sexta-feira, 30 de abril de 2010

O 25 DE ABRIL NO TEMPO DA HISTÓRIA

O 25 DE ABRIL NO TEMPO DA HISTÓRIA

via F. VIEIRA DE SÁ by LG on 4/24/10
«O tempo da história é lento, mas a verdade chega sempre. Essa é a utopia. A revolução não é um anátema. O parto é revolução e, na Natureza, não se faz sem dor.
Todo o envolvimento que rodeou o 25 de Abril faz-me recordar um pouco a revolução de 1383-85, salvaguardando o longo lapso de tempo que separa ambas as revoluções: causas profundas que as definiram; estruturas sociais existentes à época; modus faciendi da traição que teve lugar em ambas; efeitos da contra-revolução.»

Ler mais em F. Vieira de Sá, Viagem ao Correr da Pena, pp. 24-25

NAQUELES IDOS DE NOVA LISBOA DA DÉCADA DE 40

NAQUELES IDOS DE NOVA LISBOA DA DÉCADA DE 40

via MUKANDAS do Monte Estoril by Irdea on 4/29/10

Campo de futebol do Sporting Clube do Huambo actualmente

OS BAILES DE FIM DE ANO

NO SPORTING CLUBE DO HUAMBO(*)

Numa cidade onde as sessões de cinema no Ruacaná, os piqueniques na barragem do Cuando e os desafios de futebol constituíam os únicos entretenimentos públicos, a comemoração da passagem do ano era ansio-samente esperada. O Sporting, o Ferrovia e o Atlético competiam entre si na realização do baile mais animado. Ainda Dezembro ia em meio, já cada uma das agremiações anunciava no Rádio Clube do Huambo e na Voz do Planalto o acontecimento, aceitando inscrições para o efeito.

Talvez por simpatia clubista, ou por hábito adquirido, ou porque achava mesmo que não podia escolher melhor, Jota-Jota participava sempre nos reveillons do Sporting. Tinha razões para isso: a música não era aí, como se dizia, «de pick-up», mas executada por uma orquestra ao vivo, encarrapitada num estrado erguido à pressa e que tocava até de madrugada. Os passo-dobles, os tangos, as rumbas, as valsas não pro-vinham mais de discos estafados e defeituosos, mas do piano, do saxofone, do trompete, do acordeão, que atroavam o ar com as notas de cada peça. Havia lá comparações!...

As famílias tomavam a seu cargo a confecção dos comes-e-bebes para a ceia. Com o empenho que não regateavam nunca, preparavam com antecedência as toalhas, os guardanapos, os talheres, uma ou duas jarras para encher de flores e decorar as mesas.

Não querendo fazer má figura junto de amigos e conhecidos, Dona Maria Albertina esmerava-se nessa tarefa. Particularmente empenhada, lançava-se ao trabalho de véspera, logo na manhã do dia 30, quando punha o avental na cintura e se enfiava na cozinha.

O cozinheiro Gunga franzia a testa e não gostava nada de ter a patroa tão perto de si durante aquelas horas. Numa roda viva, andava de um lado para o outro, sem conseguir dar conta de tantas ordens e repri-mendas («Aca!, muita chatice e compricação!...»).

— Põe mais lenha no fogão! De que estás à espera? Anda lá, não durmas!

Gunga obedecia sem um protesto. Punha a lenha no fogão, mas logo a seguir, à voz da «sinhora», descascava e cortava a cebola para os refogados, batia os ovos e a farinha para as massas, misturava com as mãos enormes o azeite, o sal, o alho e a pimenta para o tempero das carnes, espevitava o lume com o aba­no de palha entrançada.

De faces rosadas pelo calor que andava no ar, Dona Maria Albertina seguia escrupulosamente a lista que elaborara uns dias antes: peru e leitão assados, pastéis de bacalhau e empadas de galinha, duas ou três sobremesas, pratinhos de leite-creme e arroz doce. Para beber à meia-noite, pedira ao marido para comprar numa mercearia da Baixa duas garrafas de espumoso («Da 'Raposeira', só da 'Raposeira', o mais caro, mas o melhor!»), porque a data era importante e devia ser dignamente festejada.

Ana Isabel resolveu nesse ano ajudar a mãe. Cada vez mais apaixonada por Sebastião, já com o casamento marcado para breve, estava particu-larmente empenhada em que tudo corresse bem.

***

As mesas eram postas durante a tarde. Com mais ou menos gosto, as senhoras distribuíam sobre as toalhas bordadas o que tinham trazido de casa: as travessas dos salgados, os pratos das sobremesas, as tacinhas dos frutos secos vindos de Portugal (os pinhões, as avelãs, as ameixas, os figos e as nozes). O cheiro compósito de tanta iguaria reunida começava de imediato a tomar conta do ar.

O baile não principiava antes das dez horas, quando a orquestra subia para o estrado. Avisando que a música vinha aí, o baterista batia repeti-damente com as baquetas nos tambores, zurzia três ou quatro vezes os pratos, deixando depois que os companheiros arrancassem em conjunto a composição de abertura. Poucos pares resistiam a esse apelo: de mãos dadas, iam até à pista de dança; com mais ou menos jeito, rodopiavam então conforme o ritmo.

Jota-Jota não disfarçava o seu contentamento. Numa ocorrência tão especial, tinha ali consigo todos aqueles que amava, e agora também Sebastião, seu genro daí a meses, que lhe dava continuamente provas de ser o marido apropriado para a filha. Que precisava mais ou poderia desejar para se sentir completamente feliz?

Dona Maria Albertina é que não se conformara ainda com aquele casamento. Insistia: como é que uma rapariga tão prendada, bela e inte-ligente se deixava arrastar assim pela paixão? Que teimosia!...

Tão feliz como o pai, Ana Isabel estava linda nessa noite. Não era só o vestido verde de seda que brilhava colado ao corpo, mas também o cabelo louro, os olhos azuis, os dentes cor de pérola, a pele coberta de sardas, toda ela radiante da cabeça aos pés.

Disposta a não ficar sentada na cadeira um minuto sequer, fitou Se-bastião com ternura:

— Vamos?...

Levantou-se, estendeu o braço e insistiu:

— Vamos?...

Queria dançar, dançar, não importava o quê: ser levada nos braços fortes do seu par, que a apertava contra o peito e lhe segredava galanteios ao ouvido.

Acompanhado pelo acordeão e o violino, o solista da orquestra cantava então um tango de Carlos Gardel. De mãos metidas nos bolsos das calças, esgalgava a cabeça de fuinha para o microfone, fechava os olhos romanticamente, estropiando a letra num espanhol carregado de sotaque:

«Su boca que besa

Borra la tristeza

Calma la amargura...»

Como dissera já a propósito dos passo-dobles, das rumbas e das valsas; como dissera antes a propósito de tudo o que dançara, Ana Isabel obser-vou:

— Adoro um tango!

Parecendo ter escutado o comentário, o solista esmerou-se na voz:

«Su boca que besa

Borra la tristeza

Calma la amargura...»

Ana Isabel repetiu:

— Adoro!, adoro!, adoro!

Perguntou:

— E tu?

Sebastião baixou a cabeça e respondeu que sim; em tom meloso, acres-centou:

— Adoro sempre aquilo que danço contigo!

Como um eco do que ouvira, imitou:

— Adoro!, adoro!, adoro!

Pouco antes da meia-noite, a orquestra parou de tocar. O Presidente do Clube subiu ao estrado e lembrou que 1946 se aproximava. À maneira de um discurso («Minhas senhoras e meus senhores!»), desejou a todos os presentes um Ano Novo cheio de paz e prosperidades.

Olhou fixamente para o relógio de pulso:

— Atenção!, atenção!

Principiou a contagem regressiva:

— Cinco, quatro, três, dois, um!

Estouraram nas mesas as garrafas de champanhe, atravessaram o salão gritos e assobios, acenderam-se e apagaram-se no tecto as lâmpadas da iluminação, e a orquestra, toda de pé, atacou uma marcha militar.

Andando de um lado para o outro, de taças cheias nas mãos, as famí-lias cumprimentavam-se efusivamente. Não escondiam a sua alegria e trocavam entre si as saudações da praxe. Aos beijos e abraços, ninguém conseguia resistir àquela euforia contagiante.

Em bicos de pés, já sem qualquer relutância, Dona Maria Albertina beijou pela primeira vez o futuro genro:

— Felicidades! Muitas felicidades!

Ele comoveu-se e agradeceu:

— Obrigado! Obrigado!

__________

(*)Inácio Rebelo de Andrade

in Na Babugem do Êxodo (romance), Nova Vega, Lisboa, 2005 (Colecção «Palavra Africana) (versão revista pelo autor).

liquidação nacional

liquidação nacional

via portugal contemporâneo by noreply@blogger.com (Pedro Arroja) on 4/21/10
"O movimento de integração europeia que muitos na Europa defendem e, fora dela, outros parecem acalentar, ainda se envolve de alguma obscuridade. Esse vago pensamento começa a revestir, aqui e além, formas jurídicas conhecidas, como a de federação ou confederação.
Não consegui ainda descortinar os motivos que impelem alguns a aceitar, senão a bendizer, esta sorte de liquidação nacional."
(Salazar, 19 de Janeiro de 1956, in António Trabulo (ed.), O Diário de Salazar, Lisboa: Parceria A.M. Pereira, 9ª Edição, pp. 193-94)

quarta-feira, 28 de abril de 2010

A imortalidade está a duas décadas de distância?

via Um Homem das Cidades by Diogo on 4/27/10
Livro publicado por Raymond Kurzweil em 2005

THE SINGULARITY IS NEAR
When Humans Transcend Biology


A SINGULARIDADE ESTÁ PRÓXIMA
Quando os humanos transcendem a Biologia

Raymond Kurzweil

Ray Kurzweil é autor de "The age of intelligent machines", que ganhou o Association of American Publishers' Award de melhor livro de informática de 1990. Ganhou o Dickson Prize, o principal prêmio científico da universidade Carnegie Mellon, em 1994. O Massachusetts Institute of Technology elegeu-o inventor do ano em 1988. Em 2004, em co-autoria com o médico Terry Grossman, lançou o livro "A medicina da imortalidade" — um abrangente programa de longevidade que inclui orientação nutricional, avanços da medicina e tecnologia de ponta, que em pouco tempo se tornou sucesso de vendas. O seu site www.kurzweilai.net é uma referência em nanotecnologia, contendo informações atualizadas semanalmente sobre as mais recentes e avançadas pesquisas na área.

*************************
Excerto de uma entrevista com Raymond Kurzweil sobre a miscigenação entre o homem e a máquina. [Tradução minha]

Entrevistador: Qual será o impacto destes desenvolvimentos?

Ray Kurzweil: Um aumento radical da esperança de vida, para começar.

Entrevistador: Parece interessante, e como será isso possível?

Ray Kurzweil: No meu livro, refiro três grandes revoluções sobrepostas a que dei o nome de "GNR", que significa Genética, Nanotecnologia e Robótica. Cada uma delas propicia um aumento dramático da longevidade humana, entre outros impactos significativos. Nós estamos neste momento na primeira fase da revolução genética – também chamada biotecnologia. A biotecnologia oferece os meios para alterar os genes: não apenas bebés programados mas natalidades programadas. Seremos igualmente capazes de rejuvenescer todos os tecidos e órgãos do nosso corpo transformando as células da pele em versões jovens de qualquer outro tipo de célula. Neste momento, novos desenvolvimentos fármacos têm como objectivo o combate de etapas importantes da arteriosclerose (a causa das doenças de coração), a formação de tumores cancerígenos, e os processos metabólicos que estão na base das doenças mais importantes e do processo de envelhecimento. A revolução biotecnológica já está na sua fase inicial e atingirá o seu pico na segunda década deste século (2010-2020), um ponto a partir do qual seremos capazes de ultrapassar a maior parte das doenças e retardar dramaticamente o processo de envelhecimento.

Seguir-se-á a revolução da nanotecnologia, que atingirá a sua maturidade durante os anos vinte (2020s). Com a nanotecnologia, seremos capazes de ir além dos limites da biologia, e substituir o nosso actual "corpo humano versão 1.0" com um substancial aperfeiçoamento versão 2.0 fornecendo um aumento radical dos anos de vida.


Entrevistador: E como poderá ser isso possível?

Ray Kurzweil: O segredo da nanotecnologia são os "nanobots", que são robots do tamanho de células sanguíneas que podem viajar pela corrente sanguínea destruindo os elementos patogénicos (causadores de doenças), removendo detritos, corrigindo os erros do DNA, e revertendo o processo de envelhecimento.


Entrevistador: Corpo humano versão 2.0?

Ray Kurzweil: Encontramo-nos já nas fases iniciais de multiplicar e substituir cada um dos nossos órgãos, e mesmo porções do nosso cérebro com implantes neuronais, os mais recentes dos quais permitem aos doentes fazer o download de novo software exterior aos seus corpos para os seus implantes neuronais. No meu livro descrevo a forma pela qual cada um dos nossos órgãos será em última análise substituído. Por exemplo, nanobots podem colocar na nossa corrente sanguínea um conjunto óptimo de todos os nutrientes, hormonas, e outras substâncias de que temos necessidade, assim como remover toxinas e dejectos. O tracto intestinal poderá ficar reservado para os prazeres da culinária em vez da monótona função biológica de fornecer nutrientes. No fim de contas, de certo modo já separámos a comunicação e os prazeres do sexo da sua função biológica.


Entrevistador: E a terceira revolução?

Ray Kurzweil: A revolução robótica, que na realidade se refere à "poderosa" Inteligência Artificial, ou seja, a inteligência artificial ao nível humano, de que falámos anteriormente. Teremos tanto o hardware como o software para recrear a inteligência humana lá pelo fim dos anos vinte (2020s). Seremos capazes de aperfeiçoar estes métodos e aproveitar a velocidade, a capacidade de memória e a aptidão de partilha de conhecimento destas máquinas.

Por fim, seremos capazes de examinar todos os detalhes importantes dos nossos cérebros, usando milhares de milhões de nanobots nos capilares. Poderemos então guardar essa informação. Utilizando a nanotecnologia, podemos recrear o nosso cérebro, melhor ainda, criar fisicamente uma representação dele num substrato computacional mais capaz.



Entrevistador: Isso significa o quê?

Ray Kurzweil: Os nossos cérebros biológicos utilizam sinais químicos que transmitem informação a poucas centenas de metros por segundo. A electrónica é já milhões de vezes mais rápida do que isto. No meu livro, demonstrei como em 25 cm cúbicos de um circuito de nanotubos seria cem milhões de vezes mais poderoso que um cérebro humano. Portanto temos meios mais poderosos para criar fisicamente representações da nossa inteligência do que as velocidades extremamente lentas das nossas conexões interneunorais.


Entrevistador: Portanto, vamos substituir os nossos cérebros biológicos por circuitos electrónicos.

Ray Kurzweil: Eu vislumbro este começo com nanobots nos nossos corpos e nos nossos cérebros. Os nanobots mantêm-nos saudáveis, proporcionam imersão total na realidade virtual desde o interior do nosso sistema nervoso, oferecem comunicação directa cérebro a cérebro pela Internet, e expandem enormemente a inteligência humana. Mas não se esqueçam que a inteligência não biológica está a duplicar a sua capacidade todos os anos, enquanto a nossa inteligência biológica tem a sua capacidade praticamente fixa. À medida que nos aproximamos dos anos trinta (2030s), a parte não biológica da nossa inteligência predominará.


Entrevistador: A tecnologia mais próxima de maior longevidade, contudo, é biotecnológica, não é verdade?

Ray Kurzweil: Haverá uma sobreposição das revoluções G, N e R (Genética, Nanotecnologia e Robótica), mas basicamente é isso.


Entrevistador: Então diga-me mais sobre a forma como a genética e a biotecnologia vão evoluir.

Ray Kurzweil: À medida que vamos aprendendo sobre os processos de informação que estão por trás da biologia, estamos a desenvolver formas de os controlar para controlar as doenças, o envelhecimento e aumentar o potencial humano. Uma abordagem poderosa é começar pela infra-estrutura da informação biológica: o genoma. Com a tecnologia dos genes, estamos à beira de ser capazes de controlar a forma como os genes funcionam. Possuímos agora uma nova e poderosa ferramenta chamada interferência RNA (RNAi), que é capaz de desligar certos genes. Bloqueia o mensageiro RNA de genes específicos, evitando que criem certas proteínas. Como as doenças virais, o cancro, e muitas outras doenças usam produtos do gene (proteínas ou RNA) em alturas críticas do seu ciclo de vida, isto promete ser uma tecnologia revolucionária. Um gene que gostaríamos de desligar é o gene receptor de insulina de gordura, que dá ordens às células gordas para guardarem todas as calorias. Quando esse gene é bloqueado nos ratos, esses ratos comem muito mas mantêm-se magros e saudáveis, e, em regra, vivem 20% mais tempo. Novos métodos de acrescentar novos genes, chamada terapia genética, estão também a surgir que ultrapassaram problemas anteriores de colocação precisa de nova informação genética. Uma companhia com a qual estou envolvido, a United Therapeutics, tratou com sucesso a hipertensão pulmonar em animais usando uma nova forma de terapia dos genes e foi agora aprovada para testes em humanos.


Entrevistador: Portanto, vamos basicamente reprogramar o nosso DNA.

Ray Kurzweil: É uma boa forma de o dizer, mas é apenas uma abordagem alargada. Outra importante linha de acção é desenvolver novamente as nossas próprias células, tecidos, e até órgãos inteiros, e introduzi-los nos nossos corpos sem cirurgia. Um dos maiores benefícios desta técnica de "clonagem terapêutica" é que seremos capazes de criar estes novos tecidos e órgãos de versões das nossas células que também já foram tornadas mais jovens – o campo emergente da medicina do rejuvenescimento. Por exemplo, poderemos ser capazes de criar novas células do coração a partir de células da sua pele e introduzi-las no seu sistema através da corrente sanguínea. Com o passar do tempo, as suas células do coração são substituídas pelas novas células, e o resultado é um "jovem" coração rejuvenescido com o seu próprio DNA.

A descoberta de drogas já foi uma questão de encontrar substâncias que produziam alguns efeitos benéficos sem efeitos colaterais excessivos. Este processo era semelhante à descoberta das ferramentas pelos primeiros seres humanos, que estava limitado a encontrar rochas e utensílios que pudessem ser úteis para vários fins. Hoje, estamos a aprender as séries exactas de reacções químicas que estão na base tanto das doenças como dos processos de envelhecimento, e seremos capazes de fabricar drogas para levar a cabo missões precisas a nível molecular. O raio de acção e a escala deste trabalho é vasto. Mas aperfeiçoar a nossa biologia só nos trará até aqui. A realidade é que a biologia nunca será capaz de estar ao nível do que seremos capazes de projectar, agora que estamos a ganhar uma compreensão profunda dos princípios da operação da biologia.


Entrevistador: Não é a natureza mais eficiente?

Ray Kurzweil: De forma nenhuma. As nossa conexões interneuronais calcula cerca de 200 transacções por segundo, cerca de um milhão de vezes mais devagar que a electrónica. Tomando outro exemplo, o teórico da nanotecnologia, Rob Freitas, tem um projecto conceptual para nanobots que substituem as células vermelhas do nosso sangue. Uma análise conservadora mostra que se substituirmos 10 por cento das células vermelhas do nosso sangue com os "respirocytes" de Freitas, podemo-nos sentar no fundo da piscina durante quatro horas sem respirar.


Entrevistador: Se as pessoas deixarem de morrer, isso não conduzirá a uma sobrepopulação?

Ray Kurzweil: Um erro comum que as pessoas cometem quando pensam no futuro é antever uma enorme mudança do mundo de hoje, tal como um prolongamento radical do tempo de vida, como se tudo o resto não fosse mudar. As revoluções da "GNR" - Genética, Nanotecnologia e Robótica – resultarão noutras transformações que abordam essa questão. Por exemplo, a nanotecnologia permitir-nos-á criar virtualmente e qualquer produto físico a partir da informação e de matérias-primas muito baratas, conduzindo a uma radical criação de riqueza. Teremos os meios para encontrar os materiais necessários para qualquer número concebível de seres humanos. A nanotecnologia também fornecerá os meios tratar de destruições ambientais causadas por estágios anteriores de industrialização.

*************************
Vídeo gravado de Raymond Kurzweil em 2005

(É possível escolher as legendas em português brasileiro em "View Subtitles")

Lembrando-se dos 500 anos da conquista de Goa

via Folhas de História by História - Mestra da Vida on 4/28/10
Entrevista com Deccan Herald (Bangalore, India) http://www.deccanherald.com/content/66330/xavier-aware-brutality-inquisition.html

terça-feira, 27 de abril de 2010

António Quadros, O Escritor e a sociedade

António Quadros, O Escritor e a sociedade

via António Quadros by aquadrosferro@gmail.com (António Quadros Ferro) on 4/24/10
"Fora da solidão da criação o escritor não existe como escritor, é um homem social. (...) mas é quando ele está só que estabelece a maior comunicação com o maior número de pessoas. Porque a solidão criativa é de certo modo um diálogo com os outros, enquanto, por outro lado, pode parecer paradoxal (...) a vida pública do escritor é quando há menos diálogo com os outros (…) é um acidente, é qualquer coisa artificial e um pouco superficial. Não é aí que ele se realiza. É quando está só que o escritor comunica com os outros e digamos mais do que isso, comunica com o Universo." António Quadros (O Escritor e a sociedade, RTP, 1983)

António Quadros sobre Fernando Pessoa

António Quadros sobre Fernando Pessoa

via António Quadros by aquadrosferro@gmail.com (António Quadros Ferro) on 4/22/10
"[...] Os citados críticos franceses, [Patrice Delbourg, Jean-Pierre Thibaudat, etc.] deslumbrados pelos sinais mais exteriores e espectaculares da personalidade literária de Fernando Pessoa, insistiram sobretudo nos aspecto inovadores e modernistas da sua obra, na questão intrigante dos heterónimos ou na inteligência prodigiosa de todos os seus escritos. Se ficássemos por aqui, no entanto, pouco avançaríamos no conhecimento da poética pessoana. É que se Pessoa foi um inovador, foi também um expressor de princípios e arquétipos que transcendem as categorias do tempo; se foi um moderno e um modernista, foi também um incansável pesquisador e assuntor do tradicional, do secreto, do mítico, do enigmático, do que se perdeu ou esqueceu e contudo está vivo, porque é talvez perene na cultura portuguesa e universal mais profunda; se, com a invenção dos heterónimos, exprimiu como ninguém a cisão psicológica e espiritual da alma humana, através do drama da sua própria alma, conflitualmente dividida em estratos sobrepostos, ao mesmo tempo nunca deixou de perseguir o nódulo interior ou o princípio de unidade, orientador da reconvergência possível, como telos ou fim último da gesta humana neste mundo de geração e de corrupção; e se a sua fulgurante inteligência analítica dá por vezes impressão de sofística ou dialéctica (tal a facilidade com que manipula os conceitos mais difíceis) há sempre nela, ao mesmo tempo, uma sinceridade, uma autenticidade, um pathos de sofrimento, de angústia e também de incansável determinação próxima da santidade intelectual, que dá grandeza heróica à sua obra, vista no seu conjunto como uma peregrinação sofrida e mantida para o absoluto ou mesmo para o divino, no paradigma fáustico, mas ultrapassando-o em momentos excepcionais de conhecimento merecido e alcançado. [...]"
António Quadros
Obra Poética de Fernando Pessoa, Poesia - I, (1902-1929),
int. e org. de António Quadros, Publicações Europa-América

A Guidinha também escreveu sobre o 25 de Abril

via A Matéria do Tempo by Fernando Ribeiro on 4/25/10

O CHEFE DO MEU PAI ERA UM DEMOCRATA E NINGUÉM SABIA...

Ora cá estou eu outra vez a contar as coisas que se passam lá em minha casa e no bairro da Graça em que vivo sim porque eu vivo no bairro da Graça e tenho muita honra nisso porque não há nada para uma mulher como ser Graciosa pois como toda a gente sabe houve um 25 de Abril e cá em casa esse 25 de Abril foi bestial para começar o meu pai só soube que era 25 de Abril mais tarde lá por volta das onze que é quando ele lá no trabalho acaba de ler o jornal e liga o rádio de maneira que já uma data de pessoas sabia que era vinte e cinco de Abril e ainda lá no trabalho estava a ler no Diário de Notícias que o presidente Américo Tomaz tinha ido visitar um salão de antiguidades cá por mim o que me espanta é que o tivessem levado para um regimento porque o podiam ter deixado no tal salão de antiguidades para ele não estranhar o ambiente mas adiante que o que interessa é o que aconteceu ao meu pai pois como eu ia dizendo tinha ele acabado de ler essa interessante notícia das antiguidades se andarem a visitar umas às outras e uma outra do deputado Ferreira da Silva do Porto coitadinho ter pedido acções de repressão contra a situação anárquica que visava gerar o descontentamento e mais não sei o quê e vai ouviu na rádio que era vinte e cinco de Abril e ficou a suar a suar a suar diz ele que ficou a suar tanto que se lhe colou o dito à cadeira sem saber o que havia de fazer mas lá conseguiu descolá-lo e foi até ao gabinete do chefe que estava naquele momento a redigir uma ordem a dizer que lixava quem faltasse no dia 1 de Maio e disse-lhe que a rádio estava a dizer que havia um movimento das Forças Armadas para derrubar o regime o homem ficou branco e disse que era mentira e que se o meu pai continuasse a espalhar boatos que lhe fazia um processo disciplinar e mais não sei o quê e que era proibido ouvir rádio durante as horas de trabalho e vai o meu pai voltou para a secretária mas ainda ouviu o chefe ligar um transistor que ele esconde numa gaveta quando alguém lhe entra no gabinete e daí a dois minutos o chefe chegou-se ao pé dele e pediu-lhe para ir à rua ver se ouvia qualquer coisa e o meu pai foi e ouviu olá se ouviu e viu olá se viu diz ele que viu uma data de carros de assalto ao Largo do Carmo e que voltou a correr e disse ao chefe o que tinha visto o chefe ainda ficou mais branco e mandou-o para o escritório porque queria fazer umas chamadas confidenciais e vai daí a bocado entrou todo pimpão no escritório e disse que tinha tido conhecimento de ter havido um movimento de revolucionários ingénuos mas que já estavam todos na cadeia e que se o meu pai voltasse a sair outra vez durante as horas de expediente para ir ouvir boatos no Largo do Carmo que tinha de informar a DGS e o meu pai ficou com o dito outra vez colado à cadeira mas foi colagem de pouca dura porque daí a bocado o chefe entrou outra vez branco como a cal da parede e disse ao meu pai para ir outra vez à rua ouvir o que se passava e o meu pai foi olá se foi e viu tanta coisa que esteve para não voltar ao escritório mas como é pai de família etc. etc. voltou e disse o que tinha visto e vai o chefe entrou no escritório e disse que sempre tinha respeitado as ideias políticas de cada um e que deixava sair quem quisesse mas quando toda a gente se ia raspar alguns até já iam na escada entrou um senhor qualquer falou com o chefe um minuto e ele outra vez branco como a cal da parede chegou ao patamar da escada e desatou a berrar que ninguém saía que dava à D. G. S. os nomes de quem saísse que não queria simpatizantes com revolucionários que ia instaurar processos disciplinares a toda a gente e que o meu pai por ter saído duas vezes do escritório ia parar a Caxias tão certo dois e dois serem quatro e estava quase a fuzilar o meu pai e os colegas quando entrou uma data de gente a berrar e a dizer que os que estavam no Carmo se tinham rendido e que o general Spínola tinha ganho e o chefe começou a dar vivas ao general Spínola à democracia ao povo à Pátria só não deu à leitaria da esquina porque não se lembrou sim porque até ao 25 de Abril o miúdo da leitaria estava proibido de entrar lá por o dono da leitaria ter dito uma vez que as guerras de África eram uma infâmia de maneira que se o chefe naquele momento se tivesse lembrado também tinha dado um vivazito ao dono da leitaria vai depois todos se foram embora e quando voltaram no dia seguinte o chefe deu um grande abraço ao meu pai e explicou a todos que se na véspera tinha dito que não admitia na repartição simpatizantes com revolucionários era só porque se a revolução falhasse queria ser ele sozinho a assumir as responsabilidades porque ele era um democrata desde sempre enfim o que eu queria saber era como ele conseguiu manter o segredo tanto tempo e ainda há quem diga que os portugueses não sabem guardar segredos.

Guidinha (Luís de Sttau Monteiro), in A MOSCA, 11 de Maio de 1974

domingo, 25 de abril de 2010

Entrevista a O Diabo [02-03-2010]

Entrevista a O Diabo [02-03-2010]

via Império, Nação, Revolução by Riccardo Marchi on 3/27/10
Houve quem achasse excessivamente dura a recensão crítica publicada por 'O Diabo' ao seu livro "Império Nação Revolução", recentemente apresentado ao público…

Antes de mais, agradeço a atenção que 'O Diabo' prestou à obra, mas gostava de sublinhar, ao lado de algumas verdades, falsidades desnecessárias. É, sem dúvida, verdadeira a existência de erros linguísticos no texto, cuja responsabilidade é só e exclusivamente minha e das minhas lacunas na língua portuguesa, a começar pelo "inaceitável serrar fileiras", que nem sequer foi um lapso freudiano. Também é verdadeira a presença de "erros factuais": são os perigos do ofício de historiador, por muito rigor que se use. Os amigos que me ajudaram com os seus testemunhos já me alertaram para isso, mas também referiram a irrelevância dos erros na economia da obra. Não me resta mais que considerá-los uma boa oportunidade para futuros trabalhos "revisionistas"… sempre bem aceites quando rigorosos.

E quanto às críticas mais opinativas?

O meu crítico lamenta a falta de "uma boa introdução sobre o pensamento nacionalista português do século XX". Esta foi uma escolha metodológica minha. Optei por me concentrar exclusivamente no nacionalismo radical do pós-guerra. O tema, de facto, só por si, oferece pano para mangas para uma investigação que ao ser definida como "superficial" parece-me, no mínimo, pouco generoso, visto o estado da arte em que se encontravam tais estudos. Opinável é também definir o trabalho como "uma monumental maçada cronológica". Cada leitor, como é óbvio, tem a sua sensibilidade. Certo é que um trabalho de história sobre um período ainda inexplorado não pode eximir-se de uma minuciosa contextualização e colocação temporal dos eventos. Quanto ao facto de o livro resultar "sem alma e sem chama", posso apenas dizer que eu não sou um romancista, nem um poeta, nem um apologista e que não vivi, nem sequer de longe, os factos narrados, para poder sentir as suas almas e chamas. Para isso servem as obras de memórias, que, pelos vistos, os detentores de almas e chamas deste "tema empolgante" nunca se preocuparam em legar às gerações vindouras. A mim, coube-me apenas relatar as ocorrências, da maneira mais científica possível.

Mas é na parte factual que parecem surgir mais dúvidas…

Sim. O crítico afirma ter eu "enveredado por um estudo cómodo", com base apenas no material impresso (publicações dos movimentos). É falso. A análise necessária e exaustiva das publicações dos movimentos da direita revolucionária é apenas uma das fontes utilizadas. A reconstrução historiográfica baseia-se, principalmente, nas várias entrevistas realizadas com 25 destacados militantes e dirigentes da direita revolucionária da altura; nos 8 arquivos particulares pertencentes a líderes dos movimentos; nas centenas de pastas (com alguns milhares de documentos) guardadas nos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (Salazar, PIDE, Censura, Marcello Caetano, Legião Portuguesa, Ministério da Administração Interna). Tudo rigorosamente registado em notas de rodapé.

A crítica questionava também a opção de fundo de ter iniciado o estudo em 1959...

Esse "mistério" poderia ter sido resolvido com uma sua investigação, esta sim bastante "cómoda", na internet ou, ainda mais "cómoda", na bibliografia do livro (página 414). Teria descoberto que, ao mesmo tempo que "Império, Nação, Revolução", publiquei o livro "Folhas Ultras" (Edição do Instituto de Ciências Sociais) que cobre o período 1939-1950, dedicado a Alfredo Pimenta, ao grupo de 'A Nação' e também ao grupo da 'Mensagem' (Caetano Beirão, Amândio César, António José de Brito). Quanto às "frequentes remissões para trabalhos de autores esquerdistas", deixe-me dizer, em primeiro lugar, que o "rotulismo" é-me indigesto tanto quando provém de certa cultura antifascista, como de qualquer outra cultura política. Dito isto, as "frequentes remissões" denunciadas, reduzem-se a… duas, em 400 páginas, nomeadamente nas notas de rodapé n.º 1 da página 14 e n.º 2 da página 387. Demasiada esquerda num livro sobre as direitas?

O seu trabalho de investigação sobre os movimentos de Direita em Portugal é, de alguma forma, pioneiro. Porque acha que os investigadores portugueses não se têm dedicado a este campo de estudos?

Posto que os interesses de investigação têm muito a ver com o foro interior de cada investigador, na minha opinião são duas as razões principais que concorreram a alhear a atenção dos cientistas deste campo de estudos. A primeira tem a ver com a relativa proximidade cronológica do regime autoritário que causa ainda uma reductio ad unum de tudo o que é direitas ou nacionalismos à figura de Salazar. Isso esbate a policromia de uma área rica em pensamento político e história dos movimentos e prejudica o seu interesse. A segunda tem a ver com a auto-exclusão, no regime democrático, das direitas e dos nacionalismos do debate das ideias. Tiradas algumas excepções (por exemplo "Futuro Presente" nos anos 80), esta área temeu as contaminações, recusou-se a enxertar as suas raízes com os novos desafios da modernidade e renunciou a produzir novas sínteses. Acabou, assim, por contentar-se em sobreviver no limbo dos "êxules em pátria", importando amiúde ideias simples cunhadas no estrangeiro para o combate partidário (por sua essência pouco útil à elaboração de princípios com peso). Esta retirada da batalha das ideias contribuiu em afastar os investigadores da procura das raízes profundas desta área. Dito isto, eu não me preocuparia muito com a quantidade de investigações dedicadas ao tema, mas sim com a sua qualidade, muito mais importante para abrir trilhos seguros.

Consultou inúmeros arquivos, particulares e públicos. Ficou surpreendido com a quantidade ou a qualidade dos documentos que teve ao seu dispor?

Fiquei mais surpreendido com a descontinuidade dos documentos, que denota como as direitas radicais do segundo pós-guerra, apesar de sempre presentes, nunca conseguiram (ou nunca procuraram) um projecto orgânico de longa duração. Tratou-se de experiências isoladas, pontuais, amiúde com boa qualidade intelectual, mas efémeras e, por isso, pouco frutíferas do ponto de vista do legado a deixar. Este limite parece-me reproduzir-se também no período democrático.

Encontrou disponibilidade para depor por parte dos muitos participantes nos movimentos de Direita no período de que se ocupa?

Disponibilidade incondicional por parte de muitos, uma certa reticencia por parte de alguns, recusa total de colaboração por parte de poucos, felizmente.

Algumas das pessoas que participaram nesses movimentos encontram-se hoje inseridas na sociedade democrática, e algumas ocupam mesmo cargos de relevo na vida política e social. Sentiu que isso as inibiu de falarem abertamente sobre o seu passado?

Creio que as inibições deveram-se mais ao facto de eu ser estrangeiro. Isso gerou o preconceito, não totalmente injustificado, que dificilmente poderia ter compreendido as razões profundas da militância deles de há 40 anos. Mas devo dizer que também as figuras actualmente com cargos de relevo, foram, no que decidiram contar-me, bastante sinceras, honestas e até orgulhosas das lutas que travaram nos seus 20 anos. Isso não lhes impediu de rever algumas posições e criticar certos limites ínsitos no radicalismo de então, graças à distância cronológica e aos respectivos percursos de maturação intelectual. Gostei dos depoimentos deles e fiquei com a vontade de os interrogar mais a fundo, ultrapassando finalmente as omissões iniciais. Como historiador, e como homem, teria ficado muito mais decepcionado em ouvir uma ladainha de arrependimentos, justificações, mea culpa. Não foi o caso, com nenhum deles.

Sabemos que em breve inaugurará um 'site' sobre o tema na Internet. Tenciona continuar a dedicar-se à investigação e à publicação no âmbito da Direita portuguesa?

Sim, o site disponibilizará na internet a documentação original que recolhi no decurso das minhas investigações e tenciona ser um instrumento de trabalho para os futuros investigadores e apaixonados da matéria. Em relação às minhas actuais investigações, dedico-me agora à história das direitas radicais na transição democrática, entre 25 de Abril de 1974 e, sensivelmente, o princípio da década de 80. A este respeito gostava de aproveitar a colaboração de "O Diabo" para lançar uma "operação memória", convidando todos os leitores que participaram directamente naqueles eventos em contactar-me ( riccardo.marchi@ics.ul.pt ) para deixar o seu testemunho ou disponibilizar-me o acesso aos seus arquivos particulares. Na minha profissão, "memento" é de facto um imperativo, visto que a reconstrução histórica, assim como a história em si, é sempre uma obra comunitária.

Jaime Nogueira Pinto no "i" [29 Dezembro 2009]

Jaime Nogueira Pinto no "i" [29 Dezembro 2009]

via Império, Nação, Revolução by Riccardo Marchi on 3/27/10
"Como nós fomos..."

Como as esquerdas radicais, vivemos intensamente os combates políticos da nossa época. Pensamos e lutamos por ideias de justiça social.

"Império, Nação, Revolução. As Direitas Radicais Portuguesas no Fim do Estado Novo (1945-1974)", de Riccardo Marchi, abre uma janela sobre uma terra quase incógnita da nossa historia próxima. Marchi nasceu em Pádua, em 1974. E por isso é um alien nesta paisagem, que vem olhar e contar. Mas trouxe cânones analíticos que faltam à intelectualidade indígena, que, seguindo a vulgata antifascista, arrumou indiscriminadamente todas estas "direitas" em "fascistas", "reaccionários", "extrema-direita" – os "maus" ou "vilões" da história.
A hegemonia política da esquerda há trinta e cinco anos faz com que as categorias políticas de esquerda e extrema-esquerda sejam estudadas e debatidas com algum rigor. Mas persiste a amálgama conceptual na área da direita, que, salvo raras excepções, ainda é contada pela esquerda.
Dai o mérito do livro de Marchi, que, além de estabelecer as distinções requeridas, procurou conhecer o pensamento, o sentimento, a história desta área. A galáxia aqui contada teve revistas, jornais, editoras – Tempo Presente, Combate, Via Latina, O Ataque, Política, Cidadela; teve movimentos de juventude – como o Jovem Portugal nacional-revolucionário, fundado pelo Zarco Moniz Ferreira; ou a FEN – Frente dos Estudantes Nacionalistas – mais salazarista; teve clubes de pensamento e reflexão, e até um grupo de teatro – A Oficina. Teve escritores, académicos, intelectuais, jornalistas, militantes, estudantes, combatentes; fez panfletos, furou greves, resistiu nas faculdades da década de 1965-74 à hegemonia de controlo do movimento associativo. E foi, em 1974-75, de onde veio a única resistência à descolonização.
Conheço bem esta história; fiz parte dela. Dos que lá estivemos, uns voltaram à politica depois de 1976, como o Francisco Lucas Pires e o José Miguel Júdice, outros continuaram no combate cultural, outros desistiram, alguns morreram.
Nestes movimentos estiveram conservadores, tradicionalistas, monárquicos, salazaristas, nacionalistas-revolucionários, fascistas. A trilogia nação, império, revolução pode servir-lhe de denominador: a nação e o império – e a ideia de transformar o império em nação – foram símbolos e valores de todos e estiveram na origem da vinda da maioria para a acção política. Já a revolução foi atributo dos que então se distanciaram do Estado Novo e buscaram inspirações em movimentos do passado, como o fascismo revolucionário de 1920 ou o falangismo de José António. Era a sua terceira via.
Éramos assim. Como as esquerdas radicais, vivemos intensamente os combates políticos da nossa época e, bem longe dos estereótipos de senhoritos reaccionários ou de caceteiros do regime, pensamos e lutamos por ideias de integração nacional e justiça social. Que hoje podem parecer utópicos, mas na época nos surgiram como a alternativa ao que estava e àquilo que vinha.

Jaime Nogueira Pinto
Professor universitário

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Carta de Ghandi a Hitler

via Hipnozz by Mário Rui Santos on 4/6/10
"Caro amigo,

Alguns amigos me incentivaram a escrever-lhe em nome da humanidade. Mas tenho resistido aos seus pedidos, porque me parecia que uma carta minha para si seria uma impertinência. No entanto, algo me diz que não tenho que calcular mas que tenho que fazer o meu apelo, valha ele o que valer.

É muito claro que você é hoje a única pessoa no mundo que pode impedir uma guerra que poderia reduzir a humanidade ao estado selvagem. Terá você de pagar esse preço por um objectivo tão valioso quanto este lhe parece ser? Quererá escutar este apelo de alguém que tem evitado deliberadamente o método da guerra, com considerável sucesso?
De qualquer forma conto com o seu perdão se cometi um erro em lhe ter escrito.
O seu amigo sincero
M.K.Ghandi
23 de Julho de 1939"

Foto e trad.: Mário Rui Santos

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Os retornados mudaram Portugal por Fernando Dacosta

via BRAVOS RETORNADOS, ESPOLIADOS, DESLOCADOS... by MARIANJARDIM on 3/22/10
Page 1

Os retornados mudaram Portugal
Fernando Dacosta


Ninguém sabe ao certo quantos são. Alguns referem oitocentos mil, outros um milhão e meio. Vieram por barcos e por aviões, golfados em caudais intermináveis de desespero e desamparo. Imobilizaram-se ao frio, ao pudor, ao cansaço. O eco do seu êxodo, sem bíblia nem Israel, condoeu então o mundo. O velho império português retomava cabisbaixo, naufragado, às praias de onde, cinco séculos atrás, partira para uma epopeia de façanhas imorredoiras.

Refeitos os bocados de cada um, ergueram-se e atiraram-se em frente. Chegaram, em pequenos
grupos, a todo o país; e em pequenas ocupações, a todos os sectores. Como novos bandeirantes, colonos uma vez mais, foram para o interior carregando cóleras e pânicos, vinganças e ousadias.
A sua raiva foi a sua força; a anti-fé fê-los mover montanhas, dominar medos, vencer a loucura e o
desamor. E dar provas espantosas de coragem, de persistência, de engenho de invenção. Com ajudas de instituições, de subsídios, de empréstimos, de amigos, começaram a fixar-se e a transformar os locais onde se detiveram.

CONTINUA...

terça-feira, 20 de abril de 2010

Mircea Eliade sobre E. M. Cioran

Mircea Eliade sobre E. M. Cioran

via António Quadros by aquadrosferro@gmail.com (António Quadros Ferro) on 4/17/10
"[...] Conhecia muito bem Cioran. Já éramos amigos na Roménia, nos anos 1933-1938 e fiquei feliz de o reencontrar aqui, em Paris. Admirei Cioran após os seus primeiros artigos publicados em 1932, quando tinha apenas vinte e um anos. A sua cultura filosófica e literária, os místicos alemães e Açvagosha. Por outro lado, possuía, muito jovem ainda, um espantoso domínio literário. Tanto escrevia ensaios filosóficos como artigos panfletários com um poder extraordinário. Podemos compará-lo aos autores dos apocalipses e aos mais famosos panfletários políticos. O seu primeiro livro em romeno, Nos Cumes do Desespero, era apaixonante como um romance e simultaneamente melancólico e terrível, deprimente e exaltante. Cioran escrevia tão bem o romeno que não podíamos imaginar que um dia mostraria a mesma perfeição literária em francês. Penso que o seu exemplo é único. É verdade, desde sempre, tinha admirado o estilo, a perfeição estilística. Dizia, muito sério, que Flaubert tinha razão quando trabalhava toda a noite para evitar um subjuntivo... [...]"


Mircea Eliade

A Provação do Labirinto, Diálogo com Claude-Henri Rocquet
Publicações Dom Quixote, 1987, pp.74-75

António Quadros sobre..

via António Quadros by aquadrosferro@gmail.com (António Quadros Ferro) on 4/9/10
António Sérgio

"Sérgio passou como um furacão pela vida cultural portuguesa. Idealista, foi sobretudo um guerreiro, um paladino, um voluntarista. Quis demolir para reconstruir, mas principalmente demoliu. A sua obra teve desmedida influência e, depois dele, nada ficou igual ao que era. Para o melhor ou para o pior. Quanto a nós, para o pior...
[...] Foi um pensamento essencialmente redutor. Um pensamento constantemente apostado em reduzir o complexo ao simples, o enigmático ao claro, o curvilíneo ao rectilíneo, o múltiplo e o diverso ao uniforme, o imenso ao mínimo, o espiritual ao material e o antropológico ao sociológico.
[...] Depois de supervalorizar uma sociologia horizontal, matemática e genérica, ignorando (ou ocultando) os dados da antropologia cultural, da psicologia, da caracterologia, da psicanálise, etc. (o que era muito mais fácil no seu tempo), tratava-se para Sérgio, de mostrar como tudo quanto é sociologicamente insignificante, na realidade... não existe.
[...] José Marinho esclareceu-o perfeitamente: em António Sérgio, a razão aparece-nos «sem o próprio conceito» [....]"

António Quadros
Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista II, pp. 23-24
(Guimarães, 1983)

domingo, 18 de abril de 2010

A eterna perseguição ao Judeu

A eterna perseguição ao Judeu

via Um Homem das Cidades by Diogo on 4/17/10
O professor Jesse H. Holmes, escrevendo no "The American Hebrew", expressou o seguinte:

"É pouco provável que seja acidental que o antagonismo direccionado contra os judeus seja encontrado em qualquer parte do mundo onde judeus e não judeus fazem parte de uma sociedade. E, como os judeus são o elemento comum da situação, parece provável que a causa desse antagonismo sejam os judeus e não a enorme quantidade de grupos que sentem esse antagonismo."

**********************
Bernard Lazare (1865-1903)

No seu livro, «L'antisémitisme son histoire et ses causes» [O anti-semitismo, a sua história e as suas causas], publicado em 1894, o conhecido autor judaico, Bernard Lazare, afirmou o seguinte sobre as expulsões dos judeus:

"Se esta hostilidade, mesmo aversão, tivesse sido dirigida contra os judeus durante um certo período e num determinado país, seria fácil esclarecer as causas da sua cólera, mas esta raça [judaica] tem sido, pelo contrário, um objecto de ódio de todos os povos entre os quais se estabeleceu. Portanto, visto que os inimigos dos judeus pertencem às mais diversas raças, vivem em países tão distantes uns dos outros; são regidos por leis tão diversas, governados por princípios opostos, por não partilharem sequer a mesma moral, ou costumes, por possuírem temperamentos diferentes que não lhes permitem julgar as coisas da mesma forma, a causa comum do anti-semitismo deve, por isso, ter residido sempre em Israel [judaísmo] e não naqueles que lutaram contra Israel [judaísmo]."

sábado, 17 de abril de 2010

João Alves das Neves sobre António Quadros

via António Quadros by aquadrosferro@gmail.com (António Quadros Ferro) on 3/23/10
"[...] o que mais me aproximou de António Quadros foi o seu fervor pelos mil e um aspectos da Cultura Portuguesa. com relevo para as relações entre os 8 paises de idioma comum, perfeitamente caracterizados nos seus artigos e livros. É claro que um dos nossos temas ´preferidos foi a obra de Fernando Pessoa, mas os seus comentários sobre o diálogo cultural luso-brasileiro despertaram-me o maior interesse.
Em 1988, coordenamos na Academia Paulista de Letras, em São Paulo, o I Encontro de Estudos Pessoanos, do qual participaram destacados ensaístas brasileiros e portugueses, assinalando, entre outros, João Gaspar Simões, Teresa Rita Lopes e António Quadros, conforme ilustra a revista cultural Comunidades de Língua Portuguesa (agora, com 22 volumes publicados!). Foi no decurso desse diálogo lusíada que da admiração intelectual passamos à amizade. [...]"
João Alves das Neves
continue a ler aqui.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

SUPORTES MATERIAIS DA CIVILIZAÇÃO

via Sopas de Pedra by A. M. Galopim de Carvalho on 4/11/10
COM EXCEPÇÃO dos poucos minerais resultantes da actividade de alguns seres vivos, como são, por exemplo, a calcite e o quartzo de muitas rochas sedimentares, a imensa maioria teve origem muito antes da aparição da vida sobre a Terra. Formados durante a diferenciação do planeta e alguns, ainda mais velhos, do tempo do nascimento do Sistema Solar, há 4570 milhões de anos, os minerais já aqui estavam, como que à nossa espera. Coube ao génio humano o mérito de os descobrir e de lhes dar utilidade.

Se recuarmos aos primórdios da Humanidade, vemos os nossos antepassados em busca do sílex, um material quase exclusivamente formado por quartzo microcristalino. Muito duro e fácil de lascar, na obtenção de pontas e arestas cortantes, esta rocha constituiu uma das primeiras matérias-primas minerais com que estes nossos avós "fabricaram" machados, facas, pontas de seta e outros utensílios que marcaram o começo das civilizações. Vemo-los ainda recolher o ocre vermelho (hematite), o ocre amarelo (limonite) e outros minerais corados que usaram nas pinturas rupestres que nos deixaram em Lascaux e Altamira. Vamos observá-los a minerar o ouro, o cobre (na calcopirite) e o estanho (na cassiterite) que souberam caldear em bronze. Observamo-los, depois, a produzir ferro a partir dos seus óxidos naturais, como a hematite e a magnetite. Vemo-los a utilizar a argila na feitura de cerâmicas e, mais tarde ainda, a transformar a areia de quartzo em vidro. De então para cá, os minerais fazem parte da vida do Homem, na escolha dos locais onde se instalaram, no artesanato e, mais tarde, na indústria, no comércio e, até, na guerra.

Muitos minerais assumem formas cristalinas, cores e brilhos que lhes conferem enorme beleza, sendo alvo de grande interesse por parte de museus e coleccionadores. Um tal interesse, desenvolvido, sobretudo, a partir do século XVIII, tem vindo, nas últimas décadas, a assegurar uma actividade especializada de oferta e procura, à escala mundial, que chegou ao nosso país em 1989, com a primeira Feira de Minerais, Gemas e Fósseis, realizada no Museu Nacional de História Natural, a caminho da sua 24ª edição.

Entre as mais de 3500 espécies minerais conhecidas, umas são curiosidades com interesse científico, outras são comuns, abundantes e até banais na nossa relação diária com a Natureza. Entre elas, algumas têm hoje grande valor económico como matérias-primas essenciais à sociedade. São os minérios de ferro, de cobre, de alumínio, de tungsténio (volfrâmio), de enxofre, de arsénio, entre os muitos que exploramos. Desde o machado de sílex das civilizações mais primitivas, às modernas tecnologias, o Homem não deixou de procurar, conhecer, explorar e utilizar os minerais. É dos minerais que se extraem os metais e se fabricam numerosos tipos de ligas metálicas. Metais e ligas metálicas estão nas nossas casas, nos talheres, no filamento das lâmpadas e nos cabos eléctricos, no frigorífico, no fogão, no forno de microondas, no rádio, no telefone e na televisão, no computador e no automóvel, nas ferramentas, nas agulhas de coser, na joalharia, etc., etc.

Outros produtos essenciais à civilização têm nos minerais a única fonte. Basta que citemos a cal, o cimento e o gesso, as cantarias, as calçadas e as britas, os vidros, as faianças e as porcelanas, sem esquecer o cloreto de sódio, o ácido sulfúrico, os boratos, os fosfatos e os nitratos. Nos minerais assentam ainda indústrias como as do papel, dos plásticos e das borrachas, das tintas, dos fertilizantes, dos detergentes e sabões, dos medicamentos e dos cosméticos. Pode, pois, afirmar-se, sem receio de faltar à verdade, que os minerais constituem as matérias-primas basilares da civilização, desde a Pré-história aos dias de hoje.

terça-feira, 13 de abril de 2010

O Estado Tradicional

via Legião Vertical by LEGIÃO VERTICAL on 4/11/10
O Estado tradicional é orgânico, não totalitário. É diferenciado e articulado e admite zonas de autonomia parcial. Coordena e faz participar na unidade superior forças a que reconhece liberdade. Precisamente porque é forte, não tem necessidade de recorrer à centralização mecânica: esta só é reclamada se tem de controlar uma massa informe e atómica de indivíduos e de vontades, o que, entretanto, faz com que a desordem não possa ser verdadeiramente eliminada mas contida provisoriamente. Segundo a feliz expressão de Walter Heinrich, o Estado autêntico é omnia potens, não omnia facens, isto é, detém no centro um poder absoluto que pode e deve fazer valer sem entraves em caso de necessidade ou de decisões últimas e que vai além do fetichismo do chamado "Estado de direito". Não intervém em tudo, não impõe a vida de caserna (no sentido negativo) nem conformismo nivelador em lugar de reconhecimento livre e lealdade, como não procede a intervenções impertinentes e imbecis do domínio público ou estatal no domínio privado. A imagem tradicional corresponde à gravitação natural de sectores e unidades parciais em redor de um centro que governa sem constrangimentos, que actua por prestígio, de uma autoridade que certamente pode recorrer à força, mas da qual se abstém o mais possível. A prova da força efectiva do Estado é dada pela margem concedida à descentralização parcial e racional. A ingerência sistemática do Estado não pode ser um princípio, a não ser que se trate de socialismo de Estado tecnocrático e materialista.
Por contraste, a missão essencial do Estado autêntico é criar um determinado clima geral, em certo sentido imaterial, como foi próprio a todos os regimes da época precedente. É a condição necessária para que tal sistema, onde a liberdade é sempre o factor fundamental, tome forma de modo praticamente espontâneo e funcione de maneira justa, com um mínimo de intervenções rectificadoras.

- Julius Evola, "O Fascismo vista da Direita"

segunda-feira, 12 de abril de 2010

António Lobo Antunes e a sua guerra em Angola

Esteve dois anos na guerra colonial cujo absurdo haveria de retratar em Os Cus de Judas. Ao regressar de Angola, António Lobo Antunes não era o mesmo homem. Em Lisboa tinha deixado a mulher (com quem havia casado pouco antes de partir) e uma filha que ainda não conhecia. Trazia também a certeza de que pretendia desistir da cirurgia e antes preferir uma especialidade médica que lhe permitisse escrever. Acabou por escolher psiquiatria, à qual foi buscar as técnicas de análise que, depois, utilizou para dissecar o País.

Agora (2003), aos 61 anos , regressa ao território que sempre marcou a sua ficção. Boa Tarde às Coisas Aqui Em Baixo, o volume de 554 páginas que as Publicações Dom Quixote acabam de lançar, era para falar das seitas religiosas mas acabou por tornar-se um romance sobre o tráfico (o de diamantes e o de influências), sobre o percurso de três homens (Seabra, Miguéis e Morais) que partem de Portugal para a terá devastada pelas guerras (a colonial e a civil) e pela cupidez humana. Em entrevista à Visão, o escritor desfia – como nunca o havia feito – as suas memórias de África. As do inferno e as do paraíso.

Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo é o livro do ajuste de contas com Angola?

Não tenho contas a acertar com ninguém. Estou em paz com os outros. O que sinto é que não vou ter tempo para fazer os livros que gostaria de escrever. Como Mozart que, nas margens do Requiem, escrevia «Não vou ter tempo»...

E uma espécie de catarse?

Também não sinto que tenha de me libertar de alguma coisa. Angola nunca saiu de dentro de mim. Ocupa um lugar muito profundo, mais até do que eu imagino ou penso. Vejo Angola como um paraíso perdido. Lembro-me da terra, dos cheiros, das cores, dos horizontes, de toda aquela sensualidade. Como, aliás, também acontece em relação à Beira Alta, onde agora vou cada vez mais. É uma espécie de regresso à infância onde fui tão feliz. Quando passo Carregal do Sal sinto logo o cheiro da Beira Alta. Dá-me uma certa paz interior.

Como é possível ter uma imagem de paraíso de algo que foi um inferno?

Mas tudo aquilo que envolvia a guerra era de uma beleza imensa. É curioso porque, afinal, foi um tempo doloroso.

De que maneira é que um romance sobre seitas religiosas se transforma num romance que tem o tráfico de diamantes como pano de fundo?

O outro romance começava em Angola e era para acabar com a casa destruída que aparece logo no princípio deste. Pensei que o livro pedia muito mais do que aquilo. Porque é que havia de estar a tocar uma gaita-de-beiços se podia estar a tocar um piano sem fim?

Esta é a imagem que tem da Angola pós-independência?

Enquanto escrevia o livro, interroguei-me várias vezes se não iria arranjar problemas.

Em que sentido?

Com a riqueza de Angola, não acredito que tenham desaparecido todos esses europeus e africanos que ainda hoje tentam explorar aquela terra. No livro também está presente a minha indignação em relação a todo esse neocolonialismo. Como é que se fazem determinadas coisas em nome da democracia e da amizade? Eu não queria entrar muito por aqui... Já deve ter reparado que sou sempre muito cauteloso. Por vezes tenho imensa vontade de escrever para a Visão sobre esse processo da Casa Pia, mas não me atrevo a fazê-lo porque as pessoas não teriam possibilidade de me responder.

A pergunta é para o psiquiatra...

... esse, coitado, já não existe.

Ainda deve saber umas coisas...

... poucas.

Arrisco, mesmo assim, a pergunta para ele: a questão da guerra está resolvida em si?

O psiquiatra? A questão da guerra? Não pode chamar-se àquilo uma guerra. Morria-se sem se ver ninguém. As minas, não se via quem as punha e, nas emboscadas, era tudo muito rápido. Uma guerra pressupõe um adversário e ali, ele era completamente invisível.

Não havia combates?

No sentido clássico do termo, não. Para fazerem sentido, as emboscadas não podiam demorar muito. Uns minutos e desapareciam. Depois, havia as populações, que me fascinavam.

Esse foi, de algum modo, o lado bom da guerra?

Sim, esse contacto foi decisivo para mim. Aprendi muito com aqueles povos, através da sua relação com a vida e com a morte. Apercebi-me também que o tempo africano – que é elástico, indefinido – podia servir-me para me mover melhor no espaço do romance.

Nunca teve oportunidade de regressar a Angola?

Oportunidade há sempre. Acho é que, se voltasse, não saía de lá. Gostava de ter u passaporte angolano, teria muito orgulho nisso. Não quero dizer que me sinta menos português, gosto cada vez mais de ser daqui, sinto-me muito bem no meu país.

Mas porque é que gostava de ter passaporte angolano?

Afectivamente, estou muito ligado àquela terra e àquelas pessoas.

Isso não é um contra-senso? No fundo, lutou contra a independência angolana...

Bom, eu fazia parte de um exército...

Que dependia de um governo que era contra a independência das colónias.

É verdade. Isto não pretende ser uma justificação, mas, naquela época, a gente tinha a sensação de que a ditadura era eterna. Ou se ia à guerra (como o Partido Comunista, que mandava os seus militantes ir à guerra) ou, então, ia fazer-se a revolução para os cafés de Paris. E, a certa altura, reparei que a maior parte das pessoas que emigrava fazia-o quando sabia que ia. Porque tinham medo. Aquilo metia medo. No entanto, as minhas razões não tinham nada a ver com estas. Não fui nem por valentia nem por ideais políticos. Ernesto Melo Antunes, o meu capitão, dizia que a revolução se fazia por dentro. A mim, contudo, a revolução não me dizia grande coisa... Sempre tive uma vida protegida, passei ao lado de todos os movimentos contra a ditadura; por cobardia, provavelmente.

Era um privilegiado.

Claro que sim. Nessa altura, de um modo geral, os rapazes que iam para as faculdades eram privilegiados. Mas não foi só por isso que a política – e até o próprio movimento estudantil – me passou ao lado. Eu nem às aulas ia, passei a faculdade a escrever e a jogar xadrez. Vivia completamente centrado sobre mim mesmo. Talvez esteja grato a Angola porque foi lá que aprendi a existência dos outros. Até então o meu mundo era ptolemaico. Na guerra, senti pela primeira vez uma camaradagem real, que ainda hoje se mantém.

Ainda se vêem?

Sim, de vez em quando. Nesse momento percebi que eu não era o centro do mundo.

Mantinha um diário?

Não, nunca fiz diários. Mas é curioso que, durante todo o tempo que estive em África, li e escrevi muito. À noite, enquanto escrevia os meus romances, tinha a sensação de estar em Lisboa porque havia um soldado que imitava os pregões dos ardinas.

Lembra-se do dia em que foi mobilizado?

Eu já sabia que ia, só não sabia era quando. Fiz a segunda parte da recruta no Hospital da Estrela e, depois, fui colocado no de Tomar. Estive lá uns meses e, um dia, o director chamou-me e disse-me que eu tinha que me apresentar em Santa Margarida. Só soube que ia para Angola já no barco.

Foi lá que conheceu Ernesto Melo Antunes?

Só vou encontrar o batalhão com que fui em Santa Margarida uns meses antes de embarcar, a 6 de Janeiro de 1971.

E para onde foi?

Fui para as Terras do Fim do Mundo, na fronteira com a Zâmbia, no saliente do Cazombo. Chagámos lá e, pendurada no arame farpado, estava uma tabuleta que dizia «Lisboa, 10 mil quilómetros. Moscovo, 13 mil». O leste angolano não correspondia nada à ideia que fazemos de África. É arenoso, com pouca vegetação e, de noite, fazia muito frio.

Não havia o que habitualmente se chama mato?

Havia, mas parecia sempre igual. Outra das coisas que me espantava era a capacidade que os nossos guias tinham em orientar-se. Havia um que lhe bastava pôr a orelha contra o chão para pressentir uma coluna ainda a quilómetros de distância. Outro, via mosquitos na outra banda e, aos domingos, punha uns óculos graduadíssimos. E nós, miúdos de 20 anos, não entendendo o significado simbólico do acto, fazíamos troça. Não percebíamos que aquela maneira de ser correspondia a uma cultura milenar. Vínhamos com toda uma carga de coisas europeias...

O médico recém-licenciado também descobriu outras «ciências»?

Sob o aspecto médico eram culturas muito mais avançadas que as nossas. Não havia cáries, por exemplo. E lavavam os dentes com um pau... Doutro ponto de vista, a organização social era perfeita, não havia conflitos sociais e as decisões eram tomadas em assembleias muito complicadas. Uma vez, numa aldeia, estiveram uma tarde inteira para deliberar se me davam um galo. Eram muito sábios e, sentindo o absurdo daquela situação fugiam para norte. Nós queimávamos as aldeias com desfolhantes e com tudo isso de que é proibido falar. Eu vi napalm. O marechal Costa Gomes, que era meu comandante-chefe, dizia que não existia napalm. Nós tínhamos napalm e bombardeávamos com napalm. Esta é a verdade. E quem disser o contrário está a mentir.

No terreno dizia-se que o regime estava a definhar?

Não, não se tinha a noção porque não tínhamos notícias nenhumas. O nosso batalhão, composto por três companhias de combate, cobria um território com a mesma extensão de Portugal Continental do Mondego ao Algarve. Naquela altura, o MPLA estava a entrar pela Zâmbia com o objectivo de cercar o planalto central. Era, portanto, uma zona tremenda. E era suposto nós servirmos de tampão. Mas como é que três companhias e combate – ou seja, 450 homens – podem patrulhar uma zona tão grande? Era impossível.

Discutia-se política?

Não, não se discutia política. Nem era possível discutir. Nunca assisti a cenas como as de Manoel de Oliveira no qual os militares vão nos Unimogs a discutir a legitimidade da guerra. A partir do momento em que morreu o primeiro rapaz, até o Melo Antunes (que era um homem muito politizado, que discordava da guerra) deixou de falar nisso. Nesse momento disse «Vamos vingar o Ferreira». O primeiro morto desencadeia uma raiva enorme. Ninguém queria ir para o mato, ninguém queria matar ninguém. Não aquele país, olhávamos para o céu, não conhecíamos as estrelas. Nada daquilo nos fazia lembrar Portugal. Absolutamente nada. Estávamos ali, não havia nada à volta. Só havia a casa do chefe do posto em ruínas onde eu dormia. Portanto, que vontade tinha eu de combater? O quê? Quem?

Estavam apenas preocupados em chegar ao dia seguinte?

Eu queria voltar vivo. Tínhamos sido treinados para a guerra, mas o objectivo era acumular o maior número de pontos possíveis para irmos para um sítio com menos guerra. Um prisioneiro tantos pontos, uma arma apreendida tantos pontos e, ao fim de não sei quantos pontos, mudávamos de lugar. Nunca ouvi – entre oficiais ou soldados – uma única palavra contra o a favor da guerra. A gente queria era sair dali. O mais depressa possível. Não queria falar da crueldade e da violência porque, no meio das atrocidades, também havia uma grande generosidade. Os nossos soldados ganhavam uma miséria e estavam sempre na aflição de saber como é que estavam as suas famílias em Portugal. As notícias que chegavam eram poucas, o correio só vinha uma vez por semana...

Que atrocidades não conseguiu esquecer?

Coisas horríveis. Havia uma delegação da PIDE junto à sede do batalhão e eu assisti a dois ou três interrogatórios. Nunca vi o exército fazer tais coisas. Lembro-me de um soba me dizer «O Sr. PIDE manda mais que o Senhor Governador». A PIDE era, de facto, o terror dos civis. Noutro dia, fizeram-se uns prisioneiros e, como era preciso comunicar à polícia, veio um PIDE de helicóptero. Quando chegou, a primeira coisa que fez foi dar um pontapé na barriga de uma mulher grávida. O Melo Antunes puxou da pistola e apontou-a ao PIDE. Nem imagina os problemas que ele teve por causa disso... Estávamos ali, mas de vez em quando vinham uns do «ar condicionado» para dizer como é que devíamos fazer a guerra. Recebiam o mesmo subsídio e apareciam de camuflado novinho em folha. E nós de camuflado todo desbotado...

Tudo isso é político...

Eram ordens militares. E não vinham embrulhadas em qualquer consideração do género «Estamos a defender Portugal». Não me recordo de um comandante, um general, um coronel ou um brigadeiro me falar da pátria. Não me lembro de alguma vez ter ouvido um discurso patriótico que advogasse a civilização contra o comunismo ateu.

A morte torna-se mesmo uma rotina na guerra?

Fazia sempre sofrer muito. Uma vez levei para o meu quarto um rapaz que tinha morrido numa emboscada. Não quis que o tirassem de lá. Estava só a dormir. A morte de um camarada era uma coisa horrível. E mesmo os feridos, que nunca mais voltávamos a ver. Quando havia amputações, eu fazia o penso ao coto, vinha um helicóptero e levava-os.

Como é que vê, hoje, as diferenças entre a guerra que conheceu e estas guerras cirúrgicas?

Não conheço estas, só conheci aquela. Mas a guerra é sempre um momento absurdo porque ninguém ganha. Isto foi o que, de mais claro, trouxe da guerra. Na guerra não há vencedores. Todos – militares, famílias, populações – são vencidos. E os militares são os que menos culpa têm porque se limitam a fazer aquilo que o poder político pretende. Sob este aspecto, o exército português sempre foi muito disciplinado. O Melo Antunes, por exemplo, impunha uma disciplina completamente feroz que eu não compreendia. Ele contrapunha que aquela era a maneira de termos menos baixas. Obrigava-nos, entre outras coisas, a pôr gravata para jantar, na areia...

A disciplina passava por aí?

Também, o que não o impedia depois de jogar vólei com os soldados. Estes, de resto, eram muito bem treinados. Quando uma coluna foi atacada, o alferes teve medo e escondeu-se debaixo de um cepo. O pelotão ficou uma presa fácil porque todos estavam à espera que aquilo funcionasse.

O medo era encarado como um sinal de fragilidade?

Borrar-se de medo? Cagar-se de medo? Tudo isto é real, não são figuras de retórica. Ele tinha as calças do camuflado encharcadas de merda. Casos destes, no entanto, não havia muitos. Todos tínhamos medo, mas os nossos soldados eram de facto extraordinários. Não eram como os americanos que estavam lá no Vietname e, de dois em dois meses, tiravam uma semana de férias. Em Angola nunca vi ninguém negar-se a ir para a mata. Quando o rapaz que tinha sido sorteado para conduzir o rebenta-minas – a viatura, como então dizíamos que ia à frente – vinha despedir-se de mim, fazia-o sem quaisquer dramatismos. Ao princípio ainda marcávamos os dias no calendário, mas a partir de certa altura a vida já não tinha grande valor. Uma das cruzes de guerra que tivemos foi o apontador de metralhadora, já ferido no pescoço, ter continuado a disparar para salvar os que estavam cá em baixo. Havia um espírito de corpo muito intenso. Lá, éramos todos a mesma coisa. Estou a conseguir falar disto sem falar do horror...

Ainda sonha com a guerra?

Às vezes tenho um pesadelo tremendo. Sonho que me estão a chamar para voltar para África. Tento explicar que já fui, argumentam que tenho que ir. E o sonho acaba aqui. Nunca sonhei com tiros ou com morteiradas. No meio daquilo tudo havia muito humor. Havia um homem, o Bichezas, que cuidava do morteiro que estava ao pé da messe. Tínhamos mais medo dele do que do MPLA porque o Bichezas disparava com o morteiro na vertical. Aquilo subia...e toda a gente fugia. Apesar de tudo, penso que guardávamos uma parte sã que nos permitia continuar a funcionar. Os que não conseguiam são aqueles que, agora, aparecem nas consultas. Ao mesmo tempo, havia coisas extraordinárias. Quando o Benfica jogava, púnhamos os altifalantes virados para a mata e, assim, não havia ataques.

Parava a guerra?

Parava a guerra. Até o MPLA era do Benfica. Era uma sensação ainda mais estranha porque não faz sentido estarmos zangados com pessoas que são do mesmo clube que nós. O Benfica foi, de facto, o melhor protector da guerra. E nada disto acontecia com os jogos do Porto ou do Sporting, coisa que aborrecia o capitão e alguns alferes mais bem nascidos. Eu até percebo que se dispare contra um sócio do Porto, mas agora contra um do Benfica?

Não vou pôr isso na entrevista...

Pode pôr. Pode pôr. Faz algum sentido dar um tiro num sócio do Benfica?

Fonte: Revista Visão - entrevista de Sara Belo Luís - 27.11.2003