sexta-feira, 30 de abril de 2010

NAQUELES IDOS DE NOVA LISBOA DA DÉCADA DE 40

NAQUELES IDOS DE NOVA LISBOA DA DÉCADA DE 40

via MUKANDAS do Monte Estoril by Irdea on 4/29/10

Campo de futebol do Sporting Clube do Huambo actualmente

OS BAILES DE FIM DE ANO

NO SPORTING CLUBE DO HUAMBO(*)

Numa cidade onde as sessões de cinema no Ruacaná, os piqueniques na barragem do Cuando e os desafios de futebol constituíam os únicos entretenimentos públicos, a comemoração da passagem do ano era ansio-samente esperada. O Sporting, o Ferrovia e o Atlético competiam entre si na realização do baile mais animado. Ainda Dezembro ia em meio, já cada uma das agremiações anunciava no Rádio Clube do Huambo e na Voz do Planalto o acontecimento, aceitando inscrições para o efeito.

Talvez por simpatia clubista, ou por hábito adquirido, ou porque achava mesmo que não podia escolher melhor, Jota-Jota participava sempre nos reveillons do Sporting. Tinha razões para isso: a música não era aí, como se dizia, «de pick-up», mas executada por uma orquestra ao vivo, encarrapitada num estrado erguido à pressa e que tocava até de madrugada. Os passo-dobles, os tangos, as rumbas, as valsas não pro-vinham mais de discos estafados e defeituosos, mas do piano, do saxofone, do trompete, do acordeão, que atroavam o ar com as notas de cada peça. Havia lá comparações!...

As famílias tomavam a seu cargo a confecção dos comes-e-bebes para a ceia. Com o empenho que não regateavam nunca, preparavam com antecedência as toalhas, os guardanapos, os talheres, uma ou duas jarras para encher de flores e decorar as mesas.

Não querendo fazer má figura junto de amigos e conhecidos, Dona Maria Albertina esmerava-se nessa tarefa. Particularmente empenhada, lançava-se ao trabalho de véspera, logo na manhã do dia 30, quando punha o avental na cintura e se enfiava na cozinha.

O cozinheiro Gunga franzia a testa e não gostava nada de ter a patroa tão perto de si durante aquelas horas. Numa roda viva, andava de um lado para o outro, sem conseguir dar conta de tantas ordens e repri-mendas («Aca!, muita chatice e compricação!...»).

— Põe mais lenha no fogão! De que estás à espera? Anda lá, não durmas!

Gunga obedecia sem um protesto. Punha a lenha no fogão, mas logo a seguir, à voz da «sinhora», descascava e cortava a cebola para os refogados, batia os ovos e a farinha para as massas, misturava com as mãos enormes o azeite, o sal, o alho e a pimenta para o tempero das carnes, espevitava o lume com o aba­no de palha entrançada.

De faces rosadas pelo calor que andava no ar, Dona Maria Albertina seguia escrupulosamente a lista que elaborara uns dias antes: peru e leitão assados, pastéis de bacalhau e empadas de galinha, duas ou três sobremesas, pratinhos de leite-creme e arroz doce. Para beber à meia-noite, pedira ao marido para comprar numa mercearia da Baixa duas garrafas de espumoso («Da 'Raposeira', só da 'Raposeira', o mais caro, mas o melhor!»), porque a data era importante e devia ser dignamente festejada.

Ana Isabel resolveu nesse ano ajudar a mãe. Cada vez mais apaixonada por Sebastião, já com o casamento marcado para breve, estava particu-larmente empenhada em que tudo corresse bem.

***

As mesas eram postas durante a tarde. Com mais ou menos gosto, as senhoras distribuíam sobre as toalhas bordadas o que tinham trazido de casa: as travessas dos salgados, os pratos das sobremesas, as tacinhas dos frutos secos vindos de Portugal (os pinhões, as avelãs, as ameixas, os figos e as nozes). O cheiro compósito de tanta iguaria reunida começava de imediato a tomar conta do ar.

O baile não principiava antes das dez horas, quando a orquestra subia para o estrado. Avisando que a música vinha aí, o baterista batia repeti-damente com as baquetas nos tambores, zurzia três ou quatro vezes os pratos, deixando depois que os companheiros arrancassem em conjunto a composição de abertura. Poucos pares resistiam a esse apelo: de mãos dadas, iam até à pista de dança; com mais ou menos jeito, rodopiavam então conforme o ritmo.

Jota-Jota não disfarçava o seu contentamento. Numa ocorrência tão especial, tinha ali consigo todos aqueles que amava, e agora também Sebastião, seu genro daí a meses, que lhe dava continuamente provas de ser o marido apropriado para a filha. Que precisava mais ou poderia desejar para se sentir completamente feliz?

Dona Maria Albertina é que não se conformara ainda com aquele casamento. Insistia: como é que uma rapariga tão prendada, bela e inte-ligente se deixava arrastar assim pela paixão? Que teimosia!...

Tão feliz como o pai, Ana Isabel estava linda nessa noite. Não era só o vestido verde de seda que brilhava colado ao corpo, mas também o cabelo louro, os olhos azuis, os dentes cor de pérola, a pele coberta de sardas, toda ela radiante da cabeça aos pés.

Disposta a não ficar sentada na cadeira um minuto sequer, fitou Se-bastião com ternura:

— Vamos?...

Levantou-se, estendeu o braço e insistiu:

— Vamos?...

Queria dançar, dançar, não importava o quê: ser levada nos braços fortes do seu par, que a apertava contra o peito e lhe segredava galanteios ao ouvido.

Acompanhado pelo acordeão e o violino, o solista da orquestra cantava então um tango de Carlos Gardel. De mãos metidas nos bolsos das calças, esgalgava a cabeça de fuinha para o microfone, fechava os olhos romanticamente, estropiando a letra num espanhol carregado de sotaque:

«Su boca que besa

Borra la tristeza

Calma la amargura...»

Como dissera já a propósito dos passo-dobles, das rumbas e das valsas; como dissera antes a propósito de tudo o que dançara, Ana Isabel obser-vou:

— Adoro um tango!

Parecendo ter escutado o comentário, o solista esmerou-se na voz:

«Su boca que besa

Borra la tristeza

Calma la amargura...»

Ana Isabel repetiu:

— Adoro!, adoro!, adoro!

Perguntou:

— E tu?

Sebastião baixou a cabeça e respondeu que sim; em tom meloso, acres-centou:

— Adoro sempre aquilo que danço contigo!

Como um eco do que ouvira, imitou:

— Adoro!, adoro!, adoro!

Pouco antes da meia-noite, a orquestra parou de tocar. O Presidente do Clube subiu ao estrado e lembrou que 1946 se aproximava. À maneira de um discurso («Minhas senhoras e meus senhores!»), desejou a todos os presentes um Ano Novo cheio de paz e prosperidades.

Olhou fixamente para o relógio de pulso:

— Atenção!, atenção!

Principiou a contagem regressiva:

— Cinco, quatro, três, dois, um!

Estouraram nas mesas as garrafas de champanhe, atravessaram o salão gritos e assobios, acenderam-se e apagaram-se no tecto as lâmpadas da iluminação, e a orquestra, toda de pé, atacou uma marcha militar.

Andando de um lado para o outro, de taças cheias nas mãos, as famí-lias cumprimentavam-se efusivamente. Não escondiam a sua alegria e trocavam entre si as saudações da praxe. Aos beijos e abraços, ninguém conseguia resistir àquela euforia contagiante.

Em bicos de pés, já sem qualquer relutância, Dona Maria Albertina beijou pela primeira vez o futuro genro:

— Felicidades! Muitas felicidades!

Ele comoveu-se e agradeceu:

— Obrigado! Obrigado!

__________

(*)Inácio Rebelo de Andrade

in Na Babugem do Êxodo (romance), Nova Vega, Lisboa, 2005 (Colecção «Palavra Africana) (versão revista pelo autor).

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