito tudo o que fez na vida… Ainda com vontade de retomar o percurso da nossa terra.

12. Voltámos à Buchholz para nos despedirmos das suas amigas. Seguimos, então, em busca de uma farmácia, porque o Mário sentia-se ligeiramente apoquentado. Era, aparentemente, um simples mal-estar que, disse-nos, estar a sentir desde que regressara de uma recente viagem de pesquisa nos Estados Unidos, onde estivera a investigar, para fundamentar os seus próximos trabalhos. Que o Embaixador de Angola, Manuel Pedro Pacavira, o convidara a almoçar em sua casa. Que, depois desse almoço, nunca mais se sentira bem. Era aquele mal-estar persistente… Que comprara também um computador portátil, pequeno, barato, mas muito prático, etc. Estávamos, pois, a caminho da farmácia, ali próximo, na subida da Bramcamp. Nós os três: eu, o Mário, o Vicente. Duas gerações separadas por cerca de 20 anos. Mas duas gerações unidas na causa. Para além do sangue…

13. Ainda tivemos um pouco de tempo para dar uma saltada até à Feira do Livro de Lisboa, no Parque Eduardo VII. Depois, o último adeus ao Mário. Até hoje…

14. Passados dias, o seu estado de saúde agravou-se. Foi hospitalizado no Egas Moniz, em Lisboa. Posteriormente, transferido para um hospital de Londres. E aí faleceu, dois ou três dias antes de fazer 62 anos de idade. Tudo isso aconteceu em Agosto de 1990. Para mim, este último encontro deu mais simbolismo à Livraria Buchholz.

15. Foi na Buchholz também que tomei conhecimento da vontade do Presidente da República, Eduardo dos Santos, de dotar o seu gabinete de livros de economia, penso que para servir de material de consulta para os seus assessores e colaboradores. Foi um seu assessor na época, meu ex-aluno na Universidade, que foi à Buchholz comprar livros, por especial recomendação de Eduardo dos Santos, segundo me disse. Fiquei satisfeito. Era bom que assessores de Eduardo dos Santos tivessem um mais fácil acesso aos livros, para melhor o ajudarem no entendimento da complexidade da matéria económica. Eis, pois, mais outro motivo para o simbolismo da Buchholz.

16. Priorizei sempre essa Livraria para me municiar de livros. Foi também lá que, de uma assentada, comprei os primeiros 15 livros de Direito para a minha filha Katila, quando ela ingressou na Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa. Fiz-lhe, então, a recomendação de que deveria constituir a sua própria biblioteca. Que deveria cuidar dela, como se de um filho se tratasse. Ela ouviu-me e assim faz.

17. Para mim, a Livraria Buchholz é memória. Ela deixa saudades, marca um pouco o meu percurso intelectual e científico, tal como a Lello, o Centro do Livro Brasileiro, a Biblioteca da Câmara de Luanda.

18. A Buchholz não resistiu às incidências da crise mundial que abalou muitos bolsos e descomandou muitas contas. Por isso, ela faliu. No confronto inevitável entre as receitas e os encargos, perderam as receitas, e sobressaíram os encargos. Muitos clientes deixaram de poder honrar os seus compromissos. Desaparece, assim, a Buchholz, deixando uma fila enorme de credores e uma dívida de 1,3 milhões de euros.

19. Foi esse, pois, o destino de um dos emblemas da Lisboa Científica e Cultural, uma marca que ajudou a formar gerações. Não só gerações de portugueses mas, igualmente, gerações de angolanos e, seguramente, de outras nacionalidades.

20. Quando eu regressar a Lisboa, vou sentir a sua falta. Sei que o seu espaço vai continuar a ser uma Livraria da Coimbra Editora. Se mantiver o velho perfil, terei apenas que me habituar à sua nova denominação. Se não, terei que "emigrar" para um outro espaço da cidade, em busca do conforto espiritual que a Buchholz me transmitia.

21. Seguramente, daqui a muitos anos, talvez ela já não seja lembrada com este sentimento de perda. Afinal, a minha geração, e também as outras gerações passarão, tal como passou a geração do Mário Pinto de Andrade.

MORREU CODÉ DI DONA

via Justino Pinto de Andrade by Justino on 1/13/10
1. Em cerca de três meses, a música e a cultura cabo-verdianas perderam dois grandes vultos: Manuel d'Novas e Codé di Dona.

2. Manuel d'Novas era um renomado poeta e compositor, e faleceu aos 28 de Setembro último, aos 71 anos, no Hospital Baptista de Sousa, na Ilha de São Vicente. Segundo se disse, a sua morte adveio das sequelas de um AVC (Acidente Vascular Cerebral) que o atingira há três anos, em Portugal.

3. Manuel d'Novas foi dos mais privilegiados compositores de mornas e coladeiras. Nasceu na Ilha de Santo Antão, tendo feito, porém, quase toda a sua vida no Mindelo, a capital da Ilha de São Vicente, que o adoptou como um filho. Foi autor de algumas das mais belas músicas interpretadas por Cesária Évora ou por Bana. Nunca me canso de ouvir, por exemplo, "Apocalipse", "Cumpade Ciznone", "Lamento d'um Emigrante", "Nôs Morna".

4. Pensar em Manuel d'Novas faz-me também retornar às letras e às músicas de B. Leza, como "Eclipse", "Noite de Mindelo", ou mesmo "Lua Nha Testemunha", esta, um autêntico hino. E porque não as composições de Eugénio Tavares?

5. Dizem os estudiosos da música cabo-verdiana que a morna nasceu na Ilha da Boavista, passando depois para as restantes ilhas do Arquipélago, "adaptando-se e tomando a feição psíquica de cada povo", como escreveu Eugénio Tavares.

6. Sobre a morna, Eugénio Tavares disse ainda mais: "Na Boavista, a morna não se elevou na linha sentimental; antes, planou baixo, rebuscando os ridículos de cada drama de amor, cantando o perfil caricatural de cada episódio grotesco, ironizando fracassos amorosos, sublimando a comédia gentílica das Moias (naufrágios de navios tão frequentes nas costas da ilha), tudo no estilo leve e arrebitado que afeiçoa a vida despreocupada do povo boavisense, o mais alegre, e o mais amorável de entre as gentes do Arquipélago. Música elegante psicatada de sorrisos finos e harmonias ligeiras. Na Ilha Brava em que os homens casam com o mar, como no poema de Pierre Loti, a dulcíssima estância da saudade, mercê da vida aventureira e trágica do seu povo, a morna fixou os olhos no mar e no espaço azul, e adquiriu essa linha sentimental, essa doçura harmoniosa que caracteriza as canções bravenses. Elevou-se de riso e pranto, e finou, amorosamente, pelo portuguesíssimo diapasão da saudade." Oh, meu Deus, quão poética é esta prosa de Eugénio Tavares…

7. Desde pequeno, tive o ensejo de ouvir canções de Eugénio Tavares. Muito em especial, e com um tremendo enlevo, eu ouvia "A Canção ao Mar – O Mar Eterno", de que destaco aqui as primeiras estrofes:

"Oh mar eterno sem fundo sem fim
Oh mar das túrbidas vagas, oh! mar
De ti e das bocas do mundo a mim
Só me vem dores e pragas, oh mar

Que mal te fiz, oh mar
Que ao ver-me pões-te a arfar, a arfar
Quebrando as ondas tuas
De encontro às rochas nuas

Suspende a zanga um momento e
escuta
A voz do meu sentimento na luta
Que o amor ascende em meu peito
desfeito
De tanto amar e penar, oh mar"

Na minha infância, a minha mãe, Maria Luzia, filha de um cabo-verdiano de origem judaica, natural de Santo Antão, cantava esta música, quase em pranto. Era para nós quase uma cantiga de ninar. Esse e outros poemas marcaram-me o sentimento e despertaram a minha curiosidade para a leitura dos livros de Baltazar Lopes, Manuel Lopes, Aurélio Gonçalves, Gabriel Mariano, Onésimo Silveira e outros vates da cultura do Arquipélago.

8. A Morna, tida como o género musical mais representativo do povo cabo-verdiano, foi, por isso, um objecto do mais aprofundado estudo. A Coladeira, mais ritmada que a morna, em alguns casos, tida mesmo como uma aceleração da morna, é hoje também uma fiel companheira das noites cabo-verdianas. Ao longo do tempo, a coladeira foi sofrendo múltiplas influências, quer vindas do outro lado do Atlântico, quer mesmo idas do nosso próprio continente.

9. Coube agora a vez a Codé di Dona, falecido no dia 5 de Janeiro, no principal hospital da cidade da Praia, o Hospital Agostinho Neto. O texto do seu obituário dizia apenas que foi vítima de "doença prolongada".

10. Quando leio ou escuto a expressão "doença prolongada" ganho inteira liberdade para imaginar qualquer maleita, da mais conhecida e corriqueira até à mais sombria e enigmática. Porém, do que li e, depois, percebi, provavelmente Codé di Dona tenha sido mais uma vítima da muito temida doença pulmonar – a tuberculose. Seja essa, seja outra doença, afinal, o que mais importa é que, no dia 5 de Janeiro, Cabo Verde perdeu um dos seus mais emblemáticos compositores. Codé di Dona foi justamente consagrado como Rei do Funaná.

11. O Funaná é um género musical e uma dança nascidos no interior da Ilha de Santiago, a ilha mais africana das dez ilhas que compõem o Arquipélago de Cabo Verde. Com a adaptação de novos instrumentos musicais electrónicos que se juntaram à gaita (o acordeão) e ao ferrinho, o Funaná ganhou espaço não somente na capital, mas, igualmente, nas outras ilhas.

12. Daí, seguramente, o sentimento colectivo de perda que invadiu todo o Arquipélago de Cabo Verde, quando se anunciou a passagem para a eternidade desse grande músico e compositor, Codé di Dona. É assim que se tece o tempo e se compõe a história, umas vezes com felizes entradas, outras com tristes saídas…

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O monárquico sem anel de armas e sem voz enrolada

monárquico sem anel de armas e sem voz enrolada

via COMBUSTÕES by Combustões on 1/23/10
João Camossa (1925-2007) era um homem extravagante. Dele se dizia, com o escarninho da malévola estupidez - daquela que olha aos sapatos, à gravata e aos trapos para emitir certificado de respeitabilidade - que parecia um deserdado, um homem da rua, enfiado no seu sobretudo de grossa lã 365 dias por ano, a hirsuta barba amarela queimada pelo tabaco, o monte de papéis e livros de alfarrabista sob o braço. O mundo está cheio de medíocres, de homens e mulheres proclamados normais e gente de bem que nunca acrescentaram um grama à fatalidade da biologia do nascer, do alimentar-se e do morrer. A mediania apagada, ansiosa por fugir à sanção do olhar repressor, desejosa de gregarismo, olha para estes estranhos dissidentes com medo, por neles julgar ver a solidão, a exclusão e a pobreza aterradoras. Para pessoas que se esgotam em jogos sociais, no parece-bem, na moralzinha bem apresentada das palavras [e sobretudo da intolerância], João Camossa era um incómodo.


Contudo, quem dele se abeirasse e o ouvisse discorrer sobre as suas paixões - a História, a doutrina portuguesa, a tradição, o património literário e o património monumental, a olissipografia - quedava-se mudo, não se atrevendo cortar o fio do raciocínio informado, a profundidade da reflexão, o brilho das metáforas, o provocador das associações que ia entretecendo. Camossa não mandava calar nem levantava a voz, mas as conversas em que participava depressa se transformavam em monólogos.


Tive a honra de o conhecer em 1982, quando, presidente da JM (Juventude Monárquica) desenvolvi com o meu irmão Nuno, o João Portugal, o André Folque Ferreira e o Eduardo Rosa Silva a primeira grande experiência de activismo monárquico no Portugal pós-25. Ao contrário de muitos dirigentes do PPM, barricados nas inibições que a sua condição de aliados menores da AD aconselhava e ansiosos em agradar aos desertos mentais da tecnocracia iletrada, João Camossa viu naquela centena de rapazes e raparigas de vinte anos a grande esperança do ideal monárquico. Na altura, lembro-me, chamaram-nos tudo e até a processos disciplinares, com audições formais e depoimentos recorreram. O nosso crime ? Falar em monarquia, cobrir as paredes de Lisboa com cartazes monárquicos, exibir a azul-e-branca, vencer sucessivas eleições nos liceus de Lisboa, participar nos comícios da AD com centenas de jovens estridentes que quase deixavam à margem as poderosas JC e JSD. Confesso que cometemos erros, mas esses erros, produto da imaturidade, deviam ter sido interpretados como erros do crescimento e não punidos com a severidade desses castelos de papel que são os estatutos. É a velha tara jurídica das direitas portuguesas !


Ora, voltando a Camossa, ele era demasiado lúcido para cobrir o que quer que fosse com o manto da poesia. Era um radical pessimista antropológico mas dava-se às pessoas. Lembro-me que desfiava a imensa bagagem literária e escolhia, precisamente, as obras mais sombrias sobre os homens, as suas parvoíces e maldade, as intolerâncias graníticas, as teimosias e crueldade. Um dia trouxe-me Os Vulcões de Lama, o último romance de Camilo e disse: "Miguel, leve-o e sorva-o até à última página". O homem que se apresentava como Anarco-Miguelista conhecia demasiado a história e os homens para sobre eles esperar grande coisa. Noutra circunstância, Camossa entrou na sede do PPM, então na Rua da Escola Politécnica. Vinha radiante, trazendo na mão o jornal Rex, orgão informativo da Juventude Monárquica. Eu havia escrito o editorial que era, confesso sem remorso, uma chuva de Orgãos de Estaline em palavras. Camossa disse-me: "se vocês pudessem, amanhã teríamos a bandeira hasteada na Praça do Município". Foram precisos vinte e tal anos para que o sentido da nossa militância fosse compreendida. No fundo, as pessoas não mudam. Eu sou, sem tirar, aquilo que era há vinte anos e tenho a supina alegria de ver que o mundo mudou e que hoje, aquilo de que fomos acusados é moeda corrente. Estávamos, pois, vinte anos adiantados sobre o tempo.

No próximo dia 26 de Janeiro, merecidamente, o Centro Nacional de Cultura vai prestar homenagem a esse amigo. Camossa foi presidente do CNC, como poderia ter sido mais, muito mais, se os monárquicos de anel e voz enrolada não olhassem aos sapatos, à gravata e aos trapos antes de olharem para os homens. Está por fazer a antologia dos seus muitos escritos dispersos por revistas, jornais e boletins. Talvez se faça, finalmente, justiça a João Camossa, o grande incompreendido.

"Foi em tudo a antítese da vulgaridade. Inteligente e profundo, muito original-o que não quer dizer que fosse irrealista nem muito menos ingénuo- no modo como via o presente e como preconizava o futuro. Desconcertante, ousado e por vezes genial nas intervenções públicas, escapando a toda e qualquer disciplina, muito anárquico na doutrina, e no modo de vida. Sem embargo, era naturalmente sociável e um bom companheiro. Político à maneira antiga, da política como jogo- entretenimento supremo da existência e como luta pura por ideais, avesso ao poder, que entendia que corrompia. Foi um devotado adepto da Monarquia, cujo ideal serviu fielmente por toda a vida. Associava, no seu ideário, restos de integralismo lusitano ao seu característico anarquismo comunalista e à sua sólida opção democrática, pugnando indefectivelmente pela liberdade e pelos direitos da pessoa humana. Com a ironia permanente à flor da pele, frequentemente sarcástico, céptico em muita coisa, mas amando sempre a sua portugalidade."

D. Duarte de Bragança (2007)

Está na moda dizer mal da democracia

via BLOGUE REAL ASSOCIAÇÃO DE LISBOA by João Mattos e Silva on 1/15/10

Infelizmente, muitos dos ataques à democracia encontram fundamento exclusivo na chamada crítica realista; ou seja, nos factos, nos comportamentos e na etiologia das enfermidades de que esta forma de governo padece. Salta à evidência que as democracias são pouco expeditas, lentas, muitas vezes inoperantes, amiúde convivem com a impreparação e o amadorismo, a fulanização e o trepadorismo de gente absolutamente falha de escrúpulos. A democracia, dizem os seus inimigos inteligentes, é um insulto à desigualdade constitutiva das sociedades, é um absurdo pois impede a governação longa e avisada, tem de se render ao apetite das massas e da irracionalidade, é errática, tende a ser confiscada por demagogos e satisfaz-se com a maioria numérica. Lembram os cépticos da democracia que a esta é, em Aristóteles - nesses terríveis libelos anti-democráticos que são os livros III e VII da Política - a degenerescência da Politeia, tal como a oligarquia o é da aristocracia e a tirania da monarquia. A tradição anti-democrática tem uma história longa que se confunde com o mais profundo pensamento filosófico. Na Ética a Nicómano predica-se a justiça como finalidade da política. Se a democracia vive derrancada na busca do benefício para cada um, é, ipso facto, irreconciliável com o bem-comum da Cidade.
Contudo, se forma alguma de governo cumpre as exigências do Estagirita, essa é, contraditoriamente, a democracia. Satisfaz-nos plenamente a abordagem negativa.
- É em democracia que os cidadãos não são privados de cidadania;
- É em democracia que as constituições não são mudadas ao sabor do interesse de quem governa;
- É em democracia que o direito prevalece;
- É em democracia que a liberdade e a auto-determinação florescem;
- É em democracia que a felicidade é negociada e alcançada pelo bebate.
A democracia deve, necessariamente, ser limitada, vigiada e fiscalizada, pois a democracia transporta a pulsão totalitária a que Talmon se referia para escândalo dos democratas nas suas Origins of Totalitarian Democracy. Essa democracia messiânica, fundada na crença, comporta-se como uma tirania [benigna], mas não deixa de ser uma tirania. Ora, pelo conselho da história, verifica-se que a única forma bem sucedida de limitação dos abusos e excessos da democracia se radica na aceitação do convívio da democracia com um poder não democrático - isto é, não eleito - mas que lhe lembra aquilo que não é passível de revisão. Isto sempre aconteceu. As mono-arquias nunca existiram, senão na forma degenerada de tirania. As monarquias sempre foram abertas à participação, à representação, à oposição e não houve monarquia pré-moderna que não se submetesse ao voto, à fiscalização e às sansões legal como real.
Hoje, as monarquias ditas constitucionais (constitucionais sempre o foram na forma das constituições históricas que lembravam os limites e as obrigações do Rei) lembram ao transitório aquilo que é permanente. A democracia representa o homem; a monarquia representa a sociedade, a história, a memória que determina e alimenta a vontade dos homens viverem juntos em sociedade. A democracia exprime a volubilidade, o passageiro, o contingente; ou seja, é absolutamente humana e alimenta-se do sonho peregrino da justiça e igualdade para todos. A democracia é um admirável exercício de determinação e só há cidadãos onde estes podem, em concorrência, falar, escrever, opinar, criticar, eleger e legislar. A democracia é ruptura permanente e deve ser, sempre, disjuntiva, como as políticas o devem ser para o Estado não se afundar no ritualismo.
Por seu turno, a monarquia é um contrato longo de estabilidade, o anteparo da Política, o inculcador de comportamentos conjuntivos. Só quem ainda não compreendeu a força moral tremeda que a monarquia insufla na democracia continua a perseverar no erro trágico de a considerar inimiga da soberania popular.

Miguel Castelo Branco em COMBUSTÕES

http://combustoes.blogspot.com/

António Lopes de Almeida: A coragem e o medo

via As Causas da Júlia by juliacoutinho@gmail.com (Júlia Coutinho) on 1/25/10
Antonio Lopes de Almeida, Maria da Piedade (mulher) e Suzete (filha)

No início do ano passado homenageei aqui António Lopes de Almeida, assassinado pela PIDE, no Aljube, em 1949. Na altura baseei-me nos arquivos da PIDE/DGS e nos jornais da época. Só mais tarde tomei conhecimento de um livro de 2008, - Mulheres da Marinha Grande, histórias de luta e de coragem -, da autoria de Júlia Guarda Ribeiro, com uma excelente recolha de testemunhos, entre os quais o de Maria da Piedade Almeida, viúva daquele malogrado operário vidreiro da Marinha Grande.
É esse testemunho que vos deixo aqui, nos 61 anos da morte de António Lopes de Almeida.



É com lágrimas na voz, pois as lágrimas dos olhos já secaram há muitos anos, que Maria da Piedade Almeida fala do dia 16 de Janeiro de 1949.

- O meu marido foi preso nesse dia. Era um Domingo, de manhã. Ele ainda estava a dormir, porque nessa noite tocara no grupo "Os Pinantes" até de madrugada. É que o meu António, para além de bom operário vidreiro, era um grande músico. Aos 14 anos já tocava clarinete. Depois aprendeu a tocar saxofone, trompete, trombone de varas e acordeão. Tocava muito bem. E compunha.Na banda era o único que escrevia músicas. A "Marcha dos Pinantes" , que ele compôs , foi muito aplaudida. E tantas outras músicas... Os olhos de Maria da Piedade ainda brilham com o amor dos 20 anos, quando fala do seu Toni.
- Era um grande músico e um grande homem. Não imaginam o prazer que tinha em ensinar os miúdos a ler. Porque eram ainda muito miúdos quando começavam a trabalhar no vidro. Alguns nem tinham tempo para ir à escola.

-Mas estava eu a falar do dia em que o meu António foi preso.
Ouvi bater à porta, fui abrir e lá estavam dois homens desconhecidos que me perguntaram: "É aqui que mora o Sr. António Lopes de Almeida?"
Pela má catadura deles, percebi logo que eram pides e até um calafrio me subiu pela espinha. A custo, perguntei: "Que lhe querem?" . "Não é da sua conta. Vá chamá-lo, que temos pressa".
Fui acordá-lo e ele, ainda ensonado, veio à porta.
"Apronte-se, que tem de nos acompanhar à esquadra?" . "À esquadra? Para quê?" . "Precisamos de ter uma longa conversa". "Tenho de me lavar, barbear e…" "Vá, rápido. Não temos o dia todo"

-Eu tinha o coração mais apertado que um nó cego. Fui ver a menina. Ainda dormia naquela paz e doçura que só uma criança tem enquanto dorme. Dei-lhe um beijo e as lágrimas correram-me desatadas. Foi aí que o meu medo começou. Medo pelo que se estava a passar e medo pelo que poderia vir a acontecer. Mas estava longe de adivinhar todo o horror que se passou. Saí do quartinho da minha filha e fui ter com o meu marido. Tentei aparentar coragem, mas o pavor crescia dentro de mim. Pôs-me o braço sobre os ombros, como se me quisesse dar forças e disse baixinho:"Não vai ser nada. É tempo de eleições e a pide quer meter medo às pessoas. Amanhã estou de volta, vais ver".

A menina acordou entretanto e veio ter connosco. O pai pegou-a ao colo e voltámos os três à salinha onde os pides esperavam.Um deles disse-lhe: "Olhe, diga à patroa que lhe leve o almoço, que isto vai durar". Foi assim, como se eu não estivesse presente, como se eu não contasse para nada.
E levaram-no. A menina, com 5 anitos, assistiu à prisão do pai e também nos seus olhos se espelhava o medo. Perguntou: "Para onde vai o pai'" "Teve de sair". "Para onde foi?" "Foi com uns senhores, mas não demora." "Foi com uns senhores, mas não demora". Daí a minutos perguntava outra vez: "Quando vem o pai?" "Olha, minha querida, vamos fazer o almoço e levamos-lho, está bem?"
E levei-lhe o almoço ao quartel da GNR, junto do Mercado Velho, a Resinagem. Ele então pediu-me :"Traz-me roupas, Piedade. Vão levar-me para Lisboa, para interrogatório". Fiquei sem fala. O pavor parece que se tornou uma vaga enorme que me estava a submergir. Custava-me a respirar. De boca aberta, parecia um peixe fora da água. "Vamos no comboio da tarde, Piedade. Vá, calma, não há-de ser nada. Eu não fiz nada. São umas perguntas para amedrontar ". Lá consegui respirar e vim para casa, porque não queria que ele me visse chorar mais. Preparei uma maleta e aprontei a minha Suzete para nos irmos despedir dele à estação. A menina, ainda tão pequenina, mas parecia que percebia o que se estava a passar. Muito abraçada ao pai, a chorar, não o queria largar. Era de cortar o coração. E eu, ao abraçá-lo, disse-lhe ao ouvido "Oh, Toni, eles vão fazer-te mal. Vão torturar-te, mas tem coragem. Não dês o nome de ninguém". E ele respondeu ao meu ouvido: "Tu conheces-me, Piedade. Sabes que eu nunca seria capaz de trair um amigo ou um camarada".

- Depois arrependi-me muitas vezes de lhe ter dito tal coisa. E pensava cá para comigo : " Quem sabe se ele tivesse dado um nome ou dois, daqueles que até já tinham sido presos, ele e os outros não seriam soltos mais dia menos dia?"
Mas também sei que mesmo que eu não lhe tivesse dito nada, o meu António não denunciaria ninguém.

Porém, ele... ele foi denunciado... Havia sempre bufos, mesmo onde não era de esperar.
Fez uma longa pausa, pois a ferida antiga fora reaberta. Perpassa funda amargura nas palavras que profere.
- Se houver contas a ajustar... Olhe, já lá estão os dois.

E continuou com voz mais sumida:
- O que o meu marido sofreu! Esteve 48 horas seguidas de estátua. Se escorregava para o chão, era logo "Levanta-te, cabrão" e pontapés por onde calhava: nas costas, na barriga, nos testículos. Se fechava os olhos de exaustão, eram pontapés na cara e na cabeça. Partiram-lhe o nariz, os óculos, escorria sangue por todo o lado. (Soubemos destas coisas por outros presos e porque o homem da funerária contou como estava o corpo: todo pisado. Todo ele era uma nódoa roxa. Disse que mais parecia o pano da Paixão.) . Tudo isto se passou na António Maria Cardoso e no Aljube. A prisão, a tortura e a morte : tudo isto em 3 dias ou 4.

Todavia há orgulho na voz sofrida desta mulher de 92 anos quando afirma:
- Mas nunca denunciou ninguém!

Regressa à sua memória e os seus olhos mostram que a lembrança lhe dói profundamente.
Quanto sofreste, meu Toni. Quanto eu sofri, nesses dias e em todos os outros dias da minha vida. Sentindo sempre aquele medo imenso, que me gelava o sangue. Não conseguia dormir e se caía no sono, tinha pesadelos infernais. Acordava aos gritos. Punha uma almofada na boca e mordia-a com força para não acordar a minha filhinha. De manhã tinha de tratar dela, sem choro nem lágrimas. E a menina continuava a perguntar: "Quando vem o pai?" "Não tarda aí, meu amor". Que difícil compor um sorriso quando o coração geme e sangra. "Quero o pai". E eu tinha de me virar de costas para ela não me ver chorar.

- Quando o meu marido foi torturado, estava no Aljube um estudante de Coimbra, preso nas lides da campanha de Norton de Matos. No corredor passavam um pelo outro. O meu António, com o rosto todo maltratado, os olhos muito negros e inchados, segredou-lhe: "Estive dois dias de estátua. Não me arrancaram nada nem arrancarão". Na volta seguinte mais umas palavras: "Sou Lopes de Almeida, Marinha Grande. Estão a matar-me de pancada". O estudante foi solto daí a um ou dois dias e viu a notícia da morte de António Lopes de Almeida, que se enforcara no Aljube. Mas não dizia que era da Marinha Grande. Cheio de fúria, correu ao jornal "República", explicou tudo o que viu, e então a notícia saiu correcta.

- Mas como podia ele ter-se enforcado, se não tinha corda, nem cinto, nem atacadores dos sapatos. Realmente, segundo me contaram os meus primos Bajancas (isto é uma alcunha, que o apelido deles é Neto, e foi a eles que eu pedi que arranjassem uma funerária para tratar do corpo e do funeral), o meu marido tinha um vergão roxo à volta do pescoço. Mas a pide é que o dependurou já morto ou moribundo, para fazer crer que ele se tinha enforcado. Aliás, isso era prática muito frequente na pide.

Nesse mesmo dia, ao fim da tarde, os meus primos levaram-me à funerária, mas o caixão já não se encontrava lá. O proprietário contou-me que, ao preparar o corpo, um dos empregados havia encontrado num bolso do pijama um papelinho escrito com sangue "Avisem minha mulher, Mª Grande". " Dê-me esse papelinho, por favor". "Não o temos. A pide veio cá hoje mesmo buscá-lo". "Mas como é que a pide soube?" "Minha senhora, a pide tem olhos e ouvidos em todo o lado. Até na casa dos mortos".

- Eu percebi então que o meu António, à beira da morte, teve medo que a pide destruísse o seu corpo.

- Um agente da pide, de nome Fernando Gouveia, muito chegado a uma vizinha da minha cunhada Maria João, falou um dia sobre a tortura e morte do meu marido e disse: "O António Lopes de Almeida era um Homem. Um vidreiro, mas não um operário comum. Muito culto. Só que nunca quis dizer a verdade. A culpa foi dele. Porque é que nunca disse o que devia? Portanto, ele é que se enforcou".

-Repare que todas estas coisas se foram sabendo com o tempo. Desculpe contar assim, sem jeito nenhum. Vou voltar atrás, ao Domingo seguinte à prisão. Era dia 23 de Janeiro e o grupo "Os Pinantes" estava a tocar num baile na Nazaré, quando alguém chegou com o jornal "República" e disse: "Mataram o António Lopes de Almeida". Eram 4 horas da manhã quando ouvi duas pancadas na janela do meu quarto. O meu coração parou. Senti uma dor... sei lá … a dor da morte. Sabia, tinha a certeza, que o meu António morrera antes mesmo de ouvir dizer "Não tenha medo, Piedade. Sou eu, o Mário". Era o Mário Macatrão. Abri a janela. "Venho dizer-lhe o que se passou com o seu marido". Contou-me o que o meu coração já tinha adivinhado.
De manhã, fui chamada à Câmara e o Presidente disse-me: "Vá já para Lisboa tratar de assuntos referentes ao seu marido". Eu já estava vestida de luto.

Avisei os meus primos e fui logo para Lisboa. Dirigi-me à António Maria cardoso, pois era lá, pensava eu, que deveria reclamar o corpo, a fim de lhe dar um funeral digno na Marinha Grande. Veio um pide e, com falinha mansa, disse-me: "O corpo não pode ser entregue já. Só daqui a três meses é que o pode levar". Pensei que enlouquecia. Desatei a gritar: "Quero o corpo do meu marido. Que lhe fizeram? Que lhe fizeram depois de o matar?". "Ouça, não grite. O seu marido terá um funeral. O Governo Civil está a tratar disso". Empurraram-me. Obrigaram-me a sair. Já no meio da rua continuei a gritar "Assassinos! Assassinos! Mataram o meu marido. Já que não mo dão vivo, dêem-mo morto". O pide que me agarrara por um braço, ameaçou : "Cale-se, mulher, se não o corpo ainda vai parar à vala comum e você nunca mais saberá dele". Eu não consegui parar de gritar. Foi o único momento em que não tive medo, talvez porque devo ter pensado que já não tinha mais nada a perder. Os meus gritos fizeram assomar muitos rostos assustados às janelas apenas entreabertas. "Assassinos! Assassinos!" . Gritei até a voz me doer. Gritei para lá da dor. Ali fiquei derrubada , no meu desespero e no meu soluço.

Quando consegui pensar, percebi que o que a pide queria era deixar passar o tempo, para que o caso caísse no esquecimento, porque era período de eleições e para que as marcas da tortura desaparecessem.

- O corpo de meu António ficou no gavetão nº 59 no cemitério de Benfica. Mais tarde soubemos que esse gavetão fora pago pelo Governo civil de Lisboa não por 3 meses, mas por 50 anos.E assim teria acontecido, se não fosse o 25 de Abril.

Quando íamos ao cemitério de Benfica pôr flores, por vezes interrogava-me se a pide não teria ido lá retirar o corpo. Até esse medo eu tive.
Um coveiro chegou a dizer-nos: "Preparem tudo na Marinha Grande e venham cá uma noite e levam o caixão." Mas, obviamente, isso não se podia fazer assim.

Na Marinha Grande, logo que se soube da morte do meu marido, as fábricas pararam, os trabalhadores vieram para a rua e, em frente do Sindicato dos Vidreiros e no Largo da Câmara gritavam em altas vozes: "Queremos o Homem" "Queremos o Homem". Foi um pide que chegou à varanda e disse: "Calma, que o Homem vem". E veio. Mas passados 30 anos.
Mas já estou outra vez a adiantar-me aos acontecimentos.
Mais uma pausa no relato. Mais um reavivar da dor.

-Vou tentar retomar o fio da meada. O meu António não sobreviveu à tortura. Eu nem sei como sobrevivi a tanta dor, porque sofrer na alma é sofrer mil mortes. O que me prendeu à vida foi a minha filha, que eu, tão cedo viúva, ia ter de criar sozinha. Por isso, havia que secar as lágrimas eenfrentar a dura realidade. A morte do meu António não podia ter sido em vão. Tudo o que eu sentia: desespero, raiva, angústia, uniam-se num sentimento que me tolhia: o medo. Eu era vigiada. Fui vigiada anos e anos. E o medo entranha-se em nós até ao tutano. Tinha medo que me destruíssem também e eu tinha de viver e trabalhar para a minha filha.
- Quando havia qualquer movimento dos trabalhadores, para pedir aumento, ou melhores condições de trabalho, toda a gente, colegas e dirigentes sindicais me recomendavam que eu não me mostrasse, não saísse da fábrica, pois estava muito marcada. Na verdade, estava marcada pelo medo na alma e no coração. Mas aprendi que o medo também nos pode dar coragem. Coragem e força para lutar pelo que é nosso, pela nossa família, pelos nossos direitos.

- Já contei que trabalhava numa fábrica, na "Catita e Barros", mas não disse o que fazia. Fui empalhadeira quase 20 anos. Era um trabalho muito duro. As costas ficavam derreadas e, a certa altura, comecei a ter dores muito fortes na barriga. Já quase nem podia encostar nela o garrafão, porque as dores se tornavam insuportáveis. Fui operada a um tumor e reformada por invalidez com 170 escudos mensais. Foi em 1961. Claro que isto não dava para viver e eu trabalhava em casa, empalhando coisas pequenas como garrafõezinhos e cantis-miniatura que a Elisa Bizarro vendia em Fátima. Era um trabalho menos duro, mas que exigia arte e paciência, porque a empalhação tinha de ficar como uma renda.

- No meio de tanta desgraça gostaria de dizer uma coisa muito linda sobre um patrão que tive e que era a excepção à regra: o Dr. Artur Barros. Grande amigo do meu marido, tinha pena de mim e da minha filha. Um dia perguntou-me: "Então a miúda vai bem nos estudos?". "Vai, sim. Fez a 4ª classe e agora vai trabalhar". "Trabalhar? Tão pequenina? Seria o que o pai queria?" . " Não, não era. Mas o que eu ganho não dá para mais estudos" . "Escuta o que te digo, Piedade. Olha que sem estudos não se vai a lado nenhum". "Sei que o senhor tem razão, mas…" "Eu tomo a meu cargo os estudos da pequena". Foi assim que a minha Suzete continuou a estudar. E foi assim que pôde arranjar um emprego melhor do que ser empalhadeira.
- Hoje ajudo a minha filha a criar os filhos: os meus netos que, felizmente, não tiveram de viver num regime de opressão e de medo.

- Para terminar, só vou falar de um dos momentos mais importantes da minha vida: a trasladação dos restos mortais do meu marido para a terra que era a sua e que ele tanto amava.
Claro que teve de se dar o 25 de Abril. Teve de chegar a liberdade, tão duramente conquistada por mulheres e homens corajosos. A liberdade pela qual alguns, como o meu António, sacrificaram a própria vida.
Após 30 anos teve o funeral que lhe era devido. Foi no dia 13 de Março de 1979 que os seus restos mortais desceram à campa nº 1648, no cemitério da sua querida vila. Os trabalhadores da Marinha Grande, em peso, estavam lá.
Após 30 anos o Homem regressou, finalmente, à sua terra.

Maria da Piedade Almeida, in Júlia Guarda Ribeiro, Mulheres da Marinha Grande - histórias de luta e de coragem, Folheto Edições & Design, Leiria, 2008, pg. 39-53

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

"Sensibilidade e bom senso": a monarquia segundo Alexandre Herculano

via Centenário da República by noreply@blogger.com (NR) on 1/24/10
«Olhamos impassivelmente para as doutrinas republicanas, como olhamos para as monárquicas. Não elevamos nenhuma a altura de dogma. Não nos cega o fanatismo, nem perguntamos qual delas tem mais popularidade. É já tempo de examinar friamente, e de discutir com placidez, qual dos dois princípios pode ser mais fecundo para assegurar a liberdade e, depois da liberdade, a ordem e a civilização material destas sociedades da Europa, moralmente velhas e gastas. Persuadidos de que a monarquia, convenientemente modificada na sua acção, resolverá melhor o problema, preferimo-la sem nos irritarmos contra os seus adversários; sem os injuriarmos, sem acusar as suas intenções, recurso covarde de quem desconfia da solidez das próprias doutrinas. A nossos olhos a monarquia existe pelo povo, e para o povo, e não por Deus e para Deus. A existência de um poder público, de um nexo social, é o que se estriba no céu, porque a sociabilidade é uma lei humanitária. A revelação divina confirmou este facto achado também no mundo pela filosofia política. "Por mim", disse a voz do Senhor, "reinam os reis, e os legisladores promulgam o que é justo". A sabedoria suprema supôs a autoridade na terra: não curou de que fosse só um que a exercesse, ou que fossem muitos. Aprendamos a tolerância política nas divinas páginas da Bíblia.»

HERCULANO, Alexandre – Opúsculos. Tomo I. Questões públicas: política. Lisboa: Livraria Bertrand, 1983, pp. 267-268

Perfis: Afonso Costa. "A hora é dos medíocres"

via Centenário da República by noreply@blogger.com (NR) on 1/20/10

Estátua a Afonso Costa no Campo 24 de Agosto, Porto.
Obra de Laureano Guedes.
É tradicionalmente um local de romagem
onde alguns saudosistas vão no dia 31 de Janeiro,
confundindo fascismo com monarquia
e república com liberdade, mas sobretudo
esquecendo o governo de terror
e perseguição que Afonso Costa
imprimiu durante a
I República

Escreve Raúl Brandão, nas suas Memórias:

«Os ódios aumentam. Os republicanos torturam os presos. Mas o que fariam os monárquicos se vencessem? A monarquia, nesta altura, seria de fugir… E a república? A república – diz Junqueiro – não se atura nem se pode aturar!
Foram os do governo provisório que lhe imprimiram o feitio intolerante e jacobino – foram o Afonso Costa, O Bernardino, o Camacho e o António José. Foi principalmente o Afonso que lhe colou a máscara que ela nunca mais pôde arrancar. Fê-la à sua imagem e semelhança: materialista e orgíaca, acolhendo de braços abertos a pior escória dos partidos monárquicos – os que não tinham convicções e queriam continuam no gozo dos seus interesses».
É o tipo do bicho de escritório que julga tudo segundo a papelada e mete a vida dentro de articulados. Advogado cábula, foi para o governo, com os seus amigos, depois de uma orgia à luz da manhã e com a gola do casaco levantada. Ora o país não é apenas sério: é trombudo. Remexeu nas cousas e nos homens resolvendo dar cabo do cristianismo no Palácio de Cristal no porto – daquele Porto de granito espesso – em duas ou três gerações. Resultado: quem reformou os padres foi ele – não foram os arcebispos. Quando acabou de pegar fogo ao país fez de largo a vê-lo arder… Chegou, assim, a ser um símbolo – o tipo das gerações de Coimbra, que criaram, com código e frases, uma alma ao lado da vida. Tudo o que fez cheira ao saguão onde o fez – às conversas do empregado da Boa Hora, do jornalista azedo e do Alexandre Braga, que fez da existência uma orgia – com esplêndidos discursos… (…)
Dizem que é um homem inteligente. A sua inteligência, até hoje não tem passado de esperteza. Só lhe reconheço uma superioridade incontestável: é um parlamentar e não se prende com escrúpulos. – O Afonso – dizem – é um homem com quem todos se pode entender para os seus negócios.
Não é só o medo que o tem afastado de Lisboa. Às repetidas instâncias dos seus amigos para regressar à política recusou sempre, recomendando uma certa moralidade (!) – o que fazia dizer a António José de Almeida: - Eu, se me chamassem para o meu país, voltava logo, ainda que fosse para ser capitão de ladrões!
Mas não é só o medo que o tem afastado. – Porque não vais para Lisboa? – perguntou-lhe o Montalvão, que o encontrou em Paris. – Não, que lá até os rapazes de catorze anos andam com bombas nas algibeiras. – Andam, mas foi ele o culpado – foi ele que as forjou. Não é, porém, só o medo; os que fingem que o querem a governar, detestam-no. Armam-lhe logo dificuldades. Sabem perfeitamente que ele viria ocupar o primeiro lugar… A hora é dos medíocres.»

BRANDÃO, Raúl – Memórias (tomo III). Obras completas, vol. I. Lisboa: Relógio D'Agua, 2000, pp. 62-63

27 de Janeiro de 1970: Relato de uma prisão atípica

via Caminhos da Memória by Diana Andringa on 1/26/10
O que se segue é a narrativa de uma prisão atípica, a de uma das redactoras deste blogue, há exactamente quarenta anos. Diana Andringa entrava cedo num emprego distante de casa. Quando a PIDE a procurou, já tinha saído. Teve pois tempo de se preparar para a prisão. Foi uma primeira vantagem, mas não a [...]

sábado, 16 de janeiro de 2010

O convento, em 1789

via SOS Capuchos by RS on 1/14/10
"Os lobos e as raposas, que habitavam as grutas e cavernas desses cumes, foram de um deles desalojados por um grupos de novos habitantes, que, tirando os assuntos de religião, têm relativamente às bestas selvagens a vantagem da humanidade; refiro-me a um grupos de frades, que consagraram as covas abandonados, e ali fizeram morada. Jantámos com eles junto ao portão do seu tosco e invisível convento, e fomos tratados com grande hospitalidade."

Por W. Allen, "The Edinburgh Magazine" (Julho de 1789).

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Entrevista a SAR D. Duarte pelo Jornal i

via BLOGUE REAL ASSOCIAÇÃO DE LISBOA by Ricardo Gomes da Silva on 1/10/10

As Reais Associações regionais, sedeadas em Portugal e no estrangeiro, terão cerca de "10 mil associados que têm um espírito militante e participativo". Segundo sondagens referidas por D. Duarte, cerca de 30% dos portugueses acham que "um Rei seria melhor que um Presidente", ou seja, à volta de 3 milhões de pessoas.(...)

"Depois há muitos que acham que não podem ser monárquicos: porque nasceram na República, porque não vêm de uma família aristocrática.Há muita gente que acha que o regresso da Monarquia seria um regresso à Idade Média"

.Depois há "os jovens divertidos que querem animar a malta" com espectáculos bandeirantes em Agosto deste Verão [a "monarquia do 10 de Agosto" de 2009]. O "escândalo nos meios de comunicação foi injustificado" dado que a bandeira retirada pelo 31 de Armada, que foi substituída pela bandeira monárquica, "era a da Câmara e não a Nacional" e quando foi devolvida "até estava lavada".

De momento 44 Nações do Mundo têm como chefe de Estado um monarca coroado.Os valores são no entanto, inflacionados pelo Reino da Commonwealth, que debaixo do se chapéu soma 16 estados."Os países menos conservadores da Europa são monarquias.Em Portugal, a maioria dos monárquicos são conservadores mas também há muitos ligados ao Bloco de Esquerda, ao Partido Socialista, ao Partido Comunista e até há anarquistas monárquicos.Há monárquicos para todos os gostos", comenta D. Duarte.

Estabilidade e isenção, são as mais-valias que aponta aos monarcas.

"Quando o Presidente Sampaio dissolveu o Parlamento, que estava a funcionar na perfeição, toda a gente achou que queria favorecer o seu partido, o que efectivamente aconteceu.É muito difícil para um Presidente da República dar uma imagem de isenção, mesmo que o seja, como é hoje o nosso Presidente. Com um Rei isso não acontece, toda a gente aceita a sua isenção."

Ler a entrevista:

http://realfamiliaportuguesa.blogsp

http://www.somosportugueses.com

A CIA CONTRA ANGOLA" - de JOHN STOCKELL

via ANGOLA DO OUTRO LADO DO TEMPO... by MariaNJardim on 1/10/10
Transcrições recolhidas em : "A CIA CONTRA ANGOLA" - de JOHN STOCKELL, ex. Chefe da Força de Intervenção da CIA em ANGOLA )-- pgs.31- 39 - 44 - 46 - 47/8 - 49 -- (1ª edição - Setembro de 1979) --

-- "...Os soviéticos estão a rondar em Angola e pensa-se que a agência tem de impedi-los. Estamos a programar em conjunto a forma de dar apoio a Savimbi e Roberto. Isto é em grande, a maior coisa da Divisão para África desde o Congo. Temos 14 milhões de dólares e já começámos a enviar algumas armas por via aérea. Estamos a enviar armas apenas para Kinshasa a fim de substituir o equipamento que Mobutu está a enviar para Angola dos seus próprios stocks. A ideia é neutralizar militarmente o MPLA, até à realização das eleições em Outubro."...(afirmações de GEORGE COSTELLO, chefe de operações da Divisão da CIA para África ) --
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..."As relações turvas dos Estados Unidos com o Zaire também estimularam o desejo de Kissinger em actuar em Angola. Tanto o Zaire como a Zâmbia receavam a perspectiva de um governo apoiado pelos soviéticos nos seus flancos, controlando o Caminho de Ferro de Benguela.O Presidente Mobutu receava, particularmente,os soviéticos. Por duas vezes desde 1960 que rompeu as relações com a União Soviética e, embora as relações tivessem sido restabelecidas de cada uma das vezes,mais recentemente ele andara a fazer a corte aos Chineses, à custa tanto dos Soviéticos como dos Americanos. Na primavera de 1975 os problemas internos do Zaire tinham-se agravado e o regime de Mobutu tinha sido ameaçado pelo descontentamento.
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..."Eu estava familiarizado com a colónia portuguesa da costa Atlântica no Atlântico Sul através de viagens feitas na infância e na idade adulta. Nós visitámos os portos angolanos de Luanda e do Lobito e tivéramos encontros com missionários americanos que contavam histórias alarmantes sobre as autoridades portuguesas no interior de Angola. Em 1961 um navio da marinha norte-americana, no qual eu me encontrava como elemento da informação dos Fusileiros Navais aportou em Luanda para uma breve visita. Tarefas e missões de serviço temporárias da CIA tinham-me levado para perto de Angola, por exemplo, Lubumbashi, no Zaire, em 1967, quando o grupo de Bob Denard, composto de 16 mercenários invadiu a partir da fronteira angolana.
A minha última experiência directa com as questões angolanas tinha sido em Fevereiro de 1969 quando me dirigi de automóvel de Lubumbashi para visitar um acampamento da FNLA perto da fronteira com Angola. Constatar a indolência e indisciplina e talvez a experiência me tivesse levado a subestimar a tenacidade do movimento nacionalista Angolano, alguns anos mais tarde. Alguns soldados sem líder, fardas esfarrapadas e mulheres e crianças semi-nuas arrastavam-se por entre edifícios de tijolos delapidados, os quais eram o resto de um acampamento da Force Publique colonial belga. Sem instalações nem condições sanitárias, pouco diferia de uma aldeia africana primitiva, com as pequenas casas de tijolo a substituir as palhotas de colmo e espingardas ferrugentas a substituirem armas ainda primitivas."...
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..."Durante muitos anos os Portugueses propagandearam um sucesso exemplar na assimilação de negros para uma sociedade colonial dita isenta de barreiras raciais. Até 1974 eles pareciam acreditar que mantinham uma relação permanente com as colónias. Nos serviços clandestinos da CIA, estávamos inclinados a aceitar as declarações dos portugueses, de uma sociedade aberta, do ponto de vista racial,em Angola e aceitava-se tacitamente que a agitação comunista era em grande parte responsável pela resistência contínua dos negros ao governo português. A razão era de base. Sendo uma organização essencialmente conservadora, a CIA mantém ligação secreta com serviços de segurança locais onde quer que actue"...
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"...Em relação a Angola dizíamos normalmente... "os Portugueses estabeleceram uma sociedade anti-racial,miscegenaram-se"..."Na realidade, o papel dos Portugueses em Angola foi historicamente o da exploração e brutal repressão. Tendo iniciado em 1498, Portugal conquistou e subjugou os três reinos tribais dominantes : -- os Bakongo, os Mbundu e os Ovimbundo -- e exportou mais de três milhões de escravos, deixando vastas extensões da colónia sub-povoada. A sociedade colonial achava-se dividida em seis categorias raciais definidas pela quantidade de sangue branco em cada uma delas, com duas categorias de pretos puros, na base da escala. Os privilégios de cidadania, económicos e legais, resultavam apenas a favor dos 600.000 brancos, mulatos e assimilados ou pretos legalmente aceites entre a elite da sociedade. Os 90% da população classificados de indígenas sofreram todo o tipo de discriminação -- incluindo trabalho forçado,pancada,prisões arbitrárias e condenações sem julgamento às mãos das autoridades coloniais."...
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..."A desintegração da sociedade tradicional levou ao aumento da desorientação, desespero, e à preparação para um protesto violento"... "Por volta de 1961, Angola era um barril de pólvora negra com três grupos étnicos mais significativos organizados para a revolta.
..."A 15 de Março de 1961 as guerrilhas da FNLA realizaram um ataque em 50 pontos ao longo do rio Congo, numa frente de 640 kms., matando indiscriminadamente tanto homens Africanos e Portugueses, como mulheres e crianças.Imediatamente aviões da Força Aérea Portuguesa trouxeram reforços, utilizando armas da NATO, destinadas à defesa da área do Atlântico Norte, e começaram a atacar com uma fúria indiscriminada, bombardeando mesmo áreas que não tinham sido afectadas pela sublevação nacionalista. A política portuguesa prendeu nacionalistas, protestantes, comunistas e eliminou sistematicamente líderes negros executando-os ou utilizando métodos terroristas. Ao reagir e reprimir indiscriminadamente, os Portugueses ajudavam a garantir que a insurreição não seria localizada ou suprimida"...
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..."O golpe do 25 de Abril de 1974 em Portugal apanhou os Estados Unidos
de surpresa, sem alternativas políticas à altura e sem contacto com os revolucionários africanos. A CIA não actuava no interior de Angola desde o final dos anos 50, até 1975."...
..."Apenas em Março de 1975, quando os portugueses estavam a desligar-se e a perder o controle, é que finalmente reabrimos a delegação de Luanda . Antes disso, a maior parte das informações locais da CIA sobre o interior de Angola vinham de Holden Roberto que era o líder, desde 1960, do movimento revolucionário Bakongo, chamado FNLA. Operando a partir de Kinshasa (então chamado Leopoldville), estabeleceu laços com a CIA"...
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-- Transcrições recolhidas em : "A CIA CONTRA ANGOLA" - de JOHN STOCKELL, ex. Chefe da Força de Intervenção da CIA em ANGOLA )-- pgs.31- 39 - 44 - 46 - 47/8 - 49 -- (1ª edição - Setembro de 1979) --

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Do blog ANGOLABRASIL

domingo, 10 de janeiro de 2010

Dois irmãos muito diferentes

via Sopas de Pedra by A. M. Galopim de Carvalho on 1/10/10
(Este é um texto concebido ao estilo de um conto juvenil mas que visa também os crescidos interessados nas matérias nele versadas)

ERA UMA VEZ UM APRENDIZ de vidraceiro chamado Domingos. O seu trabalho de todos os dias, como voluntário, naquelas férias de verão, entre os 11º e 12º anos, era aprender a arte de cortar vidro para vidraças de janelas, quadros com gravuras e tudo o mais que precisasse daquela operação. Dos restos que iam ficando, tinha autorização para cortar pequenos rectângulos para molduras que ele próprio fazia, num jeito de brincadeira, para grande satisfação do patrão, que as vendia a bom preço. A um canto da grande mesa de trabalho, muito plana e lisa, forrada a feltro, onde se esquadravam e cortavam as grandes chapas, além da régua e da fita métrica, estava sempre o riscador, uma espécie de caneta em latão, polida do uso, terminada numa ponta de diamante com que riscava o vidro, o que permitia o corte certeiro. Bem seguro atrás da orelha, e numa imitação do mestre, o Domingos trazia agora, também ele, o lápis muito afiado, com que tomava nota das encomendas, fazia contas ou escrevinhava apontamentos próprios da sua aprendizagem. Só o tirava em casa, findo o trabalho, para voltar a pô-lo, na manhã seguinte, ao sair. Fazer o percurso a pé, de ida e volta, de lápis na orelha, era uma maneira de mostrar ao mundo que era alguém que já trabalhava.

Um belo dia, à hora de ir almoçar, fora do que era o seu costume, o rapaz tirou o lápis da orelha, colocou-o sobre a mesa de trabalho, mesmo ao lado do riscador, e saiu, fechando a porta atrás de si. Foi no silêncio da oficina deserta, que a ponta de diamante, dirigindo-se ao bico do lápis, começou por dizer:

- Até que enfim que te tenho aqui ao pé. Há que tempos que te vejo lá em cima, na orelha do rapaz, sem poder falar contigo.

- É verdade. – Concordou a ponta do lápis. – Os objectos, como nós, só podem falar quando não há ninguém por perto. É por isso que as pessoas nem sonham que nós falamos uns com os outros.

Ao retomar a conversa, a ponta do riscador, com o seu ar de importância, apresentou-se.

- O meu nome é diamante. Nasci há muitos milhões de anos, lá bem no interior da Terra, a mais de 200 quilómetros de profundidade, onde a pressão é cerca de 60 000 vezes superior à que temos aqui à superfície, e a temperatura ultrapassa os 1600 ºC. Sou o mineral mais duro que se conhece, sou quase exclusivamente feito de carbono, o mesmo elemento do vulgaríssimo carvão. Praticamente, nada me destrói. Só o fogo, mas é preciso que a atmosfera seja bem rica em oxigénio e a temperatura atinja valores muito elevados, superiores a 800ºC. Tenho também o meu calcanhar de Aquiles, a que os estudiosos chamam clivagem perfeita.

- E o que é que isso quer dizer? Perguntou a ponta do lápis, curiosa.

- Quer dizer que em algumas direcções da minha rede cristalina, os átomos ligam-se por forças mais fracas, o que faz com que eu me parta facilmente segundo essas direcções. Portanto, se me derem uma pancada com a orientação correcta, lá me separo eu em dois bocados. Mas, tirando esta minha fragilidade, sou indestrutível. O meu nome, que vem do grego antigo, adamans, quer dizer isso mesmo. Sou incorruptível, como dizem os mais eruditos.

- É curioso que eu também sou um mineral mas não tão velho como tu. Sofro do mesmo mal e até mais do que tu. Se me baterem ou apertarem, desfaço-me toda. – Interrompeu a ponta do lápis. – Também sou quase exclusivamente feita de carbono, chamo-me grafite e não sou mesmo nada dura. Pelo contrário, sou quase tão macia como a manteiga, a ponto de ser usada como lubrificante. Também venho do interior da Terra, embora de menor profundidade. Dado o facto de eu ser assim tão escura, quase preta, e de a minha dureza ser muito baixa, desde há muito que me usam para escrever e desenhar sobre o papel. É por isso que me baptizaram de grafite, tendo por base a raiz grega, graph, que traduz a ideia de escrever. É essa tua fragilidade, a que chamas clivagem, que, em mim, é um dom que me torna importante. É, precisamente, por eu me separar tão facilmente por esses planos de fraqueza que me torno útil na escrita e no desenho, pois vão ficando no papel esses meus minúsculos bocadinhos, registando o traço.

Nós, os da minha espécie, – retomou o diamante – somos, no geral, quase incolores. Mas há diamantes de quase todas as cores e, até, pretos - acrescentou. - Somos todos muito apreciados pelo excepcional brilho que temos. Tão especial que lhe foi dado o nome de adamantino. Temos também, depois de facetados e polidos, uma dispersão da luz e uma cintilação únicas entre os minerais! Ninguém nos fica indiferente! Eu, como não era assim muito branquinho nem muito transparente, não fui parar à bancada do lapidador, não tendo sido usado para fazer jóias. Mas, dada a minha grande dureza, viram-me utilidade na indústria, e aqui estou!

Seguro da sua importância, o diamante não parava de falar das qualidades que a mãe Natureza lhe dera.

- Duros, indestrutíveis e com este brilho, muito valorizado pela lapidação, há muito que somos tratados como pedras preciosas, ao lado das esmeraldas, das safiras e dos rubis. Temos grande procura como uma das gemas de maior cotação no mercado e lapidam-nos desde o século XIV.

- De facto – anuiu a grafite, – eu pertenço a uma espécie mais humilde mas muito trabalhadora. Não ando nas coroas e tiaras de reis e rainhas nem nos colares e anéis das estrelas de cinema, mas tenho muita utilidade em importantes indústrias, como são as do aço, dos refractários, dos lubrificantes, das baterias eléctricas e a dos lápis, claro. – Respirou fundo, como que a tomar folgo, e continuou. - Ficas agora a saber que as minas dos lápis de escrever são feitas com grafite. Do bico do lápis já saíram grandes obras de arte no desenho e na escrita. Olha, os desenhos originais de, Leonardo Da Vinci ou os de Picasso são tão valiosos que, em leilão, rivalizam com os melhores diamantes! A lápis, muitos arquitectos como Vitúrbio, Le Corbousier, Oscar Nimeyer ou o português Eugénio dos Santos, esboçaram projectos de grandes obras que fizeram história. Olha, - disse por fim – ficas também a saber que ainda hoje na América, os alunos, nas escolas, e os adultos, no seu trabalho, preferem o lápis à caneta.

- Alto aí! – Interpôs a ponta do riscador. - É verdade que alimentamos a vaidade dos poderosos e ricaços, mas também é certo que evitamos a fome em países como a Namíbia e o Botswana. É verdade que temos sido causa de guerras, roubos e grandes crimes contra inocentes, mas nem te passa pela cabeça a importância dos diamantes na indústria, em especial, na de equipamentos de corte e perfuração e de abrasivos. Não há nada, desde o aço à pedra mais dura, que nós não consigamos cortar, perfurar ou desgastar. São as serras diamantadas, as cabeças das sondas que procuram as águas subterrâneas ou o petróleo, são as lixas especiais e muitas outras moderníssimas aplicações.

Entusiasmado com esta também sua utilidade entendeu acrescentar: - A nossa importância é tal neste sector da sociedade moderna, que a extracção de diamantes naturais não chega para as necessidades do consumo. Há, pois, que produzi-los industrialmente, o que já se faz desde meados do século passado. Até te digo que hoje em dia, a produção de diamantes artificiais ou sintéticos ultrapassa, de longe, a sua exploração na natureza. E já somos produzidos para outros fins, tirando partido de outras propriedades que temos. O nosso muito baixo coeficiente de expansão térmica e elevadíssima condutividade térmica faz-nos ideais como dissipadores de calor em sistemas computorizados de alta performance; se formos tratados com boro, tornamo-nos semicondutores e isso coloca-nos numa posição privilegiada para os novos chips informáticos. E mais: já nos fazem em placas transparentes com alguns milímetros de espessura que são ideais para janelas em diversas indústrias, desde a aeroespacial à investigação de ponta em física.

- Também nós! – Contrapôs a ponta do lápis. – É muito mais a grafite produzida artificialmente do que a que se extrai como minério por esse mundo fora.

- Deixa-me dizer-te mais uma coisa. – Interrompeu a ponta de diamante. – Há uns anos a esta parte já se fazem diamantes sintéticos em muitas cores e com tamanho e qualidade suficientes para serem usados em joalharia.

- Mas eu - atalhou a grafite - não te esqueças nunca disso, eu tenho tudo o que é preciso para me transformar em diamante, mas não estou nada interessada nisso. Posso, perfeitamente, ser a fonte do carbono utilizada na síntese do diamante, a altas pressões e altas temperaturas, e só de pensar nisso fico com arrepios! Mas o que é facto é que saio de lá como se fosse tua irmã gémea.

- Bem vistas as coisas, – disse o diamante, - nós pertencemos à mesma família.

- Para já, temos a mesma composição química. Ambos somos feitos de carbono. – Anuiu a grafite que continuou, explicando. - As grandes diferenças entre nós só têm a ver com a profundidade a que fomos gerados. Eu sei isto – continuou – porque um dia, o Domingos me deixou em cima da mesa onde costuma estudar, ao lado de um livro de Geologia, aberto precisamente na página onde se falava de nós. É apenas a forma e a energia com que se ligam os átomos de carbonos que nos distingue.

- Eu também sei – interrompeu o diamante, não querendo ficar atrás desta sua parente tão chegada. – Lá na mina, na província do Cabo, perto de Kimberley, na África do Sul, onde me apanharam, havia um engenheiro que gostava de explicar tudo isso a quem quer que estivesse por perto. Foi aí que aprendi que, antes de ser diamante, fui, talvez, um simples carvão fóssil que, em conjunto com outras rochas da crosta terrestre, fui arrastado para níveis muito profundos de uma zona do interior da Terra a que se dá o nome de manto. Foi aí que fiquei transformado naquilo que sou. Estava eu muito sossegado, anichado numa rocha chamada eclogito, quando, passados mais alguns milhões de anos, lá vim eu cá para cima numa viagem super-rápida. Percebi, então, que estava a ser arrastado pela lava de um vulcão. Nem tive tempo para me adaptar ao novo clima. Acostumado àquele forno imenso e sob grande pressão, vejo-me, agora à temperatura e à pressão normais â superfície da Terra. Depois de tanta aventura, eu bem gostava de ter sido lapidado e colocado num anel de noivado, ao lado de uma pérola, - desabafou, num doce suspiro - mas quando dei por mim ia num grande vapor, a caminho da Irlanda, de onde parti para França, o país da fábrica onde fui cravado nesta espécie de caneta de metal amarelo, tão polidinha, do uso, que mais parece feita de ouro.

Pois olha, - retorquiu a grafite. - A minha história não é muito distinta dessa. A única diferença foi eu não ter sido arrastada lá para tão fundo, como tu foste. Não cheguei a descer abaixo da crosta, tão fundo como tu desceste e é só por isso que não sou um diamante. Mas insisto em afirmar que tenho muito orgulho naquilo que sou e faço.

Nesta fase do diálogo ente as duas pontas de carbono, abriu-se a porta da oficina. Apanhadas de surpresa, calaram-se imediatamente como se a conversa tivesse cristalizado ali. O Domingos dirigiu-se à grande mesa e os seus olhos brilharam, satisfeitos, ao ver o lápis que julgara ter perdido. Pegou nele e, num gesto automático, colocou-o atrás da orelha.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

EÇA E A GUERRA DO AFEGANISTÃO

EÇA E A GUERRA DO AFEGANISTÃO

via DA TAILÂNDIA COM AMOR E HUMOR by Jose Martins on 1/7/10
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*Assunto:* EÇA E A GUERRA DO AFEGANISTÃO, em 1880
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Eça de Queiroz foi um observador arguto da guerra do Afeganistão, não a do Obama, mas a dos ingleses im
periais do sec. XIX, e sobre ela escreveu páginas implacáveis que talvez os nossos governantes, já que os estrangeiros não sabem português, tivessem interesse e proveito em ler e meditar. Aí vão elas (escritas em 1880). Extracto do livro *"CARTAS DE INGLATERRA"*.
*A guerra do Afeganistão vista por Eça de Queiroz*
"Os ingleses estão experimentando, no seu atribulado império da Índia, a verdade desse humorístico lugar comum do sec. XVIII: 'A História é uma velhota que se repete sem cessar'.
O Fado e a Providência, ou a Entidade qualquer que lá de cima dirigiu os episódios da campanha do Afeganistão em 1847, está fazendo simplesmente uma cópia servil, revelando assim uma imaginação exausta.
Em 1847 os ingleses, "por uma Razão de Estado, uma necessidade de fronteiras científicas, a segurança do império, uma barreira ao domínio russo da Ásia..." e outras coisas vagas que os políticos da Índia rosnam sombriamente, retorcendo os bigodes - invadem o Afeganistão, e aí vão
aniquilando tribos seculares, desmantelando vilas, assolando searas e vinhas: apossam-se, por fim, da santa cidade de Cabul; sacodem do serralho um velho emir apavorado; colocam lá outro de raça mais submissa, que já trazem preparado nas bagagens, com escravas e tapetes; e, logo que os correspondentes dos jornais têm telegrafado a vitória, o exército, acampado à beira dos arroios e nos vergéis de Cabul, desaperta o correame, e fuma o cachimbo da paz...
Assim é exactamente em 1880.
No nosso tempo, precisamente como em 1847, chefes enérgicos, Messias indígenas, vão percorrendo o território, e com os grandes nomes de "Pátria" e de "Religião", pregam a guerra santa: as tribos reúnem-se, as famílias feudais correm com os seus troços de cavalaria, príncipes rivais juntam-se no ódio hereditário contra o estrangeiro, o "homem vermelho", e em pouco tempo é tudo um rebrilhar de fogos de acampamento nos altos das serranias, dominando os desfiladeiros que são o caminho, a estrada da Índia...
E quando por ali aparecer, enfim, o grosso do exército inglês, à volta de Cabul, atravancado de artilharia, escoando-se espessamente, por entre as gargantas das serras, no leito seco das torrentes, com as suas longas caravanas de camelos, aquela massa bárbara rola-lhe em cima e aniquila-o. Foi assim em 1847, é assim em 1880.
Então os restos debandados do exército refugiam-se nalguma das cidades da fronteira, que ora é Ghasnat ora Kandahar: os afegãos correm, põem o cerco, cerco lento, cerco de vagares orientais: o general sitiado, que nessas guerras asiáticas pode sempre comunicar, telegrafa para o viso-rei da Índia, reclamando com furor "reforços, chá e açúcar"!
(Isto é textual; foi o general Roberts que soltou há dias este grito de gulodice britânica; o inglês, sem chá, bate-se frouxamente). Então o governo da Índia, gastando milhões de libras, como quem gasta água, manda a toda a pressa fardos disformes de chá reparador, brancas colinas de açúcar, e dez ou quinze mil homens. De Inglaterra partem esses negros e monstruosos transportes de guerra, arcas de Noé a vapor, levando acampamentos, rebanhos de cavalos, parques de artilharia, toda uma invasão temerosa...
Foi assim em 1847, assim é em 1880.
Esta hoste desembarca no Industão, junta-se a outras colunas de tropa índia, e é dirigida dia e noite sobre a fronteira em expressos a quarenta milhas por hora; daí começa uma marcha assoladora, com cinquenta mil camelos de bagagens, telégrafos, máquinas hidráulicas, e uma cavalgada eloquente de correspondentes de jornais. Uma manhã avista-se Kandahar ou Ghasnat;- e num momento, é aniquilado, disperso no pó da planície o pobre exército afegão com as suas cimitarras de melodrama e as suas veneráveis colubrinas do modelo das que outrora fizeram fogo em Diu. Ghasnat está livre! Kandahar está livre!

Hurrah!
Faz-se imediatamente disto uma canção patriótica; e a façanha é por toda a Inglaterra popularizada numa estampa, em que se vê o general libertador e o general sitiado apertando-se a mão com veemência, no primeiro plano, entre cavalos empinados e granadeiros belos como Apolos, que expiram em atitude nobre! Foi assim em 1847; há-de ser assim em 1880.
No entanto, em desfiladeiro e monte, milhares de homens que, ou defendiam a pátria ou morriam pela "fronteira científica", lá ficam, pasto de corvos - o que não é, no Afeganistão, uma respeitável imagem de retórica: aí, são os corvos que nas cidades fazem a limpeza das ruas, comendo as imundices, e em campos de batalha purificam o ar, devorando os restos das derrotas.
E de tanto sangue, tanta agonia, tanto luto, que resta por fim? Uma canção patriótica, uma estampa idiota nas salas de jantar, mais tarde uma linha de prosa numa página de crónica...
Consoladora filosofia das guerras!
No entanto, a Inglaterra goza por algum tempo a "grande vitória do Afeganistão" - com a certeza de ter de recomeçar, daqui a dez anos ou quinze anos; porque nem pode conquistar e anexar um vasto reino, que é grande como a França, nem pode consentir, colados à sua ilharga, uns poucos de milhões de homens fanáticos, batalhadores e hostis.
A "política" portanto é debilitá-los periodicamente, com uma invasão arruinadora. São as fortes necessidades dum grande império.
Antes possuir apenas um quintalejo, com uma vaca para o leite e dois pés de alface para as merendas de verão..."
*Foi assim em 1847, foi assim em 1880. É assim em 2009. Alguém será capaz de traduzir estas páginas para Obama? O problema é outro: será que ele ou qualquer americano "controlado", entenderá o texto?*

QUERER É PODER
António d'Almeida

Comunistas e socialistas. Anos 60 e também 70

via Caminhos da Memória by Raimundo Narciso on 1/7/10
(Clicar para ler) Acabara de me fazer "amigo" do Jaime Mendes no Facebook. Já éramos amigos desde os anos 60, década que ganhou fama de mágica por causa dos Beatles, do movimento Hippie, da luta contra a guerra no Vietnam, da ida de Iuri Gagarine ao espaço e Neil Armstrong à Lua, do Maio de 68, [...]

Nem menos: retratado por um Mestre

via Caminhos da Memória by João Tunes on 1/5/10
Conheci um grande artista quando ainda estava circunscrito a um cubículo comercial que lhe aperreava o talento. Refiro-me a um dos grandes fotógrafos portugueses tardiamente revelado e que, ainda depois, derramou talento como camara man no cinema e na televisão: Augusto Cabrita (1923-1993). Quando miúdo, vivendo no Barreiro, volta e meia tinha de ir tirar as [...]

NESSES ANOS RECUADOS DE 1957

NESSES ANOS RECUADOS DE 1957

via MUKANDAS do Monte Estoril by Irdea on 1/7/10

APRENDER A LER E A ESCREVER NO ANDULO(*)

Em 1957, o Andulo perdera bastante da incipiência inicial. Continuava uma vila de dimensão e importância reduzidas, mas crescera, desdobrando-se numa avenida principal e em algumas ruas adjacentes, que eram ladeadas agora, não apenas por estabelecimentos comerciais, mas também por mora-dias particulares e edifícios públicos. Uma igreja, uma escola, um clube de futebol, um hotel, um parque infantil e dois ou três jardins, bastavam só por si para encher de orgulho os seus habitantes.

Os que haviam acompanhado de perto esse desenvolvimento, gente que vinha do tempo da fundação, comentavam o facto com algum exagero:

— Isto parece já uma cidade!

Entusiasmavam-se:

— Cresce de ano para ano e há-de ir longe!...

Exageravam realmente, mas a verdade, a verdade é que a vila de 1920 e o Andulo de trinta e sete anos depois eram bem diferentes. Se o burgo seria ou não promovido a cidade, se teria ou não um futuro promissor à frente, para recorrer às palavras dos fundadores, isso era algo de há muito desejado, mas ainda por confirmar.

Tal como os outros pais no princípio de cada ano lectivo, Abel foi de lis-ta na mão ao «A. Gouveia L.da», onde encomendou um livro de leitura, uma tabuada, uma lousa, cadernos de linhas, lápis de carvão e de cores, uma bor-racha, uma caneta de aparo, um tinteiro, tudo o que o filho precisaria para entrar na escola.

Vindo de Silva Porto como de costume, o material chegou uma semana mais tarde, e Ernesto ficou então a saber que com isso (com «essas coisas», como o pai referiu) iria começar a aprender a ser homem.

Abel pegou no livro de leitura, abriu numa página ao acaso e observou:

— É aqui que aprenderás a ler.

Depois nos cadernos de linhas:

— E aqui a escrever, a apurar a letra, a não dar erros.

Por fim na tabuada:

— E aqui a fazer contas.

Pôs o livro, os cadernos e a tabuada uns por cima dos outros, concluindo:

— Aproveita o dinheiro que gastei, puxa por essa cabeça e vê lá se estudas.

Perguntou:

— Percebeste?

Ernesto baixou a cabeça, mostrando que percebera, e alguns dias mais tarde, de sacola de serapilheira ao ombro, com todo o material lá dentro, subiu para a carrinha, sentou-se ao lado de Sapalo Jeremias e foi para a escola.

Repetiria essa viagem muitas e muitas vezes ao longo dos quatro anos seguintes, em que passaria da 1ª para a 2ª, da 2ª para a 3ª, da 3ª para a 4ª Classe. Exceptuando os sábados e os domingos, bem como os períodos de férias, repetiria esse trajecto todos os dias, mas nunca tão emocionado como nessa manhã.

Ia nervoso, tentado imaginar o que iria encontrar. E sobretudo defrontar.

O que encontrou e defrontou de facto foi um edifício que parecia enorme, com varandas nas traseiras, onde as professoras Alda Morais e Luísa Amaral, cada uma na sua sala, leccionavam turmas de trinta a quarenta alunos.

Sapalo Jeremias parou a carrinha, apontou o edifício e disse:

— Pode descer. É para ali que tem de ir, é a sua escola.

Ernesto obedeceu e foi.

Em frente da secretária de madeira maciça, com um mata-borrão verde por cima coberto por um vidro grosso, a professora Luísa Amaral ia con-vidando:

— Entrem, meninos, entrem, façam favor.

Era uma mulher de estatura mediana, cabelos castanhos curtos, ar austero como convinha ao magistério. De vara de bambu na mão, parecia estar com pressa:

— Entrem, entrem e fechem a porta.

Ernesto sentou-se na carteira, pôs a sacola de serapilheira sobre o tampo, olhou demoradamente à volta: primeiro para o quadro-preto, depois para as janelas que davam para a rua, por fim para os colegas que tinha ao lado, também eles incapazes de esconder o seu nervosismo e o seu receio.

Sempre de pé em frente da secretária, Luísa Amaral insistia:

— Entrem, meninos, entrem.

__________

(*)Inácio Rebelo de Andrade

in O Pecado Maior de Abel (romance), Edições Colibri, Lisboa, 2009

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Colónias (As) portuguesas perante a guerra

via ANGOLA DO OUTRO LADO DO TEMPO... by MariaNJardim on 1/5/10
1915-01-03 Versão para impressão
Colónias (As) portuguesas perante a guerra
"É do Sr. Lisboa de Lima, último ministro das Colónias, o artigo que se segue e que, com a devida vénia, transcrevemos da Revista Colonial: «As colónias portuguesas, ao declarar-se a guerra europeia que sem dúvida as afectaria, senão na integridade de seus territórios e na sua ordem interna, ao menos na situação económica e financeira de todas elas, estavam em vésperas de ver efectivada a sua autonomia administrativa e financeira que as leis de 15 de Agosto de 1914 lhes outorgaram e pelas quais as colónias de longa data ansiavam, como a mais segura garantia das suas propriedades e desenvolvimento.

Se não fora a guerra europeia, seria hoje um facto o empréstimo de 8 000 contos para Angola, como primeira parte do grande empréstimo dos 40 000 contos; e à utilização criteriosa daqueles 8 000 contos seguir-se-ia sem dúvida o complemento do plano de fomento.

Portanto, mesmo apesar de deixarem a desejar as condições económicas de Angola ao serem decretadas as leis de 15 de Agosto, aquela província em poucos anos estaria, como as demais colónias portuguesas, em situação de usar com toda a liberdade a sua autonomia, emancipada da tutela que a obrigavam, perante a metrópole, os forçados subsídios de que até agora tem carecido.

O reflexo da guerra europeia nas condições económicas e financeiras de todas as colónias, veio, pois, surpreendê-las nas vésperas de uma situação em que elas punham todas as suas esperanças, pela garantia que lhes dava de uma vida nova de trabalho e de inegável desenvolvimento. Não depende do esforço individual de ninguém, nem até do esforço de todos os portugueses, que a situação anormal que para as nossas colónias criou, termine em prazo curto. Depende, porém, e muito, de todos nós, de dirigentes e de dirigidos, que os efeitos dessa guerra se façam sentir o menos possível em todas as colónias e especialmente naquelas que pela sua vizinhança de colónias pertencentes as nações beligerantes, mais expostas estão a ser mais profundamente atingidas pelos efeitos da guerra.»"


Fonte:
LIMA, Lisboa de, "As Colónias portuguesas perante a guerra" in O Jornal do Comércio e das Colónias, n.º 18 270, de 3 de Janeiro de 1915, p.2.