quarta-feira, 30 de setembro de 2009

“O Índio do Brasil na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI, XVII e XVIII” (III)

via Carreira da Índia de Leonel Vicente em 30/09/09

Arinos de Melo Franco, tentando, e com muita felicidade, explicar o maior interesse dispensado aos indígenas do Brasil e da América Central, em detrimento daquele manifestado pelos Índios de outras regiões, dá-nos a conhecer que eram precisamente aqueles que melhor se prestavam para ilustrar um conceito de «bom selvagem» e de vida «natural». Na verdade, ao contrário do que sucedia com os habitantes da América do Norte e do extremo sul da América, a amenidade do clima tornava possível que andassem nus; esta circunstância, embora puramente exterior, dava-lhes, no entanto, um aspecto ainda menos civilizado e mais próximo da natureza do que aos restantes indígenas americanos e, além disso, os habitantes do Perú e do México encontravam-se num grau de civilização e cultura demasiadamente elevado para poderem ser vistos como representantes da primitiva inocência.

Acresce ainda o facto de que, nos começos do século XVI, as naus europeias se dirigiam sobretudo ao Brasil, que dessa forma se ia tornando muito mais conhecido do que qualquer outra região.

Por outro lado, sendo este nome de Brasil, que o comércio do pau de tinta fez prevalecer sobre a designação de «terra de Santa Cruz», já anteriormente atribuído a uma daquelas ilhas lendárias, desconhecidas e fabulosas, que povoavam a cartografia medieval, era inevitável que esta terra recém-descoberta com ela fosse identificada no pensamento de muitos; o interesse que despertou encontra-se atestado em numerosos documentos.

Assim, logo em 1500, deparamos com a carta de Pero Vaz de Caminha, a do Piloto Anónimo e a de D. Manuel aos Reis Católicos.

Em 1501, é um italiano, Giovanni Cretico, que se ocupa dos habitantes do Brasil.

Em 1502, ou inícios de 1503, outro italiano, Américo Vespúcio, escreve uma carta a Pedro Lourenço de Médicis, carta essa que ficou vulgarmente conhecida pelo nome de Mundus Novus e cuja influência veio a ser decisiva para os conhecimentos geográficos da época. [...]

Quanto ao seu conteúdo, diz-nos que nela louva Américo Vespúcio a beleza e o clima do país, assim como a forma de viver dos seus numerosos habitantes. Viviam num regime comunitário, ignorando a propriedade, a moeda e o comércio, gozavam de uma liberdade moral completa, não tinham religião, e a sua idade alcançava, em média, cento e cinquenta anos.

Por tudo isto as cartas de Vespúcio constituem, na opinião de Arinos de Mello Franco, a base da formação do mito do «bom selvagem» [...]

"O Índio do Brasil na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI, XVII e XVIII", de Maria da Conceição Osório Dias Gonçalves, Separata de BRASILIA, vol. XI, Coimbra, 1961, pp. 10 e 11

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Entre trapos, linhas e botões

via Sopas de Pedra de A. M. Galopim de Carvalho em 28/09/09
.
JÁ O CONTEI NOUTROS escritos, entrei tarde e mal preparado para a escola oficial. A aprendizagem das 1ª e 2ª classes fi-la em casa, com a minha mãe, nas muitas horas que ela dedicava à costura, recitando a tabuada e juntando as letras na Cartilha Maternal de João de Deus.

Nesse tempo, quase tudo o que vestíamos, pais e filhos, era feito em casa, das cuecas às camisas, dos vestidos aos fatos, das roupas de cama e de mesa às cortinas e cortinados, tudo ela fazia de novo, passajava, remendava e adaptava dos mais crescidos para os mais novos. Solteira, havia aprendido costura e trabalhara, sobretudo, para alfaiates, em fatos de homem. De agulha na mão ou a pedalar na máquina Singer, era trabalho que fazia por necessidade e, também, por gosto. Mais do que cozinhar para uma família, nesse tempo, com cinco filhos, sendo eu o mais novo, a mãe gostava de costurar.

Um fato que o pai deixasse de vestir era desmanchado, virado do avesso e feito de novo para o filho mais velho, aproveitando as mesmas entretelas e os mesmos forros e chumaços. Só se notava a transformação, porque o bolso do peito, onde ainda hoje se coloca um lenço a condizer com a gravata, passava a ficar do lado direito, denunciando a situação, o que agastava o filho que não tinha outro remédio que não fosse usá-lo assim até que voltasse para o cabide, à espera que o irmão mais novo crescesse. As camisas tinham, também, a sua história. Quando os colarinhos e os punhos, ao fim de um certo tempo de uso e de lavagens, ficavam roçados, cortavam-se as mangas e, com elas, faziam-se novos colarinhos. Reparada a camisa, agora de meia manga, ficava nova uma segunda vez. Mas havia uma terceira ressurreição destas peças do vestuário masculino. Inutilizado o último colarinho, ou seja, o que nascera das mangas, cortavam-se as fraldas, das quais ressurgia a última geração de colarinhos. A camisa, amputada da sua fralda original, recebia um transplante de uma qualquer camisa dadora, posta de lado para se transformar em pano de limpeza, depois de lhe serem retirados os botões.

Foi assim, entre trapos, linhas e botões, que aprendi, mal, os rudimentos da leitura, da escrita e da aritmética. Em 1940 dei entrada na Escola Oficial de São Mamede, na 3ª classe, na classe da dona Júlia, professora nova, simpática e bondosa que, praticamente, não nos batia e que, quando tinha de nos aplicar umas reguadas, como instrumento pedagógico então aceite e seguido, o fazia num jeito de deixar cair a régua sobre a mão da criança. Nada que se comparasse com os castigos dos outros mestres-escola que conheci.

“O Índio do Brasil na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI, XVII e XVIII” (II)

“O Índio do Brasil na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI, XVII e XVIII” (II)

via Carreira da Índia de Leonel Vicente em 29/09/09

Todos estes dados que até aqui reunimos contribuem para nos dar uma rápida visão do lugar cada vez maior que o novo continente ia ocupando nas preocupações europeias. Mas mais nos interessa agora notar que, para além de todo este progresso material e de todos os factores económicos que estiveram em jogo durante o longo período de colonização da América, houve sempre – inúmeras provas o atestam – um interesse mais directo, de cada indivíduo, de cada explorador, por tudo o que de novo ou de diferente tinham conhecimento. E é assim que, quer por cartas, quer em narrativas de viagens, se apressam a comunicar tudo o que os impressiona ou deslumbra àqueles que, igualmente sedentos de novidade, mas impossibilitados de partir, ficaram na Europa.

O botânico preocupa-se em conhecer as espécies de plantas, de árvores, de flores, como o zoólogo vibra ao saber da existência de animais até então desconhecidos da ciência. Mas é sobretudo o homem, o Índio americano, com os seus costumes, com as suas concepções religiosas e morais e mesmo com a sua vida prática, que preocupa a sociedade europeia e que esta se empenha em conhecer nas suas menores manifestações.

[...]

Os Descobrimentos foram, sabemo-lo bem, um dos factores dominantes do Renascimento. As concepções pseudo-científicas da Idade Média caíram como um baralho de cartas e com elas se foi, pouco a pouco, fragmentando e desagregando o teocentrismo que a tinha dominado e que foi progressivamente cedendo o lugar a novos valores. [...]

Sem o homem do Renascimento, o Índio da América apenas teria existido na literatura como simples curiosidade ou diversão do espírito. E, ao mesmo tempo que aquele o enriqueceu com novas perspectivas, este forneceu-lhe matéria e temas preciosos e inesgotáveis.

Assim se compreende a avidez com que toda e qualquer informação sobre esses novos povos era acolhida. As cartas, as longas narrativas ou as simples notações de viagens, eram recebidas com entusiasmo, lidas, traduzidas, comentadas.

Desde que Colombo tornou conhecida a sua descoberta, não se descansou mais na Velha Europa. As cartas tornaram-se objecto de todas as atenções e constituíram o germe que iria dar origem a algumas das mais completas e das mais belas narrativas de viagem.

"O Índio do Brasil na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI, XVII e XVIII", de Maria da Conceição Osório Dias Gonçalves, Separata de BRASILIA, vol. XI, Coimbra, 1961, pp. 8 a 10

“O Índio do Brasil na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI, XVII e XVIII” (I)

via Carreira da Índia de Leonel Vicente em 28/09/09

Quais as circunstâncias históricas que tornaram possível o aparecimento do Índio como tema literário?

Quais os meios por que as coisas do Brasil se foram progressivamente tornando conhecidas na Europa?

Qual o resultado do contacto deste conhecimento com as ideias que já existiam na Europa sobre os selvagens?

São estas as perguntas a que, antes de mais, nos propomos responder.

Quando, em 1492, Cristóvão Colombo aportou, na América Central, em S. Salvador, não lhe era fácil dar-se conta de que um Novo Mundo se tinha aberto aos Europeus.

Levado pela ideia de alcançar as Índias pelo Oeste, facilmente se convenceu de que tinha chegado ao seu destino. E quando, em 1500, Pedro Álvares Cabral desembarcava num território que viria em seguida a formar a província portuguesa do Brasil, continuava-se ainda na mesma ilusão.

É difícil agora, a distância, darmo-nos bem conta da emoção que se deve ter verificado quando, em 1507, o florentino Américo Vespúcio deu conta de que não era a Índia o território descoberto, mas sim um território completamente desconhecido, e da curiosidade intensa, quase da impaciência febril, que da Europa se ia apoderando, de conhecer exactamente as possibilidades que se encontravam nas terras recém-descobertas.

Assim se compreende que, desde então, e durante um largo período de tempo, os olhos da Europa tenham estado fixados no Novo Mundo.

Quer procurando expandir para além-mar o património recebido e a religião da terra-mãe, quer cedendo a um desejo imperioso de novidade e libertação, em breve se estabeleceu entre a velha Europa e o Novo Mundo uma cadeia de circulação e relações que não viria mais a ser interrompida.

A Espanha, desde 1519, até à segunda metade do século XVI, ocupa o México (1519-1522), o Perú (1532-1535(, a Venezuela (1520-1540), o Iucatão (1527-1547), a Colômbia (1538) e, finalmente, a Argentina e o Paraguai. Portugal continuava ocupado na colonização do Brasil e, fascinados pelas novas descobertas, logo, após Espanhóis e Portugueses, se lançaram Franceses, Ingleses e Holandeses na rota do Novo Mundo.

"O Índio do Brasil na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI, XVII e XVIII", de Maria da Conceição Osório Dias Gonçalves, Separata de BRASILIA, vol. XI, Coimbra, 1961, pp. 7, 8

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

A fundação da cidade do Rio de Janeiro (VI)

via Carreira da Índia de Leonel Vicente em 25/09/09

De facto, continuavam a viver-se momentos complicados na política interna portuguesa, sendo de fundamental importância o abandono das fortalezas que Portugal detinha em Marrocos, desolação sustentada na ideia de que D. Catarina se deixava influenciar pela pouca importância dada por Castela a essa vertente dos interesses portugueses.Vivia-se igualmente a consequência do gorado sonho da Índia, de que apenas restavam os "fumos". É nesse contexto que deve ser entendida a necessidade de clarificar as políticas e recuperar para o reino as zonas que ainda era possível dominar. Estava nesse caso o Brasil, nomeadamente as capitanias do sul e, obviamente, a zona da Guanabara. Não poderia, pois, haver mais hesitações. Era preciso enviar reforços que, assegurando a presença portuguesa, pudessem, em simultâneo, desbravar, povoar, criar núcleos urbanos, de que o Rio de Janeiro era já a mais estratégica promessa.

Por isso, o Cardeal D. Henrique faz partir de Lisboa, em Maio de 1566, uma frota de socorro sob o comando d Cristóvão de Barros, que chegou à Baía em 24 de Agosto. Nela "o cardeal D. Henrique enviava instruções para Mem deSá [...] ordenando-lhe que fosse em pessoa ao Rio de Janeiro, no comando da frota [...]. Os franceses tinham recebido forte auxílio militar para erguer fortalezas na costa do Cabo Frio, mantendo os nativos em estado de constante guerra contra os habitantes de S. Sebastião. A presença do Governador, no teatro da luta, tornava-se urgente [...]. Cumprindo as ordens recebidas, Mem de Sá reforçou a esquadra e seguiu para o Rio de Janeiro, onde ancorou em 18 de Janeiro de 1567.

"O sacrifício de Estácio de Sá e dos seus homens durara vinte e dois longos meses, vividos «com muita guerra e trabalhos». Mas, como reconheceu o próprio governador, supriu tudo com enorme coragem, conseguindo manter-se, apesar da falta de mantimentos e do escasso auxílio que tinham recebido da Baía de Todos os Santos. O desgaste de nervos, a que os obrigara uma luta quase diária de assaltos e emboscadas,não enfraquecera, porém, o ânimo dos moradores". A cidade do Rio de Janeiro era já uma realidade no espaço, que nada poderia destruir. Em consonância com a política do reino, que decidira que, abertamente, se fizesse guerra à ocupação francesa, não temendo já enfrentar, se tal fosse necessário, o desafio espanhol, o domínio das terras do sul tornava-se cada vez mais realidade.

A cidade do Rio de Janeiro foi crescendo, ganhando os morros vizinhos e alargando a sua grandeza. Estácio de Sá morria, na sequência de graves ferimentos, em Fevereiro de 1567. Tinham decorrido quase dois anos sobre a fundação e iniciava-se finalmente a pacificação, pois "um testemunho coevo refere que o Governador entrara em paz com o gentio e que «os franceses estavam botados fora do Rio de Janeiro» [...]".

(Manuela Mendonça, "A tardia ocupação da região de Guanabara. Insensatez política ou mentalidade antiga?", in "Raízes Medievais do Brasil Moderno – Actas", Academia Portuguesa da História, Lisboa, 2008, pp. 300 – 301)

A fundação da cidade do Rio de Janeiro (V)

via Carreira da Índia de Leonel Vicente em 24/09/09

Seguiu-se um período de alguma agitação e, enquanto estava no porto de S. Vicente, nos fins desse ano de 1564, Estácio de Sá recebeu um pedido dos vereadores de S. Paulo, solicitando-lhe que desistisse do projecto do Rio de Janeiro e conduzisse as suas forças para salvar São Paulo, também muito ameaçada pelos índios da região. Garantiam agora que de nada serviria fundar uma nova povoação na Guanabara, se a terra de Piratiniga estava em riscos de se perder. Mas esta era a perspectiva dos moradores de São Paulo, que viam o problema somente em função da sua capitania. Contudo, o plano de Estácio era o mais eficiente, porque considerava que a criação de uma cidade no Rio de Janeiro iria contribuir para a segurança de São Paulo, Importante era que se pusesse um rápido termo aos focos de resistência dos Tamoios, pois eles partiam de Guanabara para a ameaça que faziam a Brasil. Portanto, se ali fossem vencidos, S. Paulo mais facilmente obteria a paz. Era a unidade do Brasil português que estava em causa e a fundação do Rio de Janeiro iria contribuir para essa realidade.

E assim aconteceu. De Santos, a frota portuguesa dirigiu-se, em Janeiro de 1565, para a Guanabara. No dia 26 de Fevereiro entraram na baía – "verdadeira Babilónia de águas e de ilhas" na frase de Varnhagem – e foram desembarcar numa pequena península onde mais tarde se construiria o forte de S. João, à sombra do monte depois conhecido por Pão de Açúcar. Foi ali que Estácio de Sá fundou o novo povoado, que não era mais que uma modesta cerca. A 1 de Março, "começaram a roçar em terra", cortando madeira e desbastando o mato, erguendo, a partir de então, o mais antigo núcleo da povoação. A essa pequena cerca deu Estácio de Sá o nome de S. Sebastião, em homenagem ao jovem rei de Portugal, sob cujo signo se erguia a nova cidade. Viveram-se dias terrivelmente difíceis para os primeiros moradores, pois os nativos, ajudados e até instigados por alguns franceses que se haviam refugiado no interior, atacavam o arraial tentando, a todo o custo, impedir a construção. Por isso mesmo se pode dizer que o primeiro mês de vida da cidade do Rio de Janeiro foi de extremo sacrifício para os defensores, que eram, na sua grande maioria, também povoadores. Aos ataques inimigos aliava-se a chuva abundante que não deixava de tombar e até as provisões se esgotaram, dando origem a grandes dificuldades e até mesmo à fome. A figura de Estácio de Sá foi determinante em todo o processo, numa actividade que levou o Padre Anchieta a escrever que o capitão: "nunca descansava nem de noite nem de dia".

(Manuela Mendonça, "A tardia ocupação da região de Guanabara. Insensatez política ou mentalidade antiga?", in "Raízes Medievais do Brasil Moderno – Actas", Academia Portuguesa da História, Lisboa, 2008, pp. 297 – 299)

A fundação da cidade do Rio de Janeiro (IV)

via Carreira da Índia de Leonel Vicente em 23/09/09

Por outro lado, na capitania de S. Vicente erguera-se, a partir de 1554, um aglomerado urbano com o nome de São Paulo. Era importante a criação de uma povoação vizinho que garantisse a pacificação dos nativos e protegesse, em caso de perigo, a terra de Piratininga. Por isso, também os habitantes de São Paulo insistiam na fundação de uma cidade no Rio de Janeiro. E os jesuítas defendiam também as vantagens dessa fundação que o Padre Manuel da Nóbrega preconizava, em 1560, como "a milhor cousa do Brasil". De facto, importava encontrar uma eficaz maneira de impedir os franceses de voltarem à Guanabara. E tal conseguir-se-ia com soldados, mas também, e sobretudo, com moradores que assegurassem uma população estável, que se integrasse na terra e a sentisse como sua.

Todas estas circunstâncias levaram a Coroa a apoiar finalmente a fundação da cidade, decidindo a criação de um núcleo português na baía de Guanabara. Assim se iniciava uma obra de pacificação, tanto militar como religiosa, quanto aos índios; em simultâneo abria-se uma guerra aberta, contra os corsários, nomeadamente contra os franceses. Com efeito, a existência de uma povoação habitada por súbditos do rei de Portugal dificultaria agora o que antes se facilitara: a presença franca, caso a Coroa retomasse a ideia de ali fixar de novo o seu poder. E se tal acontecesse, certamente D. Catarina contava com a ajuda de Espanha. Deste modo terminava o período em que a região da Guanabara fora "terra de ninguém". O sítio do Rio de Janeiro ia servir de base à fundação de uma bela e promissora cidade. Para tanto, no ano seguinte, de 1561, o governador mandou ao reino um sobrinho, Estácio de Sá, com o fim de obter o envio de uma significativa ajuda para garantir a fundação. Na sequência dessa missão, uma frota partiria de Lisboa em 15 de Fevereiro de 1563, aportando, a 1 de Maio seguinte, à Baía de Todos os Santos. Daí seguiu, aumentada em efectivos, na direcção de Guanabara, com o objectivo de "fazer povoação". No impedimento do Governador, comandava-a Estácio de Sá, seguindo nela como ouvidor-geral Brás Fragoso. No dia 6 de Fevereiro de 1564 entraram na baía do Rio de Janeiro, mas foram acolhidos de maneira hostil pelos índios Tamoios, que atacaram os portugueses com perto de cem canoas. Vendo que era impossível iniciar, de momento, a construção da povoação, Estácio de Sá mandou pedir reforços a S. Vicente e, perante o aumento de dificuldades, resolveu seguir para o sul em 29 de Março para obter novos meios de luta. Falhara a primeira tentativa para a fundação de uma vila portuguesa no Rio de Janeiro.

(Manuela Mendonça, "A tardia ocupação da região de Guanabara. Insensatez política ou mentalidade antiga?", in "Raízes Medievais do Brasil Moderno – Actas", Academia Portuguesa da História, Lisboa, 2008, pp. 296, 297)

A fundação da cidade do Rio de Janeiro (III)

A fundação da cidade do Rio de Janeiro (III)

via Carreira da Índia de Leonel Vicente em 22/09/09

A substituição do governador Tomé de Sousa por D. Duarte da Costa que, talvez orientado pelo governo de Lisboa, parecia desinteressado das capitanias do sul, não foi de molde a valorizar a presença portuguesa na Guanabara. Tal atitude haveria de conduzir ao reforço da presença franca, que teria o seu ponto alto nos finais de 1555. Então, um grupo de 600 franceses, chefiados por um Nicolau de Villegaignon – curiosa figura de jurista, militar e aventureiro – fixou-se na Guanabara, ai criando o núcleo de uma França Antártica que, durante cinco anos, constituiu uma grave ameaça para o futuro do Brasil português. Mas não impediu a continuação do projecto de criação da cidade portuguesa que então, com maior veemência, se impunha. Esta tentativa dos franceses ultrapassava já largamente a situação anterior, transformando-a numa ameaça de força capaz de expulsar os próprios portugueses do Rio de Janeiro! Dominando a pequena ilha de Serigipe – depois chamada de Vilaganhão – os franceses transformaram-na em reduto muralhado, de modo a assegurarem, naturalmente pela força, a respectiva presença. Villegaignon sonhou fundar a partir dali os alicerces de uma futura cidade, a que chamaria Henryville, em homenagem ao seu rei. Disputando o Sul do Brasil e escolhendo a sua melhor zona estratégica, o comandante levantaria uma cidade à semelhança do que fizera, por exemplo, Constantino, imperador de Roma, em Contantinopla. Seria a resposta ao favor régio que esta expedição tivera, uma vez que fora apoiada pelos reis Henrique II e Catarina de Médicis, além de contar com o auxílio do almirante de Coligny, chefe dos huguenotes franceses. Já não se tratava, pois, de um um acto de pirataria, mas de uma violação dos direitos portugueses pela Coroa de França, concretizando uma ameaça que o rei de Portugal de há muito arriscava. Era a afirmação do poder francês que, como grave ameaça à coroa portuguesa, só desapareceu em 1560.

(Manuela Mendonça, "A tardia ocupação da região de Guanabara. Insensatez política ou mentalidade antiga?", in "Raízes Medievais do Brasil Moderno – Actas", Academia Portuguesa da História, Lisboa, 2008, pp. 293 – 294)

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Exomuseu da Natureza

Exomuseu da Natureza

via Sopas de Pedra de A. M. Galopim de Carvalho em 20/09/09
.
Nas Portas de Ródão

EM 1983 FUI DESIGNADO pelos meus pares da Faculdade de Ciências de Lisboa para dirigir o Museu Mineralógico e Geológico, parte importante do Museu Nacional de História Natural da Universidade de Lisboa, confinado às suas paredes, como ainda é, trinta anos volvidos sobre o grande incêndio de 1978. Um tal vazio e a inexistência de qualquer propósito de recuperação, não obstante as promessas, por parte da tutela, deixaram-me espaço para conceber um outro tipo de musealização que me conduziu, à ideia de um Exomuseu da Natureza.

Concebido como um conjunto de ocorrências naturais, esta estrutura museológica, geograficamente dispersa, é coordenada a partir de uma dada instituição (um museu, uma autarquia, uma universidade, uma fundação) que as identifica, inventaria, e as aceita como "peças" que, como tal, protege, estuda, valoriza e explica ao visitante. Expu-la no 1º Encontro Nacional do Ambiente, Turismo e Cultura, reunido em Sintra, em 1989, por iniciativa do Centro Nacional de Cultura, ao tempo da saudosa Helena Vaz da Silva.

Entre essas ocorrências, que podemos considerar também como pólos desse exomuseu, devem estar, entre outras do património natural, os geossítios e os geomonumentos localizados em pontos diversos de um dado território. Sendo evidente que tais ocorrências não cabem, fisicamente, dentro do edifício de um museu convencional e tendo em atenção que o seu enquadramento natural, no local onde se encontram, é essencial à sua compreensão, elas têm, forçosamente, de permanecer fora das paredes da referida instituição.

É esta particularidade, que sai fora do conceito tradicional de museu, que determinou o neologismo, no qual o prefixo exo, do grego ekso (fora, de fora, por fora), a distingue de um outro tipo – o ecomuseu – já conhecido do grande público. O conceito de exomuseu abarca, ainda, todas as ocorrências que, embora tenham sofrido intervenção humana, continuem a ser considerados como documentos da história da Terra e da Vida, como são, por exemplo, as minas e as pedreiras abandonadas.

Passadas duas décadas sobre a sua formulação, o exomuseu é hoje algo mais do que um nome ou do que uma ideia. Não tendo ainda realidade jurídica, nem figurando nos dicionários, esta estrutura já existe no terreno, representada pelos vários geomonumentos entretanto musealizados e nos textos oficiais dos protocolos assinados entre o Museu Nacional de História Natural e algumas autarquias.

Alguns geomonumentos referenciados em Portugal foram convertidos em pólos dispersos de uma estrutura museológica, nos moldes referidos atrás, mediante protocolos já celebrados entre o citado Museu e as Câmaras Municipais de Évora, Lisboa, Setúbal e Viseu. Nos acordos assim firmados, estes geomonumentos foram considerados pólos da Universidade de Lisboa nos citados concelhos. Nestes, o cimo granítico de uma colina nos arredores de Évora é hoje o Núcleo Museológico do Alto de São Bento, em funcionamento efectivo e permanente ao serviço, sobretudo, das escolas da região. Na cidade de Lisboa foram musealizados, ou estão em vias de o ser, uma série de geomonumentos. O sítio da Pedra Furada, recuperado e explicado ao público, é uma realidade em Setúbal. O Museu do Quartzo, na pedreira de Santa Luzia, em Viseu, está prestes a ser inaugurado.

Outra sorte não tem tido o Museu e Centro de Interpretação de Pego Longo (Carenque) – a grande jazida com pegadas de dinossáurios do Cretácico - com projecto iniciado há mais de vinte anos e aprovado pela autarquia sintrense, já lá vão oito, continua, lamentável e incompreensivelmente, à espera de concretização e de poder constituir a fonte de receita turística que se lhe adivinha.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

A fundação da cidade do Rio de Janeiro (II)

via Carreira da Índia de Leonel Vicente em 21/09/09

Enquanto no reino se iam gizando os planos políticos, os homens presentes no Brasil iam percebendo a importância crescente do avanço para sul, com o estabelecimento de pontos de apoio ao longo da costa. E nessa perspectiva começou a ser apontado o local onde viria a ser construído o Rio de Janeiro, pela sua localização estratégica. Tal aconteceu com a já aludida expedição de Martim Afonso, que permaneceu de 30 de Março a 1 de Agosto de 1531 na Guanabara. O irmão deste capitão, Pero Lopes de Sousa, traçou, no roteiro por si elaborado, a primeira panorâmica desta zona, em língua portuguesa. Em texto sucinto, mas valioso, descreve a beleza da região: "A gente deste rio he como a da baia de todolos santos, senam quanto he mais gentil gente. Toda a terra deste Rio he de montanhas e serras mui altas, as melhores aguas ha neste Rio [...]". Estes dois irmãos estabeleceram-se na zona, sendo concedida a capitania de S. Vicente a Martim Afonso de Sousa, e a de Santo Amaro a Pêro Lopes de Sousa. Com a sua presença, dois padrões portugueses passariam a demarcar a respectiva soberania na zona que englobava já o local onde seria construída a futura cidade do Rio de Janeiro. E tal escolha não era indiferente ao nauta português, pois tinha ordem régia para "na repartição que disso se ouver de fazer escolhais a melhor parte [...] nos melhores limites dessa costa [...]". Se escolheu esta zona foi porque acreditou no seu potencial, numa clara demonstração do crescente interesse dos portugueses pelas terras meridionais, mas também percebendo a importância estratégica da Guanabara.

Mas o grande centro de interesse oficial na política do Brasil continuava a ser as capitanias do Norte, sobretudo Pernambuco e a Baía. Por isso, era nessa porta de entrada do território que a Coroa fazia concentrar a parte mais forte da defesa, quase desguarnecendo a restante costa. Tal permitia que a acção dos corsários franceses continuasse a alargar-se até à zona do Cabo Frio, onde iam roubar madeira e amotinar os indígenas contra a presença dos mercadores e nautas portugueses. Nos anos de 1547 e 1548 essa ameaça tornara-se tão grave que Luís de Góis, morador em Santos, escreveu a D. João III alertando-o: "se com tempo e brevidade Vossa Alteza não socorre a estas capitanias e costa do Brasil, ainda que nós percamos as vidas e fazendas, Vossa Alteza perderá a terra". Este e outros alertas levaram à criação, em 1549, do Governo Geral e à medida que se caminhava para uma melhor organização do território, mais clara se tornava a importância estratégica da Guanabara. Por isso iam aumentando as propostas para que o monarca ali mandasse fundar uma povoação, única maneira de evitar a perda da região, pois continuava a ser uma escala de corsários, sobretudo franceses.

(Manuela Mendonça, "A tardia ocupação da região de Guanabara. Insensatez política ou mentalidade antiga?", in "Raízes Medievais do Brasil Moderno – Actas", Academia Portuguesa da História, Lisboa, 2008, pp. 289, 290)

Um homem livre? Este

via Entre as brumas da memória de Joana Lopes em 21/09/09
Confessa que gosta de andar bem vestido – e anda -, que não resiste ao acelerador e chega aos 150 km em auto-estrada, que rir é um remédio fantástico. Que gostaria de andar no espaço à volta da terra, que não tem pesadelos, nem guarda pedras no sapato. E, o que é absolutamente admirável e verdadeiro, que não tem medos – nenhum, de nada.É Edmundo Pedro, quase 92 anos que poderiam ser 72 ou 42...

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

A fundação da cidade do Rio de Janeiro (I)

via Carreira da Índia de Leonel Vicente em 18/09/09

Sabemos que, após a chegada das naus de Pedro Álvares Cabral à terra de Santa Cruz, se legitimava para Portugal um ponto de escala no caminho para a rota do Cabo. Na sequência, foram-se estabelecendo os portugueses nos pontos mais favoráveis aos objectivos do momento. Mas o Brasil, inserido como estava num continente bem mais vasto, não podia ser apenas ponto de interesse ou apoio para o povo luso. Já referimos a presença francesa, mas importa lembrar que também os espanhóis, que tomavam a direcção do Rio da Prata, navegavam por estas paragens, nomeadamente pela região da Guanabara. Por outro lado, não é novidade para ninguém que o corso era, à época, uma actividade rentável para os que o exerciam e para os respectivos monarcas, que o legitimavam e depois lhe partilhavam os proventos. Por isso, desde o primeiro quartel do século XVI, corsários, sobretudo franceses, navegavam por estes mares, chegando mesmo a estabelecer pontos de apoio em zonas favoráveis da costa. Esta situação acentua-se sobretudo a partir de 1530 para a zona a sul do Cabo Frio. Como resposta, Portugal passaria a enviar algumas expedições que visavam destruir esse terror dos mares e ameaça da costa. Assim se deve entender, por exemplo, a que foi comandada por Martim Afonso de Sousa, que partiu de Lisboa a 3 de Dezembro de 1530, e que chegou já em 1531. Levava como missão específica pôr um termo à presença dos corsários franceses que pretendiam rivalizar com o comércio português e atrair a amizade dos indígenas. Começaria D. João III a encarar de frente a defesa do Brasil? A resposta parece ser positiva, atendendo à ordem régia para a colocação de padrões portugueses como marcas de posse da terra. Tal decisão pode compreender-se ainda melhor, se pensarmos que ela ocorre na sequência do problema levantado por Espanha sobre a posse das Molucas e que se decidira em 1529. A questão colocada prendia-se com a reivindicação espanhola de ter chegado às ilhas antes dos portugueses. Por mais que D. João III demonstrasse que não era verdade, apresentando testemunhos, nada pôde provar, acabando por aceitar "comprar" a respectiva posse aos espanhóis, que lhe exigiram a módica quantia de 350.000 ducados de ouro. Não se torna, pois, difícil perceber que o rei de Portugal se começasse a preocupar com a marcação das terras, provando assim a sua prioridade na ocupação. Ora, em acção concertada com a colocação dos padrões e para um melhor conhecimento e aproveitamento da zona, D. João III organizava também as capitanias, que entregava a gente da sua confiança.

(Manuela Mendonça, "A tardia ocupação da região de Guanabara. Insensatez política ou mentalidade antiga?", in "Raízes Medievais do Brasil Moderno – Actas", Academia Portuguesa da História, Lisboa, 2008, pp. 284, 285)

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

OS CHAPARROS CRESCEM E AS AZINHEIRAS MINGUAM

via Sopas de Pedra de A. M. Galopim de Carvalho em 13/09/09
O SENHOR CAMILO era o mordomo da Sociedade Harmonia Eborense nos anos quarenta e cinquenta. De nacionalidade espanhola, dizia-se à boca pequena que era refugiado da Guerra Civil. Nunca soube ao certo se era ou não, nem isso me interessava nessa altura. Cedo conquistou a estima e a muita amizade de todos os que com ele privavam, acabando por se tornar figura querida da cidade. Barrigudo, de meia-idade, de ralos cabelos grisalhos e farto bigode a tapar-lhe metade da cara macia e sempre risonha, o senhor Camilo era uma figura carinhosa e doce, mesmo no seu "portunhol" que nunca perdeu. Este homem bom, com provas dadas de grande amizade pela nossa família, tinha um gosto muito particular pela arte dos sabores e introduziu em muitos dos seus amigos o hábito de "pinchar". A cozinha do senhor Camilo era um salão confortável, enorme, onde as frutas e os legumes, artisticamente dispostos em belos cestos e outros recipientes, eram sempre motivo de decoração. Do mesmo modo que os vinhos, as mercearias e os mais variados utensílios, de todos os tamanhos e feitios, davam ao espaço uma organização estética a condizer com os aromas sempre ali reinantes, entre os quais o do seu inseparável charuto. Ali saboreámos todas as guloseimas que sempre tinha para nos regalar. Para nós, crianças, que ali passámos muitos dos nossos tempos livres, no jogo da glória, no dominó e, mais tarde, no do bilhar, o senhor Camilo ficou-me na memória como o avô que não tive.

– Quieres un helado, hijo mio? No le digas nada, que te dé um regalo.

Nesse tempo os homens saíam sempre depois de jantar. O meu pai reunia-se com os amigos na Sociedade e aí passava o serão, as mais das vezes, em torno do bilhar. Vê-lo jogar era uma festa, sempre animada por assistência numerosa e atenta. Vê-lo ganhar enchia-me de uma vaidade gostosa. Ouvir os elogios do outro jogador, acompanhados das convencionais pancadinhas com o taco no soalho, em sinal de aplauso, faziam-me transbordar de satisfação. Tantas vezes que, nas séries de duzentas carambolas, ele as fazia de seguida, sem que o companheiro tivesse tido oportunidade de pegar no taco. As bolas, a puxar e a seguir, com massés, tabelas secas ou outras habilidades, acabavam sempre por se juntar num canto. Aí, o meu pai iniciava a "série americana", algo monótona, diga-se, mas de uma precisão extrema. Sempre juntas, as três bolas, tacada a tacada, iam dando a volta à mesa. E se alguma se afastava demasiado, era de imediato recolocada no devido lugar com uma tacada aberta que a enviava e trazia de volta, a morrer, como se dizia. Havia sempre um voluntário que, no final, contava em voz alta as derradeiras carambolas.

–... cento e noventa e sete, cento e noventa e oito, cento e noventa e nove... duzentas!

– Boa tacada! - Gritava alguém, excitado pela qualidade da última carambola, espectacular, de amplo desenho geométrico, alargado às várias tabelas.

Seguiam-se os aplausos, ruidosos, as felicitações e os comentários, só então se quebrando o silêncio em que decorriam as partidas.

– E tu, já sabes jogar? – Perguntou-me, um dia, o senhor Firmino, colega de emprego do meu pai, acrescentando – Filho de peixe sabe nadar.

Eu apenas sorria, vaidoso, encolhendo os ombros e olhando para o pai como que esperando que respondesse por mim.

– Lá irá, lá irá – dizia ele, rematando com uma frase que só mais tarde entendi. – Os chaparros crescem e as azinheiras minguam.

domingo, 13 de setembro de 2009

JORGE SENA - OS FUSILAMENTOS DE GOYA

via DA TAILÂNDIA COM AMOR E HUMOR de Jose Martins em 11/09/09


Sexta-feira, Setembro 11, 2009
CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA
Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja aquele que eu desejo para vós.
Um simples mundo,onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto o que vos interesse para viver.
Tudo é possível,ainda quando lutemos, como devemos lutar,por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,ou mais que qualquer delas uma fiel dedicação à honra de estar vivo.
(...)
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.

É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto não é senão essa alegria que vem de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém está menos vivo ou sofre ou morre para que um só de vós resista um pouco mais à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição, e sobretudo sem desapego ou indiferença,ardentemente espero.
Tanto sangue,tanta dor, tanta angústia, um dia - mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga - não hão-de ser em vão.
Confesso que muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos de opressão e crueldade, hesito por momentos e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão?
Mas, mesmo que o não sejam,quem ressuscita esses milhões, quem restituinão só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes aquele instante que não viveram, aquele objeto que não fruíram, aquele gestode amor, que fariam «amanhã».
E, por isso, o mesmo mundo que criemos nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa que não é nossa, que nos é cedida para a guardarmos respeitosamente em memória do sangue que nos corre nas veias, da nossa carne que foi outra, do amor que outros não amaram porque lho roubaram.
Jorge de Sena Lisboa, 25/6/1959

Fonte: Jornal do Pau

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

DIZENDO E ESCREVENDO

via A BUSCA DA VERDADE de Sol do Deserto em 10/09/09
"Para escrever só existem duas regras: ter algo a dizer e dizê-lo".
Oscar Wilde, escritor irlandês, 1854-1900

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Da «lumpen-aristocracia» à luta pela independência (5/5)

via Caminhos da Memória de Diana Andringa em 07/09/09
(Primeira, segunda, terceira e quarta parte deste texto.) Entre as repercussões dessa conferência numa sala da Câmara dos Comuns, considera Pinto de Andrade o entendimento, pelos militantes do interior, de um encorajamento à passagem à luta armada: «Dois meses depois, a 4 de Fevereiro de 1961, os militantes do interior, encorajados por essa conferência de Imprensa, [...]

Da «lumpen-aristocracia» à luta pela independência (4/5)

via Caminhos da Memória de Diana Andringa em 06/09/09
(Primeira, segunda e terceira parte deste texto.) Pinto de Andrade troca Paris por Conacry, a primeira base africana: «Para nós, Conacry era uma estância provisória. O que queríamos era aproximar-nos do interior. Com a independência do Congo, começámos a criar novas células. Estávamos em atraso em relação à UPA, que era originária da etnia Bakongo, [...]

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Flutuantes como Espuma

via Sopas de Pedra de A. M. Galopim de Carvalho em 06/09/09
SENDO O CRESCIMENTO da litosfera oceânica um facto plenamente comprovado, sabendo-se que os enrugamentos montanhosos não são suficientes para compensar esse alastramento e, uma vez que a Terra não está em expansão, é forçoso que haja, em simultâneo, destruição de litosfera, o que acontece ao longo das chamadas zonas de subducção, por mergulho e reabsorção por fusão no manto. Estas zonas estão associadas quer a arcos insulares, isto é, conjuntos de ilhas vulcânicas que se alongam em arco (Curillas, Aleutas e outras), quer a margens continentais de tipo andino, de que é exemplo a margem frontal à cordilheira dos Andes, no bordo ocidental da América do Sul. Nos arcos insulares, o contacto estabelece-se entre duas placas oceânicas em aproximação e, então, qualquer uma delas pode mergulhar sob a outra. Nas margens de tipo andino, a aproximação põe em confronto uma placa continental e uma oceânica, sendo esta que, por ser mais densa, mergulha, no geral, sob a outra. Parte dos sedimentos acumulados na margem continental, ao longo de dezenas de milhões de anos, acabam por ser enrugados e emergir, participando na formação de montanhas, como é o caso nas várias cadeias recentes (Alpes, Andes, Montanhas Rochosas, entre outras), ainda em construção e, portanto, activas. Quando a subducção engole a totalidade da placa oceânica situada entre dois blocos continentais em aproximação, eles acabam por colidir. Foi o que aconteceu nos Himalaias, há uns 40 milhões de anos, em resultado da colisão da Índia com o Sudoeste da Ásia. Nesta região verifica-se uma excepção à generalizada flutuabilidade da crosta continental. Uma porção considerável do continente indiano deslizou sob o continente eurasiático, sendo a causa da elevação do planalto do Pamir.

Tendo muita dificuldade em mergulhar no manto, os continentes encerram as mais antigas rochas do planeta, algumas com mais de 4000 milhões de anos. São, por assim dizer, entidades permanentes à superfície do planeta, quais jangadas à deriva. Flutuantes como a espuma, as placas litosféricas estão sujeitas a fragmentações, translações e subsequentes rearranjos, sempre à superfície do globo. Claude Allègre chamou-lhes l'écume de la Terre, a espuma da Terra. Mesmo o desgaste que sofrem, por erosão, não os destrói. Com efeito, os sedimentos resultantes da sua erosão acumulam-se nas respectivas margens e são-lhes devolvidos em episódios orogénicos posteriores.

sábado, 5 de setembro de 2009

Da «lumpen-aristocracia» à luta pela independência (3/5)

via Caminhos da Memória de Diana Andringa em 03/09/09
(Primeira e segunda parte deste texto.) Em 1954, Mário Pinto de Andrade parte para Paris: «Sentia-me perseguido, como toda a gente, pela PIDE. E pressenti que, não estando ligado propriamente às actividades políticas portuguesas, seria para mim um corte na minha própria formação continuar em Lisboa. Depois, já tinha ligações com o Alioune Diop, com a Présence [...]

Da «lumpen-aristocracia» à luta pela independência (2/5)

via Caminhos da Memória de Diana Andringa em 02/09/09
(A primeira parte deste texto pode ser lida aqui.) Na viagem para Lisboa, Mário tem a companhia do irmão Joaquim e do futuro cardeal Alexandre Nascimento. A saída das Ingobotas – «mais precisamente do Quilómetro 5» – para um jovem que apenas fizera algumas curtas viagens em Angola, foi «uma separação penosa, difícil, um primeiro desenraizamento»: [...]

Da «lumpen-aristocracia» à luta pela independência (1/5)


via Caminhos da Memória de Diana Andringa em 01/09/09
Nasceu e morreu no mês de Agosto. Teria completado 81 anos no passado dia 21, se a morte não o tivesse apanhado em Londres poucos dias depois de fazer 62 anos – a 28 de Agosto de 1990. Pouco tempo depois, também, de ter tido oportunidade de conhecê-lo. A partir dos anos 60 e durante muito [...]

O realismo segundo Woody Allen

via Entre as brumas da memória de Joana Lopes em 05/09/09
«A vida é muito dura, muito agreste, brutal, curta de mais, feia e má, e, no fim, não há esperança que nos salve. A isto eu chamo realismo. (…) Sinto mesmo que a nossa maior obrigação na vida é aceitar o facto de que a vida não quer dizer nada, é vazia, que somos o resultado de um acaso tendo por fundo um universo que também não tem significado nenhum. Universo esse que, claro, também vai acabar

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Vista Cansada

via Sopas de Pedra de A. M. Galopim de Carvalho em 31/08/09
.
HIPERMETROPIA, como se diz no jargão médico, tão ao gosto dos profissionais, sempre foi para a grande maioria do povo "vista cansada". É aquela perda progressiva de visão ao perto que a grande maioria começa a dar-se conta por volta dos 40 a 50 anos de idade. É o franzir dos olhos ou o afastar das páginas do jornal quando se desejam ler as letras mais miudinhas, é o enfiar, a tacto, a linha no orifício da agulha. Com o uso e o passar dos anos, a vista cansou-se. Felizmente que há lentes que fazem aquilo que os nossos olhos já não conseguem fazer e que é focar a imagem na retina.

Nos anos da minha meninice e adolescência, a par dos dois oftalmologistas da cidade de Évora, com consultório aberto a uma clientela mais endinheirada, ainda persistiam os oculistas ambulantes que percorriam o país, de feira em feira. Um destes feirantes, que conheci, vinha todos os anos pela Feira de São João. Montava um pequeno toldo, sob o qual estendia uma banca onde dispunha o material que trazia: dezenas e dezenas de pares de óculos, de muitos tamanhos e feitios, todos eles completos, isto é, com as lentes já montadas. Não se fazia ali qualquer avaliação prévia da deficiência ocular dos interessados. Cada um colocava nos olhos um par, ao acaso, e num pedaço de jornal e experimentava a eventual melhoria que o mesmo lhe proporcionava. Ia escolhendo e pondo de lado e, ao fim de muitas tentativas, das duas uma: ou, por sorte, encontrava uns óculos que lhe melhorassem a visão, ou acabava por desistir porque nenhum dos ali à sua disposição lhe resolvera o seu problema.

O senhor Alberto oculista, assim era conhecido, configurava um homem de uma certa idade, de pequena estatura, algo franzino, míope, de cabelo grisalho, ralo e liso. A bata, um tanto roçada pelo uso e que já não era bem branca, dava-lhe, apesar disso, o ar de eficiência e respeito profissional pretendido. De espanador na mão, ia removendo o pó, sempre muito, constantemente depositado sobre o delicado artigo exposto, e afugentando as moscas, também muitas, que lhe invadiam o espaço, fugidas do brasido naquelas tardes de finais de Junho no grande espaço térreo que ainda hoje é o Rossio de São Brás.

Era, sobretudo, gente do campo, com poucas posses, que fazia o grosso da sua clientela e, nesta, predominavam as mulheres. Dos homens só alguns sabiam ler, pelo que eram sempre poucos os que sentiam a necessidade de ir ao oculista. Viam ainda muito bem o chão onde enterravam a enxada ou o macho que lhes puxava o arado. Mas para as mulheres ver ao pé era crucial, apenas "por mor" da costura.

- Enfiar as linhas na agulha, é que me custa. É a minha neta que mas enfia. – Lamentava-se uma quintaneira, uma das muitas habitantes das redondezas que todos os anos só nesta ocasião vinham à Feira em busca do que ali podiam comprar e também para encherem a alma de multidão, luzes, cores, sons e festa, depois de meses e meses de isolamento, silêncio, solidão e luz de petróleo ou candeias.

- Passajar, vá que não vá, é a tacto. Pregar um botão é a mesma arrelia. Falta-me a vista. – Dizia ela para o senhor Alberto, que a ouvia ao mesmo tempo que procurava o par que melhor servisse esta sua possível cliente. Depois de várias tentativas e escolhido um que lhe pareceu adequado, deu-lhe uma limpeza com a flanela, que trazia no bolso superior da bata, e ajeitou-o na cara da mulher.

- Experimente lá estes, tiazinha - disse o oculista, ao mesmo tempo que lhe passava para a mão meia folha do "Notícias d' Évora". – Veja lá se consegue ler aí nas letras mais pequeninas?

- Leve lá daqui o jornal, criatura de Deus, "quê cá nã sê ler"! Eu trouxe aqui com que tirar a prova. – Disse a mulher, com ar de quem brinca com a sua própria mágoa, enquanto buscava na mala o trapinho onde espetara uma agulha e enrolara um pedaço de linha.

- Estes são uma maravilha! – Exclamou entusiasmada a quintaneira depois de, logo à primeira tentativa, ter enfiado a linha no buraquinho da agulha. Até vejo os fiozinhos mais fininhos. Louvado seja Deus!