terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2397: Cusa di nos terra (12): Susana, chão felupe - Parte VII...

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via Luís Graça & Camaradas da Guiné by Luís Graça on 1/1/08
Guiné > Re~gião do Cacheu > Susana > Junho de 1972 > Cabeça do Comandante de Bigrupo do PAIGC, Malan Djata, cortada por elementos da população, felupe, após a sua captura na sequência de um ataque falhado ao aquartelamento de Susana. Segundo esclarecimento, acabado de dar pelo Luís Fonseca (estamos no concelho de Vila Nova de Gaia, eu neste momento na Madalena e ele presumivelmente em Gulpilhares, aqui ao lado, sem nos conhecermos pessoalmente), "naqueles momentos foi de todo impossível determinar o 'autor' da decapitação. Creio que nessa data, fins de Junho de 1972, o João Uloma nem sequer estaria em Susana"...


Guiné <> Susana > c. 1972 > Visita ao Alferes Comando João Uloma, por parte de jornalistas nacionais e estrangeiros, entre os quais uam equipa do New York Times. O então Cap Otelo Saraiva de Carvalho, da REP/ACAP (Assuntos Civis e Acção Psicológica), fez as honras da casa e o elogio do guerreiro felupe.

Texto e fotos: © Luís Fonseca (2007). Direitos reservados.


1. Texto, de 19 de Dezembro último, do Luís Fonseca, ex-Fur Mil Trms (CCAV 3366/BCAV 3846, Susana e Varela, 1971/73), que tem aqui publicado uma série de apontamentos sobre o chão felupe (1):

Assunto - João Uloma...

Provavelmente mais uma vítima que um réu em todo o cenário da guerra. Provavelmente mais que usado e abusado, utilizando palavras tuas.

Conheci pessoalmente João Uloma haviam já decorrido largos meses de comissão. Mas o seu nome, dentro da etnia e tradição felupe, sempre nos chegou como símbolo de respeito e tido como exemplo. Daí a minha curiosidade pela pessoa.

Era de facto um guerreiro felupe, em estatura. Dos seus predicados operacionais não posso nem devo emitir qualquer comentário pois não tive oportunidade de os constatar.

A imagem que junto é prova de mais uma das demonstrações da utilidade do João Uloma. Durante uma das muitas visitas de jornalistas, nacionais e estrangeiros, esta creio que do New York Times (Alice Barstow e John Burton), ao chão Felupe, ele é apresentado como um herói na defesa do território.

O enquadramento é oficial, com direito a DO privada, e com pessoal da REP/ACAP presente (Cap Otelo Saraiva Carvalho), que faz as honras da casa, com o respectivo e longo elogio. Ao lado esquerdo do João Uloma, seu pai, homem grande da tabanca.

Foi uma das suas poucas visitas a Susana durante a minha comissão, que me recorde apenas mais duas vezes, sempre por períodos de tempo relativamente curtos.

Nessas ocasiões não era demasiado visível, diria que era até recatado. Dedicava-se à caça, quando tal era possível e a algum convivio com camaradas dos seus tempos de Pelotão 60, quase todos.

Não era uma visita constante no aquartelamento, aparecia de quando em vez, e, quando picado, relatava algumas das suas histórias, sendo no entanto parco em detalhes, o que me pareceu estranho face ao que dele se propalava.

Na sua morança não existiam, pelo menos nas casas que vi, crâneos de inimigos, o que já não sucedia em muitas outras moranças de outros guerreiros menos notáveis. Tal trofeú era, para um felupe, apanágio de valentia e quantas mais cabeças tivesse cortado mais respeitado era.

Diga-se que esse foi o encontro com o destino do Cmdt Bigrupo Malan Djata quando, em Junho de 1972, foi capturado, após ataque falhado a Susana. Mesmo com a oposição do graduado da CCAV 3366 ("tu ou ele") cumpriu-se o ritual...

Essa tradição ancestral marcava ainda a vida daqueles que sentiram o primeiro impacto de uma guerra que jamais foi sua, pelo menos no sentido de libertação, porque isso os Felupes foram-no sempre, desde o tempo da luta contra a dominação mandinga: Livres!

Acrecente-se que a imagem que envio, deixando a sua edição ao vosso critério, foi já aproveitada por João Melo (Os anos da guerra - II volume, Cap. III - Operação Nó Górdio -Moçambique - pg. 51 - Circulo de Leitores e Publicações D. Quixote) tendo eu alertado o autor da imprecisão. Nunca soube se recebeu a missiva.

Do Alf Comando João Uloma guardo uma placa dos Comandos Africanos, oferecida, não sei porque razão especial, já no final da minha estada no seu Chão. Recordo ter havido alguém que lhe pediu o crachat de Comando o que ele recusou afirmando que "aquele era dele até à morte"... Premonição...

Sobre a sua morte poderei afirmar que não foi fuzilado, mas sim morto por espancamento, à paulada, creio que em Brá, para onde teria sido convocado para ser integrado no novo exército (2).

De felupes ao serviço das NT, em número relativamente reduzido, tanto quanto me foi referido posteriormente por um militar guinéu do Pel [Caç Nat] 60, não teria havido mais desaparecidos, já que a grande maioria e após lhe terem sido retiradas as armas optou por se refugiar na região do Casamance (Senegal) ou voltar à vida civil embora com uma ameaça velada ("tropa tira arma mas fica com arco e flecha, para lutar contra bandido"). Tal terá sido a sorte que coube ao primeiro comissário político dos novos senhores que apareceu na zona, ser morto e corpo sem cabeça (degolado ritualmente com a curta faca felupe?) para não voltar a nascer noutra qualquer tabanca.

Se os meus editores me permitem, nesta faca de dois gumes, ficaria por aqui e não virava o gume para a outra face pois poderia ferir susceptilidades de alguns, de ambos os lados, que, com as suas tomadas de posição e demonstrações de poder, em nada honraram os militares que nasceram, passaram, lutaram e ficaram naquele território.

Penso voltar ao assunto.

Por hoje

Kassumai

Luis Fonseca
ex-Fur Mil Trms CCAV 3366

2. Comentário de L.G., em resposta ao Luís Fonseca:

Luís Fonseca:

É um notável texto teu, assertivo, objectivo, que ajuda a compreender melhor o comportamento do João Uloma ao serviço das NT... (Conheci-o, superficialmente, nos comandos, em Fá) (3).... Não o vou publicar já, sobretudo por causa da foto do comandante do PAIGC, degolado... Por estarmos na altura do Natal, e isso poder ferir algumas pessoas mais sensíveis... Fá-lo-emos a seguir, ao Natal...

A ti, peço-te que entretanto completes o texto... Sei que não queres ferir susceptibilidades, de um lado e de outro... Mas, bolas, tu podes falar de cátedra, como ninguém, porque conheceste o João e os felupes, os seus costumes, o seu chão... Se deixas o dossiê inacabado, é pior...

Passados estes anos todos, temos o direito à verdade... No meu tempo, o João cortava cabeças, com o beneplácito (?) dos seus superiores hierárquicos... Ele estava nos comandos africanos e havia a cultura do ronco... Temos de perceber tudo isto: havia homens, muito perturbados, nos comandos, com comportamentos patogénicos... Não estou sugerir nomes...E evito julgá-os. Hoje quero compreendê-los...

Luís: Connosco estás à vontade, não há tabus... Peço-.te, portanto, que não deixes o assunto "para melhor oportunidade", o que na nossa terra equivale a dizer "para as calendas gregas" ou para o Dia de São Nunca... Aqui não conhecemos amigos e protegidos... Mas, claro, tens sempre o direito de omitir nomes... Boas Festas. Kassumai.

Luís Graça

PS - Luís, não chegaste a receber o livro do pai do Pepito sobre os costumes jurídicos do felupes, pois não?! Creio que o Pepito enganou-se no nome, e em vez de mandar para ti, mandou para um outro gajo que ainda não descobri quem é... e que se antecipou a ti.

____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. último post da série > 25 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2215: Cusa di nos terra (11): Suzana, Chão Felupe - Parte VI: Princípio e fim de vida (Luís Fonseca)

(2) Vd. post de 23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira

(3) Vd. post de 11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri (Luís Graça)

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domingo, 27 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2429: Lançamento do meu/nosso livro: 6 de Março de 2008, na S...

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via Luís Graça & Camaradas da Guiné by Luís Graça on 1/10/08
Lisboa > Círculo de Leitores > Capa do livro do Mário Beja Santos, Diário da Guiné 1968-1969: Na Terra dos Soncó. Ainda no prelo, irá ser lançado em 6 de Março de 2008, na Sociedade de Geografia de Lisboa.

Foto: Círculo de Leitores (2008). (Gentileza da Dra Isabel Mafra, da Editora Temas e Debates)



1. Mensagem do nosso camarada e amigo Beja Santos, com data de 9 de Janeiro:

Luís e tertulianos:

Reuni hoje com a Drª Guilhermina Gomes, do Círculo de Leitores e Temas e Debates, para saber da data de lançamento do primeiro livro. Está confirmada a data para 6 de Março, pelas 18:30 horas, na Sala Algarve, da Sociedade de Geografia de Lisboa, Rua Portas de Santo Antão, 100 (edifício do Coliseu dos Recreios) (1).

Os apresentadores serão o General Lemos Pires (2) e o escritor Mário de Carvalho (3).

Venho pedir com veemência a presença de todos, a despeito de se tratar de dia de semana. Este livro nasceu neste blogue e pertence a todos. As receitas de uma das suas edições reverterá para uma obra que os tertulianos designarão, a seu tempo.

Gostava igualmente de saber se a malta pretende reunir num convívio, nesta tarde e nestas instalações, pois nessa circunstância temos que pedir a competente autorização à Direcção da Sociedade de Geografia.

Um abraço do Mário Beja Santos

_______________________

Notas de L.G.:

(1) É um belíssimo sítio - do ponto de vista cultural, histórico, institucional e... gastronómico - para o lançamento dum livro sobre a guerra colonial/guerra do ultramar e para um encontro tertuliano.

Segundo a Wikipédia portuguesa, a Sociedade de Geografia de Lisboa é "uma sociedade científica criada em Lisboano ano de 1875 com o objectivo de em Portugal promover e auxiliar o estudo e progresso das ciências geográficas e correlativas. A Sociedade foi criada no contexto do movimento europeu de exploração e colonização, dando na sua actividade, desde o início, particular ênfase à exploração do continente africano".

(2) Mário Lemos Pires, nascido em 1930, é mais conhecido da opinião pública como o último governador militar de Timor (18 de Novembro de 1974 a 27 de Novembro de 1975). Autor de Descolonização de Timor: Missão Impossível ? (Lisboa: Dom Quixote. 1994).

(3) Mário Carvalho é hoje considerado como um dos maiores escritores portugueses. Na página da Editorial Caminho, pode ler-se o seguinte:

Mário de Carvalho nasceu em Lisboa, em 1944. Licenciou-se em Direito, em 1969. O serviço militar foi interrompido por prisão em Caxias e, posteriormente, em Peniche, por actividade política contra a ditadura, ainda nos tempos de estudante. Mais tarde exilou-se em França e na Suécia. Regressa após o 25 de Abril de 1974. Dominando soberbamente a língua, o estilo de Mário de Carvalho não se reconhece em nenhuma escola, e o seu registo é ao mesmo tempo de uma grande modernidade. A crítica aponta-o unanimemente como um dos mestres do romance português contemporâneo. Vários dos seus livros foram traduzidos no estrangeiro: A Paixão do Conde de Fróis, Os Alferes, Era Bom que Trocássemos umas Ideias sobre o Assunto, Um Deus Passeando Pela Brisa da Tarde.Vencedor, em 2004, do Grande Prémio de Literatura ITF/DST. (...)

(4) A sugestão de Beja Santos muito nos honra e iremos fazer tudo para que este dia seja uma festa e uma grande oportunidade de convívio tertuliano da malta do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Aliás, já o tínhamos dito há seis meses, atrás... Vd. post de 27 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P2002: Blogoterapia (29): O Mário escreve com a mesma teimosia, perseverança, paixão e coragem com que ia a Mato Cão (Luís Graça)

(...) É claro que vamos fazer uma festa... Até já há sugestões: 3º encontro da tertúlia e almoço na Sociedade de Geografia (um sítio central e simbólico), em Lisboa, e depois, às 18h, lançamento do livro, com direito a.. um bom espumante português (que os temos até melhores que o champanhe francês!)...
O Mário Beja Santos já tem três livros publicados no Círculo de Leitores, de temática relacionada com o consumo e os direitos dos consumidores...Espero com isso que ele nos abra a porta, do Círculo de Leitores, para outras iniciativas editoriais nossas... O Mário faz questão de fazer reverter uma parte dos direitos de autor para o funcionamento do nosso blogue e para apoio a iniciativas nossas na área da cooperação e ajuda com a Guiné (Não aceito que ele prescinda da totalidade dos direitos de autor!) (...).

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sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

0862 - O CONFRONTO DO OLHAR

INTRODUÇÃO- - 9- - António Luís Ferronha- - Notas- - 26- - Bibliografia- - 27

1. encontro origem etimológica

Entraldo FONTE 12 ( ENTRALDO - pág. (373))
origem etimológica da palavra encontro :
" sentir que o outro está contra mim "
encontro —> nome de uma ave brasileira que também é conhecida por soldado
latim —> incontra = em contra

2. Modos principais do encontro e da relação :

FONTE - PÁG 12 pág (461 - 462). Modos principais do encontro e da relação :
- relação de objectividade - o outro vai ser para mim um objecto
- relação de personalidade - o outro vai ser uma pessoa
- relação de proximidade - o outro vai ser um próximo, se me corresponde

3. Distinção entre pág

Percepção do outro - é imediata e irredutível
- conhecimento do outro - é mais lenta e implica falibilidade

4. prefácio de Alfredo Margarido Margarido

FONTE PÁG 13 PÁG 13 - " o corte epistemológico dos séculos XV e XVI introduz a diversidade do outro - uma problemática que as sociedades europeias ainda não conseguiramm nem integrar nem superar "

5. alteridade - duplo movimento

Esse encontro foi marcado por esta ambiguidade: alteridade humana é simultaneamente revelada e recusada. As navegações ibéricas simbolizam este duplo movimento . os outros interiores (Judeus, árabes, berberes) são repudiados e expulsos e «descobre-se » o outro exterior ( africano, ameríndi, asiático). A unidade destes dois movimentos está na propagação da fé cristã. Pág. 13

6. expansão - segunda fase

A partir do segundo quartel do século xv~ e já noutro espaço atlântico (para alem de Cabo Verde e dos rios Gâmhia e Senegal), que se estabelece o contacto através do comércio; organizou-se o «cruzeiro», em nome do crescimento, esse Deus escondido da sociedade ocidental, um deus cruel, exigindo sacrifícios humanos, com a sua liturgia contraditória - o lucro e a fé. Pág. 19

7. expansão -primeiros livros impressos - causas

Curioso é oue os livros impressos em Portugal- até à primeirametade do Século XVI relacionam as navegaçoes com a cruzada, a conquista e a procura do Preste João (O paraíso terrestre) falam sobre as actividades mercantilistas, como se estas fossem apenas secundárias, os «suportes» dos outros aspectos fundamentais da sociedade que ainda tem muito de medieval. a glória, dentro de um imaginário cristão - os portugueses estão no mundo para realizar a cidade de Deus, Tommé Pires di-lo em substância. Pág. 21

8. cultura diferenças entre oriente - ocidente Boubou Hama

No Fundo, o encontro dos povos teve que esperar cinco séculos pela evocação feita pelo africano Boubou Hama no seu livro Le Retard de l'Afrique (ed. Présence Africaine, 1972, p. 163):
«.Até aqui," escreve ele, «conheceram-se dois homens, isto é, oespiritual, o da India antiga, materialista, o da civilização técnica ocidental. Será que as sabedorias africanas podem realizar a síntese entre esta manipulação da materia e esta cultura do espírito? Na perspectiva africana, o universo inteiro eslá concebido como um campo de forças, quer se trate das forças da natureza, dos antepassados ou do próprio homem. Por exemplo, o laço que une o africano à sua terra é qualquer coisa bem diferenle do que concerne a um dirreito ; esta dependencia tem uma significação biológica e quase metafísica, ele idenlifica-se com esta terra, faz parte dela como ela faz parte dele, em qualquer caso, pertencem ao mesmo campo de forças." Pág. 25

CAPÍTULO I- - Breves considerações sobre o outro na cartografia portuguesa- - 31- - Luís de Albuquerque

CAPÍTULO 11- - Nota introdutória aos capítulos 11 e 111- - 41
- - A imagem do Africano pelos portugueses antes dos contactos- - 43- - José da Silva Horta- - Notas- - 65- - Bibliografia- - 70

9. antes da expansão - código referencial no qual se valorizam ou desvalorizam os povos extra-europeus

primeiro tópico - esteriótipos directamente associados à côr negra e ao africano - negro ; noutro momento - em articulação com o primeiro - as categorias mais englobantres da iagem dos povos não ocidental-cristãos em que o Africano se integra. Escolhendo o campo religioso como núcleo dessa imagem, veremos como as categorias - Cristão, Mouro, Gentio, etc - aparecem articuladas e hierarquizadaas,compondo assim uma classificação antropológica, que será, a posteriori, largamente utilizada na caracterização dos povos, nãosó africanos como ameríndios e asiáticos, com que a expansão europeia dos séculos XV e XVI se viu confrontada Pág. 44

10. negro imagem negativa antes do século XV DEVISSE, 1979

1. Nas fontes portuguesas confirma-se o grande peso negativo para a imagem do Africano do século XIV e inícios do século XV dos esteriótipos de origem medieval anterior, assopciados à cor negra e ao negro (2)
(2) - l' image des noirs dans l'art occidental

11. cor negra associada a desgraçado

Nas Cantigas de Santa Maria, uma obra de meados do século XIII, o adjectivo negral é mesmo sinónimo de desgraçado..A cor negra é também cor do castigo dos maus ou pecadores por oposição à cor branca, da recompensa dos bons, como no Boosco Deleitoso (4). A contraposição branco/negro de sentidos respectivamente positivo e negativo não representa em si qualquer preconceito de tipo racial, mas é tão-só o rcsultado do sistema de cores próprio do código cultural. Pág. 45

12. cor negra - diabo

O diabo intervém sob a forma animal - cavalo negro, ave de cabeça negra, etc. - e principalmente sob a forma humana ou semelhante. Toma a aparência de uma criança negra no Espelho dos Reis de Álvaro Pais, em duas situações Semelhanles: no capílulo sobre as tentações: «E de S. Marlinho se lê que o diabo amiUde lhe apareceu em forma humana. Semelhavelmente se Ia de S. António a quem apareceu na forma de um menino negro e na forma de diversas alimárias.»Pág. 45

13. negro associado a africano e mouro Courteaux

o Negro aparece frequentemente «camuflado» sob as designações rnais abrangentes de Africano e Mouro que são frequentemente sinónimas, como observa Courteaux:
«O termo Mouros designa os Muçulmanos em geral e no caso da Peninsula iberica recobre duas realidades: os Muçulmanos Negros e os Muçulmanos Brancos sem que seja feita distinção de cor quando se trata do povo., (23) Pág. 51

14. guerreiros de Guynoia

Na cronística portuguesa, tal como na sua antecedente castelhana, é possível isolar um dos tipos mais correntes de mouro negro: o guerreiro negro. Na Crónica Geral de Espanha de 1344, para além de serem designados sob a categoria global de mouros, de diversos povos africanos que integram os exércitos muçulmanos - inclusive guerreiros de «Guynoia» (i.e., Guiné) -, nas armas do rei de Aragão que aí são descritas, têm lugar «(quatro cabeças de mouros negros que vencera em uma batalha» (25): rnenção de um tipo de representação heráltica do negro corrente na epoca. Pág. 51

15. negro associado ao capo religioso

Nos primeiros olhares dos séculos xv c XVl sobre o Africano e no caso de classificações genéricas como a do campo religioso sobre a globalidade dos povos extra-europeus, estará bem presente uma herança cultural, que em parte foi retratada nas páginas antecedentes. O peso do código referencial faz-se sentir na representação do Outro,mas vai sofrendo, progressivamente, as modificações e adequações resultantes do confronto com o rea1. Pág. 64

CAPÍTULO III- - Primeiros olhares sobre o Africano do Sara Ocidental à Serra
- - Leoa (meados do século XV-inícios do século XVI- - 73- - José da Silva Horta- - Notas- - 121- - Bibliografia- - 125

16. expansão - as cinco razões Zurara

«Capftulo VII - No qual sc mostram cinco razõcs por quc o Senhor lnfantc foi movido dc musdar buscar as tcrras dc Guiné. As cinco razões porque o Infante D. Henrique foi movido em mandar buscar as terras da guiné in crónica dos feitos da Guiné de Gomes Eanes de Xurara. Pág. 73-74

17. primeiros encontros com habitantes do deserto além do Bojador Zurara

Como Afonso Gonçalves Baldaia chegou ao Rio do Ouro - na Crónica dos feitos da Guiné de Gomes Eanes de Zurara~pág. 74-75

18. primeiros cativos Zurara -- Antáo Gonçalves

cap XII Crónica dos feitos da Guiné de Zurara Pág. 77

19. Nuno Tristão mata um mouro numa arremetida no interior litoral Zurara Pág. 78-79

20. dificuldades linguísticas Zurara
depois de passadas as fronteiras mouras

21. venda da primeira leva de escravos em Lagos Zurara
« o Infante era ali, em cima de um poderoso cavalo, acompanhado de suas gentes, repartindo suas gentes, repartindo suas mercês como homem que de sua parte queria fazer pequeno tesouro. Porque de 46 almas que aconteceram no seu quinto, ui reve fez deles sua partilha, pois toda a sua principal riqueza estava em sua vontade, considerando com grande prazer na salvação daquelas almas que antes eram perdidas. E certamente que seu pensamento não era vão, pois como já dissemos, logo que haviam conhecimento da linguagem, com pequeno movimento se tornavam cristãos.
« E eu, que esta história ajuntei em este volume, vi, na vila de Lagos, moços e moças, filhos e netos destes, nados em esta terra, tão bons e tão verdadeiros cristãos como se descendessem do começo da lei de Cristo, por geração, daqueles que primeiro foram bbaptizados.» Pág. 81

22. sobrevalorização da alma sobre o corpo como estratégia de justificação da escravatura Zurara Pág. 82-83

A «perdição » das almas é mais importante do que aprópria conservação da vida « corporal ». Na representação da religião, uma hierarquia é estabelecida entre o mouro do Norte ( de aquém-Bojador e Península) e o «novo» mouro árabo-berbere capturado ou resgatado nas costas sarianas, este isento da caracterização psicológica negativa tradicionalmente presente na imagem cristã-peninsular dos Muçulmanos, em particular a renitência na sua Fé. O mouro negro é ainda aquele que goza de um melhor posicionaento : a sua ligação à linhagem dos gentios assegura ua conversão mais fácil ao cristianismo. Pág. 83

23. capacidade de defesa dos guinéus Zurara
A capacidade de defesa demonstrada pelos guinéus, que conduz ao reconhecimento da sua superioridade nesse campo, reafirma-se como o traço mais marcante das representações: ao «artifício» do trabalho de curtir, da carpintaria e da cordoaria, junta-se o «artifício» das suas armas. Não obstando a uma certa lógica da economia da escrita, o cronista não deixa de registar, mesmo que de passagem, estes e outros sinais de descontinuidade com o viver bestial dos povos do deserto. É paradigmática a narrativa de uma incursão nas margens do rio Gâmbia, em 1446, com resultados desastrosos para os portugueses:Pág. 94

24. Nuno Tristão - morte Zurara Pág. 94

25. negro - primeira imagem associada a gentio
Neste primeiro retrato do africano, ser negro não acarreta uma desvalorização global do Homem, deetectável noutros níveis de representação; é antes saliente a conotação positiva da cor negra no horizonte religioso, pela associação à categoria de Gentio. O próprio tópico bíblico da maldição da geração de Cam ( ver o extracto do capítulo XVI - cuja interpretação medieval terá uma longevidade assinalável na legitimação da escravatura do Africano - não tem sequência no discurso para a globalidade dos negros : « homens muito fortes e artificiosos em sua defesa », os guinéus são caracterizados ais poderosos que os mouros do Sara, não se lhes submetendo. Pág. 95

26. Cadamosto - viagem de Pedro de Sintra e Diogo Goes Cadamosto
Desta nova fase de relacionamento com os africanos (a partir de 1448), repercutida nas representações, são testemunho presencial - entre outros - os relatos do veneziano Alvise da Cà da Mosto (vulgo Luís de Cadamosto) - que inclui uma narrativa das viagens de Pedro de Sintra - e de Diogo Gomes (35). pág. 96

27. Cadamosto descreve a chegada dos portugueses às terras do Senegal Cadamosto Pág. 96-97

28. negros - asseio Cadamosto
« As mulhers desta região são muito asseadas de corpo, pois se lavam completamentee, quatro ou cinco vezes ao dia; e, assim, também os homens, as no comer são porcalhões, e sem nenhuma educação.São pessoas muito simples e rudes nas coisas dee que não têm prática ( que são uitas ) ; mas naqueelas em que são práticos, sabem tanto como qualquer de nós. São homens de muitas palavras, e nunca acabam de falar ; e, são todos, sempre, mentirosos e enganadores, em extremo ; por outro lado, são caritativos, porque dão de comer e de beber a qualquer estrangeiro que, de passagem, chegue a sua casa por uma refeição ou por uma noite, sem qualquer remuneração» Pág. 100

29. mercado wolof- descrição Cadamosto Pág. 104

30. recepção de Cadamosto pelo rei Kaloor (1455) Cadamosto Pág. 105

31. ilha de Arguim Cadamosto Pág. 110

32. Mandingas Cadamosto Pág. 111

33. mercado Banhiiis Cadamosto
entre o rio Cacheu e Casamansa, Pág. 113

34. Mandingas - caracterização psicológica Duarte Pacheco Peerira
« E a gente desta terra toda fala a língua dos Mandingas, e são macometas que guardam a lei ou seita de Mafoma; são vestidos de camisas de algodão azuis, e ceroulas do mesmo pano. São gente de muitos vícios, têm as mulheres que querem, e a luxúria entre eles tolalmente é comum, são muito grandes ladrões, bêbados e mentirosos e ingratos; e todos os males que há-de ter um mau, eles o têm.. (69)Pág. 116

35. comparação entre negro e indio quanto às causas da cor da pele Duarte Pacheco Pereira
« Muitos antigos disseram que, se alguma terra estivessee oriente e ocidente com outra teerra, que ambasteriam o grau do Sol igualmente e tudo seria de uma qualidade. E quanto à igualeza do Sol é verdade ; mas como quer que a ajestade da grande natureza usa de grande variedadee, em sua ordem, no criar e gerar das cousas, achámos, por experiência, que os homens dest promontório de Lopo Gonçalves ( 75) e toda a outra terra de Guiné são assaz negros, e as outras gentes que jazem além mar oceano ao ocidente ( que tem o grau do Sol por igual, como os Negros da dita Guiné) são pardos quási brancos ; e estas são as gentes que habitam na terra do Bbrasil, de que no segundo capítulo do primeiro livro fizemos enção. E que algum queira dizer que estes são guardados da quentura do Sol, por nesta região haver muitos arvoredos que lhe fazem sombra, e que, por isso, são quási alvos, digo que se muitas árvores nesta terra há, que tantas e mais, tão espessas, há nesta parte oriental d' aquém do oceano da Guiné. E se disserem que estes d' aqu'em são negros porque andam nus e os outros são brancos porque andam vestidos, tanto privilégio deu a natureza a uns como a outros, porque todos andammm segundo nascera ; Assim que podemos dizer que o Solnão faz mais impressão a uns que a outros. E agora é para saber se todos são da geração de Adão. » Pág. 119-120

CAPÍTULO IV- - Quando o sagrado se manifesta - as brancas imagens- - 129- - Antônio Luís Ferronha- - Notas- - 148- - Bibliografia- - 150

36. africanos proveta ou turgimãos Zurara Pág. 129

37. recepção cordial nos primeiros contactos André Álvares d'Almada Pág. 130

38. chegada dos portugueses a M' pinda - tradição oral Bernardo de Gallo - missionário italiano Pág. 135

39. chegada dos portugueses a Luanda - vumbi Haveau - citado por Randles pág. 135

40. Fernão Veloso Damião de Góis - crónica de D. Manuel
A incompreensão da cultura do outro funcionou nos primeiros encontros de forma negativa. Tal aconteceu na Africa do Sul, como nos relara àlvaro Velho na sua Viagem de Vasco da Gama. Os povos africanos convidaram os portugueses para ua refição. Acto que naqueelas paragens significa bom acolhimento e amizade. Quando os nautas de Vasco da Gama que desembarcaram viram a comida, recusaram-na, o que originou um conflito.
« ... Com esta familiaridade um homem honrado por nome Fernão Veloso deseejou de m companhia de alguns deste negros, a que se já fizera familiar, ir ver suas habitações, e modo que tinhamm eem suas casas, e por isso houve de Vasco da Gama, os quais mostrarão nisso contentamento o levarem consigo, e de caminho tomarão um lobo matinho com o que o festejare, e como nem a Fernão Veloso, acabado o banquete começou a caminho para onde as naus estavam. Os negros que por ventura faziam conta de o trazerem consigo mais tempo para o festejarm a seeu modo vendo-o a tornar tão de súbito, se vieram com ele até à praia, mandando aos modos da aldeia que os seguissem com suas armas, que são dardos ee azagaias, guarnecidos nos cabos de ossos, e pontas de cornos de alimárias ... (26) Pág. 147
CAPìTULO V- - O encontro de Portugal com a Ásia no século XVI- - 155- - Rui Loureiro- - Notas- - 208

41.Chegada a Calecute - mouros de Tunes de lingua castelhana Àlvaro Velho PÁG. 155

42.
incapacidade de compreender o outro civilizacional -Vasco da Gama confunde igreja hindu com igreja cristã Àlvaro Velho Pág. 157

43. Piloto anónimo - armada Pedro Álvares Cabral - costumes do povo de Calecute Pág. 159

44. destruição da feitoria de Calecute Piloto Anónimo Pág. 162

45. encontro com o povo cingalês Gaspar Correia - Lendas da India
Chegada da frota portuguesa em 1506 comandada por D. Lourenço de Almeida filho de D. Frnacisco de Almeida vice-rei da India, Pág. 170

46. conquista de Goa Brás de Albuquerque Pág, 173

47. Uma crónica cingalesa da época, o Rajavali, relata a chegada da frota portuguesa a Ceilão. Cipolla, 1967
« Sucedeu que um navio procedeente de Portugal cheegou a Colombo, sendo o rei informado de que havia no porto uma raça de gentes brancas e formosas, que usam botas e chapéeus de ferro, e nunca se detem em parte alguma. Comem uma espéecie de pedra brnaca e bebbem sangue. Se se lhes oferece um peeixe, dão por ele dois ou três ridé de ouro. Possuem, além disso, canhões que produzem um ruído semlhante ao trovão. Uma bala disparada por qualquer deles, deepois de percorrer uma légua, é capaz de destruir um castelo de mármore.» (24) Pág. 172

48. casamentos mistos de Albuquerque Cartas de ALBUQUERQUE
Após a conquista de Goa, logo casou soldados seus com « algumas mouras, mulheres alvas e dee bom parecer» que tinham sido capturadas na cidade Pág. 175

49. casamentos mistos
por volta de 1524, como escrevia um nobre português de Goa eram « todos ou a mor parte casados com negras que levam à igreja com cabelo mmui untado» (37)

50. conhecimento do oriente Duarte Barbosa - livro das Cousas do Oriente -
« no seu discurso são raros os termos depreciativos, quer dirigidos aos gentios quer mesmo aos mouros » foi feitor de Cananor (32)

51. conhecimento do oriente Tomé Pires - Suma Oriental
foi boticário e feitor das drogas em Malaca Pág. 179

52. descrição dos habitantes do Pegu Tomé Pires
Tb Duarte Barbosa o fez Pág. 180

53. atitude euricêntrica Tomé Pires
A atitude dominante de Tomé Pires face ao outro é, clara e maioritariamente, eurocêntrica ; os valores do outro são frequenteemente desvalorizados, apenas pelo facto de serem difeerentes. De uma forma geenérica, o autor da Suma apenas eencara positivamente os traços do mundo do outro que encontram oaralelo na realidade europeia. Pág. 181

54. conhecimento do oriente Domingos Pais - a descrição de Bisnagar ou Narsinga Pág. 185

55. conhecimento do oriente Diogo Lopes de Sequeira
Lembrança de algumas cousas de Bengala falava persa e tv árabe Pág. 186

56. descrição dos habitantes da ilha de Socotorá
D. João de Castro, 1541 Pág. 188

57. descrição dos habitantes de Ceilão
carta do padre Manuel de Morais Senior em Colombo, 1552 descreve os habitantes de Ceilão Pág. 189

58. perseguição aos hindus e budistas
Com o estabelecimento dos jesuítas e da inquisição, e como reflexo do aumento do fanatismo reliogioso na Europa, o ódio voltou-se para os hindus e budistas na àsia portuguesa, como se manifestara antes contra os maometanos. Pág. 191

59. descrição dos habitantes de Java Fernão Lopes de Castanheda Pág. 195

60. descrição dos habitantes de Ormuz Damião de Góis
abertura ao outro por parte de Damião de Góis, Pág. 196

61. chegada dos portugueses ao Japão O Livro das espingardas, 1606
Crónica japonesa, escrita por um monge budista Pág. 197

62. descrição do Japão Jorge Álvares
inserto na colectânea de 1548 O Livro das cousas da India e do Japão - o trabalho foi feito a pedido do padre Francisco Xavier Pág. 199

63. descrição da China Frei Gaspar da Cruz, 1570
Tratado das cousas da China publicado em Évora Pág. 201

64. caracterização do povo chinês Gaspar da Cruz, 1570
Tratado das cousas da China publicado em Évora Pág.203

65. RRR - formas do encontro - religiosidade -hostilidade para com os muçulmanos, 61. intolerância progressiva para com os denominados gentios Pág. 206

66. brancura da pele
no que respeita à raça, é muito clara a valorização atribuída nos textos portugueses à brancura da pele. Os portugueses tinham sem dúvida preconceitos para com os povos de pele mais escura Pág. 207

CAPÍTULO VI - - O encontro inesperado
Parte I: As primeiras imagens do Brasil- - 215- - António Luís Ferronha- - Notas- - 252- - Bibliografia- - 256

67. funções do chefe indio R. Lowie
um fazedor de paz ; ser generoso com os seus bens ; tem que ser um bom orador Pág. 228

68. alteridade - Brasil
Numa tipologia das relações, entre portugueses e ameríndios, os suportes da problemática da alteralidade podem sintetizar-se da seguinte maneira :
1. através de um julgamento dee valor : o suporte axiológico. Para os portugueses, o outro é bom ou mmau, etc, ;
2. o contacto pressupóe uma aproximação e simultâneamente um distanciammento ( quando a permanência se metamorfoseeia na exploração das riquezas materiais ) : o suporte praxiológico ;
3. finalmente, quando esta presença implica conhecimento ( estuda-se a língua tupi, comparandio-a ao grego ou à biscainha para melhor evangelizar, conhecer os costumes ) ; ou ignora-se a identidade do outro ( quando se afirma que não têm religião, ou desconheceem a agricultura) : suporte epistémmico. Pág. 251
Parte II: A visão do índio brasileiro nos tratados portugueses de finais do século xvi- - 259- - Rui Loureiro- - Bibliografia- - 284

69. tratados sobre as gentes do Brasil - último quartel do século XVI
Pêro de Magalhâes de Gândaro - História da Provincia de Santa Cruz, 1576
Fernão Cardim - tratados, c. 1585
Francisco Soares Padre - coisas notáveis do Brasil, 1590

70. resumo - História da Provincia de Santa Cruz Pêro de Magalhâes de Gândaro
é composta por três núcleos informativos distintos : materiais sobre a geografia do Brasil, núcleo quantitativamente dominante, relação de acontecieentos da história recente da colónia e descrições de carácter antropológico sobre o indio brasileiro Pág. 260

71. assimilação linguística inversa - lingua tupi Fernão Cardim
«Em toda esta província há muitas e várias nações de diferentes línguas. Porem, uma é a principal, que compreende algumas dez nações de indios: estes vivem na costa do mar e em uma grande corda do sertão. Porém, são todos estes de uma só língua, ainda que em algumas palavras discrepam, e esta é a que entendem os Portugueses. É fácil e elegante e suave e copiosa: a dificuldade dela está em ter muitas composições (comparações). Porém, dos portugueses, quase todos os que vêm do Reino e estão cá de assento e comunicação com os indios a sabem em breve lempo, e os filhos dos portugueses cá nascidos a sabem melhor que os portugueses, assim homens como mulheres» (Do Princípio, PP. 194--195.)Pág. 265

72. lingua tupi Francisco Soares
«É a sua língua muito copiosa, e não há coisa a que não tenham posto nomc, como dc crvas, árvorcs, ctc. Sua composição discrepa pouco da latina e regras» (Coisas, (2) p. 150.) Pág. 269

CAPÍTULO VII- - A lconografia do encontro- - 289- - António Luís Ferronha- - Notas- - 303- - Bibliografia- - 305

73. negros em Portugal Münzer
Os africanos estavam espalhados por Porlugal e no dia-a-dia traziam para a Sociedade portugucsa da altura aspectos da sua cultura. Jerónimo Münzer (Itenerarium, 1484-94) refere quenuma visita a uma grande ferraria com muitos fornos, ondee se fazem âncoras colubrinas e outras coisas respeitantes ao mar, eram tantos os trabalhadorees negros junto dos fornos que nos poderíaos supor entre os ciclopes no centro do vulcão». Pág. 296

74. expansão para Africa - primeira fase
durante breves instantes o ocidente toma África em plena consideração, admite a difeerença de cor. Recordemos que àfrica neste período não foi penetrada, mas simplesmente contornada. Pág. 297

75. marfim lavrado Pina
Rui de Pina na sua Crónica a D. João II, com relação ao Congo (p. I59), afirma :
«O presente do dito rei do Congo para El-Rei, era dentes dee alifantes e coisas de marfim lavradas, e muitos panos de palma bem tecidos ee com finas cores.P+ag. 301

76. Mayaka - arte africana
Os Mayaka, principais vítimas desse tráfico na rcgião dc Angola, começam a identificar na sua artc o escravo, o aristocrata, o colono e o padre como figuras da história, ganhando cstas um humor crítico. E vão fixar o lado grotesco dos tipos sociais, em particular os chefes administrativos europeus e os seeus auxiliares africanos, etc. O mesmo acontecendo à cultura ambaquista de crítica e retrato social e à songo, também retratando o colono. Pág. 302

CONCLUSÃO- - 307- - António Luís Ferronha
Conclusão

77. História assocciada a migrações e colonizações
A História não é mais do que a História de sucessivas migrações e colonizações. O Mar foi para os portugueses essa grande estrada de comunicação / contaminação cultural, eso para os que, como Spengler, defendem que as culturas são incomunicáveis de comunicação/contaminação cultural, mesmo para os que, corno Spengler, defendem que as culturas são incomunicáveis.
Mas a História ultrapassou o Mar e obrigou os portugueses a abandonarem o lastro do seu passado, enquanto imposto aos outros.
Como Portugal, acabámos a nossa aventura neste puzzle que não tivemos a vcleidade dc completar. Viajámos com os navegadores de antanho, saltámos de olhar para olhar numa metamorfose biológica/ /civilizacional, esse grande arco-íris cultural do tempo do primeiro encontro. Tivemos os mesmos anseios, desilusões e abandonos no barco, mas também aqui e ali o gozo de espreitar no buraco da fechadura da História os personagens dessa época.
Convidámo-lo a viajar, a meditar, a criticar este caleidoscópio de ideias, para ver melhor, para construir o presente em função do futuro e não como uma secreção do passado, que deve ser a nossa grande lição.

78. educação - o que deve ser Valéry
O essencial da educação é a do «espírito»... é preparar o homem para ser o que ele nunca foi, como dizia Paul Valéry.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

5 263 - Os Navios negreiros não sobem o Cuando, Domingos Lobo

Índice

Os estrangeiros 13
A primavera marcelista em N´Riquinha 25
Andanças em terras mansas 45
Desenrascar, dizem eles 63
Quando o tropa se instala entre os colonos modelo 77
Em Serpa Pinto, não vás à puta do leva e traz 91
Retrato do soldado quando ferido 103
Noites do Mussende 123
A patroa 133
A mosca tzé-tzé 141
Faltaram vários + um 149

*-*-*-*-*-*-*-*-*-*

Mata da Kapua

A mata da Kapua é a única zona da floresta densa na parte mais a leste do Cuango-Cubango, mesmo assim é um simulacro das florestas a norte. Mangue, dendém, baobás velhos e já secos acompanham a picada que descreve um arco em volta da lagoa. No centro, onde a picada deixa de acompanhar a lagoa, as árvores fecham-se, o capim cresce alto, as raízes velhas destroem os caminhos, os camiões atascam de dez em dez metros, as copas das árvores fecham-se tapando o sol.

Pág. 69 e 70
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Quando a tropa se instala entre os colonos modelo

Administrador - coisa fina

1 - Isto agora é outra loiça, pia mais piano. Colonos fresquinhos e bem falantes, um administrador - coisa fina, de primeira água - prole respectiva com muitos maiatos para as tarefas caseiras.

Pág. 77
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Administrador, pessoa simpática

À parte estas incursões a Serpa Pinto - no estrito cumprimento do dever -, o administrador é um tipo simpático, bem palrante, a provar que os fachos também têm alma

Pág. 80
*-*-*-*-*-*

A filha do administrador

Mas, se todos estas atributos ( e outros que tenho pudor de trazer a domínio público) não bastassem para elevar a nossos olhos a figura ímpar do administrador, um só lhe bastaria para o tornar, para sempre, credor da nossa mais firme admiração e respeito: a filha. É que, caro leitor, o administrador tem filha. E nova. E sã. E escorreita de formas. E em idade de começar a saber o que custa a vida.

Pág. 81

sábado, 19 de janeiro de 2008

5262 - O Vélo d' Oiro, Henrique Galvão

5262 - O Vélo d' Oiro, Henrique Galvão

Capítulo I - Tentação de África

1. - Tentação de ir para África

Tinha eu vinte e sete anos e estava empregado no Banco do Crédito Agrícola, quando me inquietou, pela primeira vez, a tentação da África.

Fôra por lá que meu avô juntara a fortuna que eu depois consumi em estúpidas doidices e, à África também se tinha aferrado meu primo direit Vasco Benevides-depois duma deportação por motivos políticos e muito desarrumo na vida que levara em Portugal.

Pág. 5

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2. - Localização da mulola do Tchimporo

«Existe cá para o Sul uma região misteriosa, à beira das terras do Cuanhama, conhecida pelo I nome de Mulola do Tchimporo, a cujo interior nenhun-ia alma branca conseguiu ainda chegar. «Dizem uns que é terra árida, tôda de areias I soltas e ressequidas, e palpitam outros que, no in-

terior, deve ser povoada e abundantemente ves-

tida de rica vegetação.

«Resulta o mistério da dificuldade de lá se chegar, pois a água falta e não é possível levar automóveis através do areal imenso - e muito menos carros de tracção animal, pois todo o gado

morreria de sêde.

«Tinha eu ouvido falar da região, como tôda a gente, mas nada, até há algum tempo, despertara em mim o desejo de a conhecer.

«Mas, vai em seis meses, e por forma que a seu tempo saberás e que seria muito longa de narrar agora, adquiri a certeza física de que há estonteantes abundâncias de oiro no interior da

mulola.

«Oiro nativo, meu querido Rodrigo, oiro quási puro, que mais trabalho não dá do que meter-lhe a picareta e carregá-lo nos carros! Um preto ganguela, que conseguiu atravessar a região e descobrir caminho provido de água, trouxe-me infonnações e provas das quais não é possível

duvidar.

«Não julgues que são fantasias minhas; sou o mesmo homem que era, de natural desconfiado e pessimista ; não me convenci sem fortes razõesmas, agora, estou convencido e bem convencido, com dados que não enganam.

«Se confias em mim e estás disposto a vir com o teu capital, indispensável para organizar convenientemente a viagem à Mulola, que fica a mais

de seiscentos quilómetros daqui, telegrafa e mete-te a cantinho, pois nunca um homem terá marchado para a Fortuna com tantas probabilidades de a alcançar.

«Quero, no entanto, prevenir-te a tempo de que a aventura não é isenta de perigos nem de fadigas e que é preciso que venhas disposto a tudo. Doutra forma, mais valerá ficares.

«Mas vindo ou ficando, deverás guardar o maior dos segredos. És a primeira pessoa, depois de minha mulher, a quem faço esta revelação. E só de fazê-la fico em tremuras, não vá a carta perder-se e espalhar-se o segrêdo.»

Pág. 12 a 14

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Capítulo II - Chegada a Moçamedes

3. - Descrição de Moçamedes vista do mar

O Angola ancorou em Mossâmedes por volta das onze horas do dia 13 de Dezembro - mau dia !

O pôrto era uma grande planície de aço polido em infinita tranquilidade. Apenas, de longe em longe, os cardumes de sarrajão o embaciavam com manchas escuras e inquietas.

A terra, com o seu fundo amarelo de areias, as falesias depiladas, sob aquele sol estorricante do verão africano, parecia arder em estremecimentos de febre. Todo o semicírculo, amplo e gracioso, que vai do Saco à Fortaleza, dava a impressão dum grande brazeiro, donde se evolavam as temperaturas abafantes que rarefaziam o ar.

A cidade, coberta das vistas pela fita verde do jardim público - uma mancha esguia na palidez da paisagem - sesteava à sombra magra daquela pobre frescura vegetal. E da banda das fábricas e pescarias, num plano inclinado de ter-

ras sedentas, as casas acachapadas e os barcos de quilha ao léu, tinham a mórbida quietação dos imolados.

Para além da cidade, a paisagem lívida do Deserto a perder de vista-uma grande labareda de tons amarelos que se confundia com um céu agitado por cálidas pulsações.

Pág. 15 e 16

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4. - Chegada ao porto de Moçamedes

A África!.. Estou em África!

À proa, os homens da manobra, afogueados e sujos, vertiam negras bagas de suor.

Em volta do paquete, ancorado numa imobilidade letárgica de grande paquiderme, acudiam gasolinas nervosos, carregados de gente barulhenta, que se consumia em gestos e dizeres para os passageiros debruçados na amurada.

E foi essa gente que ria, que não trazia nas faces o livor macabro da bilis derramada, que eu via semelhante a um branco prolongamento das fisionomias que tinha deixado em Lisboa, quem me deu ânimo e fé para esperar que nem tudo na África fôsse assim, como eu deduzia das agressões do calor e da amargura da paisagem.

Dum gasolina, que por fim atracou, saltaram senhoras garridas, muito ataviadas de modas europeas, muito prognósticas e desempoeiradas, umas para receber conhecidos, outras para mercar adornos e meias no barbeiro de bordo.

E logo a paisagem do spardeck se modificou. Parecia uma feira alegre e movimentada, com gritinhos femininos e frases rápidas, corridas nervosas e abraços amplos.

Pág. 17

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5. - Deserto de Moçamedes como um oceano de areia

Olhei outra vez para terra em busca de confôrto - mas vi-a ainda lívida, esbrazeada, espécie de cais dum outro oceano: O Oceano imenso das areias, que nem me palpitava onde tinham fim!

Pág. 18

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6. - Desembarque em Moçamedes

Desembarquei depois do almôço, com duas malas de beliche e um baú verde de fôlha, na velha ponte-cais da cidade, entre uma senhora gorda que vinha de Benguela e'um tropa tisnado ue se destinava ao interior

Pág. 19

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7. - Moçamedes: Jardim, ruas, pianos

Enfiei pelo jardim em cata duma sombra onde refrescasse o corpo e descansasse os olhos maguados por violentas agressões de luz, e atirei-me para um banco, derreado por funda melancolia.

Pela álea solitária, apenas umou outro negro de tronco brunido por transpirações violentas, com serapilheiras sórdidas em volta dos quadris, ou pretas com os filhos às costas e enfusas na cabeça, passavam em ar de mândria, silenciosamente.

As fôlhas verdes estavam cobertas de poeira, como se proviessem de longas jornadas, e, duma

bica que alimentava um lago redondo, no meio do jardim, vinha um som cantante e fresco de água a correr, que na continuação, entorpecia e adormentava como as rezas monótonas de velhas fanáticas.

Cerravam-se-me os olhos num torpor de febre e sentia que o crâneo se me esvasiava como uma casa que a noite vai abafando em trevas. Em breve, apenas ouvia o zumbido cálido das tardes encalmadas e apáticas e a melopeia adormecedora das águas.

Lembro-me que sonhei com grandes montanhas d'oiro e que eu as acometia freneticamente com uma picareta que se embotava e não conseguia partir a rocha. Depois, sem transição, vi-me num areal enorme, enterrado até aos joelhos, cheio de sêde, afogueado por angústias inarráveis.

Acordei inundado de suores, com a bôca sêca e os olhos esgazeados, mas senti-me aliviado ao ouvir outra vez o palrar fresco da água e vendo os ramos pendidos nas árvores.

Num quiosque, em frente da Alfândega, alguns encalmados vestidos de branco, chupavam cervejas intermináveis.

A água cantarolava sempre na bica magrinha do jardim.

Sentia os lábios grossos e grandes formigueiros de indolência pelo corpo - uma grande fiacidez em todos os nervos motores.

E avancei para o quiosque, onde bebi a minha primeira cerveja africana - o grande vício, o grande veneno dos europeus que vão à África.

já os automóveis corriam pelas ruas e a cidade se mostrava desentorpecida e movimentada.

Às janelas ensombradas acudiam meninas garridas, com um ar lisboeta da rua dos Douradores, muito bem rebocados ; das lojas saíam figuras europeas que desmentiam a idea que eu fizera da África.

Percorri as ruas da cidade, enormes, geométricas, paralelas - três ruas de casas baixas ' que me lembraram muitas vezes as moradias dalgumas cidades do Algarve.

De vez em quando chegavam-me aos ouvidos a música dum Fado ou as notas eléctricas dum Charleston americano, tangidos em pianos desafinadotes.

imuitos pianos há em Mossâmedes! Cantavam em tôdas as ruas, adivinhavam-se na penumbra que ficava para além de certas janelas!

E pela tarde, com menos calor e bem atestado de refrescos, já a cidade me parecia mais simpática e acolhedora, com a sua fisionomia europea, as suas casas algarvias, as suas meninas dengosas e os seus pianos desafinados.

Pág. 19 a 21

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8. - Seca de peixe na praia de Moçamedes

Por baixo de nós as barcas de pesca despejavam abundâncias prateadas de peixe e nos espaços livres, entre as fábricas e os estaleiros, secavam ao sol largos estendais de peixe esbarrigado.

Pág. 26

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Capítulo IV - Reunião com o Mandobe

9. - Reunião com o Mandobe

Sentámo-nos. O Mandobe acocorou-se diante de nós e contou a sua história - uma história longa, cheia de derivações, num português destrambelhado e confuso, que o Vasco ia esclarecendo e que eu escutava tomado por ânsias e curiosidades.

Foi o primeiro capftulo do nosso romance do Oiro:

O Mandobe era um pastor ganguela, que vivia para as bandas do Menongue, na paz da sua senzala e na obediência animal das suas mulheres.

Pág. 36

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10. - Rumo a seguir para a Mulola do Tchimporo

Combinaram então, para se furtarem a vistas

indiscretas, seguir pela margem direita do Cubango e tomar depois, tangencialmente, pela Mulola do Tchimporo, até à fronteira da Damaralândia.

Pág. 38

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11. - Gimuto e o reconhecimento do oiro

E o Gimuto descobriu que os veios amarelos eram de oiro.

Êle conhecia-o bem desde que andara com uns ingleses, na região de Cassinga, onde bastas vezes o tinha visto. Simplesmente, enquanto em Cassinga as pedras tinham apenas ligeiríssimas incrustações, ali, o oiro formava veios maciços, compactos, abundantes.

Pág. 41

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Capítulo V - Preparativos para a jornada à mulola do Tchimporo

12. - Rosa acompanha o cozinhiero Janota

Teimou o janota, o tal cozinheiro, em fazer-se acompanhar pela mulher - uma elegantíssima matrona, de abundantes tranças e muito ataviada de missangas e manteiga. Não houve outro remédio senão ceder. Ainda julgámos que desistiria porque estava para ser papá, mas a Rosa deu-lhe hoje o seu último filho, de modo que está amanhã pronta para a viagem.

Pág. 54

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Capítulo VI - O meu diário (de 28 de Março a 2 de Maio)

13. - Morte do filho de Janota

30 de Março

Morreu esta tarde o filho do Janota. A Rosa aina não deixou de soltar brados de dor, apenas interrompidos para perguntar ao pequeno cadá-

ver quem foi o autor do malefícios De resto, tam-

bém o janota e os outros negros afiançam que a

morte foi produzida por feitiço.

Pág. 65 e 66

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14. - Acampamento no Capelongo

1 de Abril

Acampamos no Capelongo.

Por baixo de nós, o Cunene, como uma grande chapa de aço polido, neste fim de tarde dourado e calmo, corre tranqüilamente. Em volta dos bois as carraceiras brancas e elegantes parecem lírios de que a paisagem se enfeita.

Amanhã passaremos na jangada da circunscrição para a outra margem.

O acampamento, hoje, neste cenário largo e doce, entre as casas da circunscrição e um cotovelo metálico do rio, tem maior encanto e mais pitoresco. O caniço das margens, alto, compacto, com imagens delicadas na superfície espelhenta do Cunene, é uma cabeleira suave que contrasta com a grenha hirsuta das matas que temos atravessado.

A-pesar-das casas - uma escassa meia dúzia

- que há em volta da circunscrição, esta é bem uma paisagem de África. Sinto profundamente a impressão do isolamento e da distância. Cada um de nós é uma ilha - juntos, somos um pequeno arquipélago, arredado num canto do Mundo. Tenho uma noção fantástica do ponto do globo onde me encontro.

Pág. 67 e 68

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15. - Soba de Cassinga

6 de Abril

O soba de Cassinga veio ter connosco ao acampamento. Trazia duas galinhas de presente e vinha-nos pedir que lhe matemos um leão que lhe anda a desvastar o gado. Ainda ontem, à noite, entrou no sambo donde levou um garrote, que foi encontrado a mais de dois quilómetros, meio devorado. E o soba descreveu um lindo bicho, de juba loira e arrogante - de-certo o mesmo que ante-onteffi ouvimos rugir.

Pág. 84

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16. - Morte do leão

Passava das nove horas. De todos os lados apareciam pretos curiosos - dir-se-ia que alguns surdiam do chão por alçapões misteriosos. Andavam como sombras, sem ruído, todos de olhos muito abertos.

Pág. 94

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17. - Biografia de Estela

O seu drama de mulher branca, nestas lonjuras de África, é bem um drama africano.

Filha dum americano, empregado superior da

Companhia do Petróleo, e duma portuguesa, a Estela teve nos primeiros anos da sua vida, por junto, tôdas as alegrias e tôdas as esperanças que a vida tinha para lhe conceder.

Menina mimada pelos pais, filha única dum casal bem instalado na vida, retouçou em pura felicidade, entre a boa sociedade do Pôrto, até aos doze anos.

Um dia o pai teve que vir para Angola, como pesquisador de petróleo, numa comissão choruda e tentadora. Trouxe a mulher, a filha e uma criada - a Marta - que assistira ao nascimento da pequena e lhe era imensamente dedicada.

Instalaram-se todos em Maquela do Zombo, nun-la casa desmontável de linhas americanas, que tinha um jardim em volta e dominava, do alto em que estava assente, a paisagem exuberante do Congo.

Pág. 96 e 97

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18. - Marta assediada por Alves

Seis meses depois a Marta era assediada pelo Alves, um fumante bem apessoado e de cabedais, que ela distinguiu entre todos os esfomeados de mulher que a perseguiam. Casaram e foram viver para Cabinda, onde constava que eram felizes.

Pág. 97

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19. - Estela no Capelongo

Encontrou, todavia, a Estela, no Capelongo, um viver mais tranquilo e arredado. O isolamento em que estava o povoado e a fama de mulher

esquiva e arisca que tinha criado, juntamente com umas cacetadas com que o Alves afastara um pretendente mais teimoso, puseram-na em sossêgo. Adormeceu um pouco a sua irritabilidade latente e os meses foram passando em silêncio e calma monotonia.

Além disso, o amor inalterável da Marta, cheio de delicadezas e transigências, adoçava-a e oferecia-lhe permanentemente o sentimento e a realidade dum afecto que não era suspeito, duma coisa boa entre tantas ruins que a perseguiam e que ela odiava profundamente.

Pág. 101 e 102

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20. - Chefe de posto de Cafima

11 de Abril

Hoje, antes de partirmos, almoçámos com o chefe de pôsto. O Vasco não queria ir para não levantar suspeitas sôbre a presença duma mulher branca no combóio de homens que se destinam a Cafima, mas não teve outro remédio. Se não fôssemos ao pôsto, teria o chefe vindo ao acampamento, onde de-certo descobriria a Estela.

Fomos. E ainda bem que fomos!

A sede do pôsto é uma casa de adobe com telhado de capim. Tem uma varanda em volta e está erguida a um metro do solo, sôbre colunelos de pedra, por causa da salalé. Com dois barracões que tem à ilharga constitui todo o povoado, pois a antiga missão religiosa desapareceu, segundo dizem, por causa do clima que é hostil e traiçoeiro.

Nesta casa vive um homem de cêrca de trinta anos, emagrecido e gasto, com a pele curtida pela mataria e pelo sol, a esclerótica amarela, os matares salientes e os beiços gretados. Já teve duas biliosas e vive só. Passam-se semanas que não vê um branco, recebe correio de três em três meses e mais, ganha uma miséria e é - dizem - um funcionário exemplar!

riste homem tem, sob a sua administração e guarda, uma região quási tão grande como a província do Algarve, povoada por habitantes pobres, a quem a fome visita de vez em quando, e defendida por um clima rigoroso e cruel. É éle quem administra a Justiça, que atrai os indígenas, que os ensina a cultivar, que cobra o imposto, que abre estradas e carreteiros, que constroi as pontes e os aterros, que faz a escrita do pôsto - é êle, enfim, o representante e o símbolo da senhoria de Portugal nestas lonjuras incomensuráveis.

De cima mais de-pressa recebe censuras e apertões que louvores e incitamentos - de baixo surgem-lhe dificuldades de tôda a espécie, que tem de dominar, quási sem recursos. O Mundo ignora que êle existe e os seus heroismos, as suas valentias, a sua coragem persistente não têm as formas teatrais que conduzem à glória. É uma ilha. Amanhã, outra biliosa levá-lo-á talvez e o seu lugar está reservado na vala comum dos esquecidos. As próprias coisas notáveis que fizer

serão florões para adornar a glória doutros mais elevados em hierarquia.

Pois, êste homem espectrificado, que teve uma ale-ria quási infantil em dar-nos de almoçar, não nos falou senão dos seus projectos de trabalho, das obras que tinha empreendido, no aperfeiçoamento das suas estradas, na disciplina dos seus indígenas - de tôdas essas pequenas coisas que são a glória autêntica de Portugal, que explicam a nossa História e que prometem o nosso futuro.

E eu que tenho ouvido tantos discursos patrióticos para exibir oradores, que tenho visto subirem foguetes entre a vozearia dos vivas, que decorei tôdas as fórmulas do patriotismo verbalista, tive de encontrar, em Mossâmedes, o Pompílio e, por estes matos, os heróis de que a História não rezará, para compreender a qualidade da minha raça e encontrar uma razão da Razão para o meu orgulho de ser português.

Em volta da nossa mesa de almôço, rilhando o churrasco indígena e bebendo o vinho da nossa terra, eu venerei aquele homem que trazia a morte nos olhos e que não tinha outra ambição manifestada senão a de ser útil ao seu País - o País que não o conhecia e que vivia das virtudes de tantos como êle.

Ainda bem que fomos almoçar com o chefe de pôsto. Oxalá éle viva quando regressarmos da Mulola com o nosso oiro e a nossa generosidade.

Pág. 106 a 108

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21. - Notícias de um branco na Mulola do Tchimporo

16 de Abril

O Vasco foi hoje visitar uma libata de cuanhamas e voltou preocupado. Ouviu falar da passagem dum branco cujos sinais coincidem com o homem que o Mandobe viu na Mulola. Não trazia carros nem serviçais. Viajava a pé'com uma preta e don-nia onde calhava.

Preguntou se êle era inglês, mas os pretos responderam:

- É branco!

Trata-se por conseqüência dum português. Para os indígenas o branco é só o português. Os outros são o ingrez, o aremão, etc.

Pág. 111

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22. - Rasto de elefantes

O Mandobe estudou as pègadas e disse que eram de fêmeas. A pègada dos machos é maior e mais redonda.

Pág. 112

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23. - Cuanhamas

Os cuanhamas são negros magníficos, muito diferentes das outras raças que tenho visto. Altos, esguios, elegantes, de expressão altiva e agradável, são bem os descendentes duma raça aguerrida de guerreiros agitados e irrequietos. Muito mais inteligentes e civilizados que os outros povos vizinhos, domina-os ainda o espírito da aventura e da vagabundagem que assinala as raças gentias de mais poder.

Pág. 113

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24. - Sanzala do Ganipacho

Tôdas as cubatas são iguais na forma - apenas a do Ganipacho é maior.

A entrada principal da cubata, como é de uso entre os cuanhamas, fica voltada para o nascente e é fechada por uma porta em orgão, por onde entram e saem em boa camaradagem, os homens, os bois, os porcos e as galinhas. Além desta porta existe uma outra, junto ao curral do gado, mascarada or arbustos.

Pág. 115

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25. - Mulheres e gado do Ganipacho

Foi depois disto que o Ganipacho resolveu não casar outra vez e acabar os seus dias na companhia das quatro consertes que já tinha. De resto, quatro mulheres e mais de duas mil cabeças de gado eram já uma bonita fortuna.

Pág. 116

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26. - Mandume

Remontámos aos tempos áureos da independência dos cuanhamas-independência de facto, pois só platónicamente, de direito, as suas terras

pertenciam a outros. Eram então os cuanhamas

um grande povo militar, aguerrido, indomável, que viera de chefes heróicos até ao Oghamba Mandume, o último que levantara o Cuanhama contra o domínio português.

Pág. 118 e 119

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27. - Constituição das hostes cuanhamas

Estavam todos os guerreiros - e guerreiro era todo o homem dos quinze aos sessenta anos agrupados em tangas, verdadeiros batalhões de cem homens, que o bater da cua, em sinal de rebate, rapidamente juntava. Um lenga, chefe de guerra, comandava quatro, cinco e mais tangas. Seiscentos homens tivera o lenga Ganipacho sob as suas ordens, quando tinha quarenta anos.

Pág. 119

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28. - Adoração de Cupido

22 de Abril

Quando hoje me aproximava da abata do Ganipacho deparei com um espectáculo imprevisto. Numa clareira da mata, mais de vinte mu leques de ambos os sexos, o mais velho dos quais não devia ter mais de dez anos, completamente nus, adoravam Cupido segundo o ritual em voga em todo o mundo.

Espantados com a minha presença fugiram, a ganir desesperadamente, não sei se enfurecidos pela interrupção, se amedrontados.

Com a minha ingenuidade europeia fui con-

tar a cena ao Ganipacho, entendendo que a minha denúncia era moral e cabida, pois visava a reprimir a precoce preversidade dos miudos.

O Ganipacho ouviu, com o ar de quem ouve coisas banais, e observou apenas, com certo desfastio :

- É para aprender senhor!

Começo a compreender porque é tão raro encontrar uma preta adulta sem um filho às costas. É da aprendizagem!...

Pág. 120 e 121

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29. - Rasto de elefantes

O Vasco preguntou:

- Ódiripi óno jamba? ( (onde estão os elefanfes ?)

Não os tinham sentido naquela noite. Era preciso ir rio abaixo, ern c-ata dum rasto fresco, e segui-lo depois.

Pág. 123

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30. - A escrita das pegadas

Vamos seguindo os rastos.

O passeio das enormes feras deduz-se tão claramente, tão precisamente, como uma fórmula algébrica: Chegaram ao rio pelas nove horas da noite, depois dum passeio tranquilo de vagabundos. Eram cinco fêmeas e um macho. Estiveram largo tempo a banhar-se regaladamente, ora nadando nas águas do «poço», ora chapinhando nas margens como praístas desenfastiados. Depois aproveitaram a casca rugosa duma mulemba para se coçar vagarosamente. E a árvore enorme, massagista improvizada, devia ter os-

cilado num murmúrio lamentoso de ramos, sob a pressão gigantesca de algumas toneladas de carne animada por movimentos voluptuosos.

Cêrca das quatro horas da madrugada deviam ter deixado o rio, pingando largas bagas de água, bem dispostos, felizes. Ali mesmo comeram os primeiros ramos - os mais tenros - lançando a tromba por entre a folhagem, farejando, escolhendo, arrancando depois num movimento brusco a parte mais apetitosa e macia. Mas não param. Tôda a floresta é um grande restauram de lista variadíssima. Por vezes é cerrada, áspera, densa e emaranhada. Êles abrem a sua estrada, cilindrando-a, sem esfôrço, em pura e fácil fôrça viva.

No alto duma árvore há vagens apetitosas, ainda húmidas de orvalhos. Erguem a tromba para avaliar da sua delicadeza e, se lhes apetecem, não importa que elas tenham nascido em altos ramos, numa árvore robusta, com mais de meio metro de diâmetro na base e meio século de existência entre as mais. Encostam a cabeça ao tronco e empurram quási sem esfôrço. A árvore range, lamenta-se por todos os ramos e cai ferida de morte. O elefante tem as vagens ao alcance da tromba. Escolhe, come umas tantas e passa adiante, retomando a sua marcha vagabunda de fantasista, a cabeça nunca agitação incessante, umas vezes magestoso e inteligente, tomando ventos, outras vezes bonacheirão e desenfastiado.

Vamos seguindo o rasto, que nos vai contando, na sua grafia bizarra, a fantasia das feras. já o sol nos cai pesadamente nas costas -o tronco dos pisteiros parece envernizado, mas a sua marcha é sempre ágil, ritmada, elegante.

A mata vai-se tornando mais densa. Pouco a pouco, à medida que avançamos, a cabeleira verde dos capins, vai dando logar à grenha hirsuta e irritante das matas de espinheiros.

No terreno, já endurecido nesta quadra do ano, a perseguição torna-se mais difícil: os rastos fogem, somem-se e escapam, por vezes, à vista mais apurada. Outras vezes há rastos vários que se cruzam. É preciso descobrir, entre o de ante-ontem, o de ontem à tarde e de hoje, aquele que nos convém. A marcha toma-se assim mais vagarosa e fatigante, por causa do dispêndio de atenção a que obriga.

Um pouco mais longe cerram-se mais as espinheiras. Só com infinitos cuidados conseguimos defender-nos da agressão irritante daqueles espinhos aduncos que nos rasgam a roupa e a pele.

O vento que ia de feição - isto é, soprando contra nós - torna-se instável, leviano, consentindo que as feras nos vão pressentir, a algumas centenas de metros, e se ponham em fuga. Acendemos cigarros uns sôbre os outros, nervosamente, para verificarmos a direcção do vento. Temos mais de vinte quilómetros andados e sentimos que o nosso esfôrço se vai inu izar por causa

daquela brisa quási imperceptível. Prevemos já o regresso ao acampamento, arrasados, tristes, sob os olhares irónicos do janota.

Mais umas dezenas de metros e a decepção confir.rna-se. Umas passadas mais largas, a impressão da pègada sôbre a ponta do pé, dizem-nos, com a clareza duma frase, que o animal fugiu desordenadamente. Aquele é o rasto da corrida, bem diferente das pègadas tranquilas dos seus passeios de vagabundo.

A poucos metros descobrimos, ainda quente, a cama da sesta.

É a decepção. Aqueles elefantes não se deterão tão cedo, nem nós os conseguiremos alcançar.

Parámos desalentados. Os pisteiros deram ainda uma volta que desiludiu as últimas esperanças.

Pág. 124 a 127

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31. - Desculpa de Janota por ter perdido o almoço

Increpado por ter perdido a carga - cesto do almôço e alguns pratos de alumínio - afiançou: - jamba comeu tudo, siô. Comeu mesmo!

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32. - Distirbuição pela população da carne do elefante morto

Surdiam de todos os lados, armados de catanas afiadas, silenciosos como sombras, atrás da notícia de carne abundante, que rapidamente se tinha espalhado. Eram em tal número e aumen-

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33. - Corpo de Estela versus as Vénus negras

Olho para o seu corpito frágil, com os ombros descaídos, os braços quási lineares, para a sua face cavada e para a sua beleza lirial mas macerada, e, entre a piedade, a comiseração, o dó que me inspira, não lobrigo sombra de atracção física ou chama de desejo. Mais me têm impressionado certas Vénus negras, de carnes túrgidas e linhas triunfantes, embora a escorrerem manteiga rançosa e repelente, e que são menos esquivas e complicadas.

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34. - Pai de Ganipacho e a travessia da Mulola do Tchimporo

O Ganipacho assegurava que o pai do seu pai tinha atravessado a, Mulola, com duas tangas de guerreiros e que sempre tinha encontrado água nas cacimbas que abrira. Nem êle nem ninguém sabia que trilho tinham seguido, mas era positivo que marcharam do Bié para Namakunde, devendo pois ter atravessado a Mulola numa direcção sensivelmente Norte-Sul.

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35. - Acampamento entre o Cuvelay e a missão da Mupa

26 de Abril

Acampámos entre o Cuvelay e a Missão religiosa da Mupa, debaixo duma linda figueira brava, de copa hospitaleira e maternal - um suntuoso palácio de fôlhas erguido na planura de capim. De longe parece uma ave enorme, na atitude de acolher os filhos debaixo das azas.

Pág. 141

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36. - Missão da Mupa

A Missão a Mupa forma um largo quadrilátero de casas compridas e brancas, com telhados à portuguesa, e varandas coloniais em volta, que fecha um terreiro alegre e amaneirado, de suave frescura. Um dos lados do quadrilátero é formado pela igreja pobrezinha, onde os pretos, quando cheguei, rezavam a oração da noite. Nas outras casas ficam as oficinas, farmácias, escolas, refeitório, habitações, armazéns - tôdas as peças engenhosas e cuidadas de que precisam uma escola, uma oficina, uma lavoira e uma igreja, a mais de quatrocentos quilómetros de terras de recursos!

Por detrás da igreja ficam a horta e o pomar - milagres de vegetação arrancados a estas terras bravias - e os sambos do gado.

Pág. 142

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37. - Padre Mateus da Missão da Mupa

Recebeu-me e fez-me as honras da casa o padre Mateus, uni vèlhinho de barbas patriarcais e olhar doce, desembaraçado nos gestos e nos movimentos, muito simples e agradável dentro da sua sotaina branca de missionário. Tem a pele aperganúnhada e rugosa-, os cabelos ralos e desencan-iinhados, o corpo cüiciado por torturas do clima - mas os seus olhos são claros e vivos como os das crianças.

Com êle vivem e trabalham na Missão mais dois missionários. O mais novo tem vinte anos e chegou há seis meses, o mais velho - o Padre Mateus justamente - tem sessenta anos e chegou há quarenta. E em quarenta anos foi uma vez à Europa!

A sua expressão satisfeita e feliz, a sua tranqüilidade impressionante, o seu olhar puro de criança foram inteiramente ganhos em lonjuras como esta a desbastar selvagens e a revelar-lhes o aspecto superior da senhoria dos brancos.

Ao mesmo tempo que outros brancos vieram ocupar pelas armas e dominar com a guerra, em cata de glórias terrenas, mercês da Pátria e cumprimento de deveres, veio êle conquistar com o amor e a caridade, em cata do agrado de Deus! Os primeiros voltaram ao som de fanfarras, cantando vitória, com a sua galhardia militar de ven-

cedores a quem a História será grata - êle e os seus ficaram, humildes e ignorados, para uma glória mais alta, que não está na mão dos homens conceder.

Sinto um grande respeito pelos heróis da África e avalio hoje, em boa consciência, o raro quilate dos seus heroismos - mas venero estes, que não têm ambições de riqueza nem de glória, que consomem os corpos a fogo lento de muitos anos, que amam sem alarido e constroem sem espectáculo, que não esperam recompensas na terra e que fazem o dom total da sua vida, ao Deus em que creem e à Pátria que servem.

Todos nós admiramos, franca ou intimamente, os homens que realizam as grandes coisas que as nossas possibilidades não alcançam. E eu que vim à África apenas para ganhar dinheiro e que sou incapaz de desistir do meu intento ou renunciar, sob o exemplo superior dum grande gesto, aos meus apetites e às minhas ambições, não posso deixar de reconhecer na minha inferioridade o ponto de referência que me permite avaliar a superioridade deles.

É preciso estar em África, sob o pêso da Distância e do Isolamento, conhecer a dureza dum longo mês de viagem atrás dum carro boer e sentir, inesperadamente, a doçura desta casinha perdida no sertão, onde tangem sinos de aldeia e as almas podem despir o colete de forças em que

mato as prende, para compreender a grandeza

e o heroismo dos missionários.

já tinha ouvido falar deles. Mas hoje senti-os.

O Padre Mateus fez-me beber a sua magnífica berlunga, bebida fermentada feita de farinha de milho, e conversou largamente comigo, na varanda da Missão, depois de terminada a resa da noite e recolhidos os muleques.

Veio para a África quando o Sul de Angola era praticamente uma Terra de Ninguém. Era o tempo dos sobados poderosos e indomáveis e do absolutismo indígena, em que os comerciantes que se atreviam para o interior tinham que pagar direitos de passagem, que muitas vezes eram a própria vida. Para muitos povos indígenas foi êle o primeiro branco que viram.

Em quarenta anos de missão assistiu e colaborou na evolução que levou a soberania de Portugal a todos os cantos de Angola e que transformou as antigas raças guerreiras e crueis em povos nacionais e pacíficos de trabalhadores. Caniinhou algumas vezes à frente das colunas militares, bifurcado numa mula, como guia das tropas, interprete, medianeiro, e salvou muitas vidas de prisioneiros de guerra. Mas também andou só por entre os povos rebeldes, a lutar com palavras e exemplos de amor contra a sua barbarie e a sua ignorância, e conquistando uma influência cuja acção pacificadora deixou muitas vezes a perder de vista o êxito das armas.

O Padre Mateus não acredita que nenhum outro povo colonizador saiba tratar e fazer-se estimar pelo indígena como o português.

Pág. 143 a 146

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38. - Caça de um jacaré

Num areal do rio já depois de acamparmos, estavam dois portentosos jacarés estendidos na areia, em doce ripanço, saboreando as delícias do sol poente. Apontei demoradamente à cabeça do n-laior e a minha bala certeira foi vingar a pobre Rosa. O jacaré atingido em cheio deu um salto prodigioso - uma explosão de energias poderosas a transformarem-se - e cafu de barriga ao léo, com a cauda a mergulhar na água.

Pág. 151

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39. - Quissonde e um esqueleto humano

Sob as ramadas pendentes a rvore i com o seguinte espectáculo: O quissonde, uma formiga escura, de grandes mandíbulas, carnívora e nauseabunda, num exército de muitos milhões, que marchava de longe, em cordão compacto e grosso, escabichava as últimas fibras de carne num esqueleto humano. Era um assalto em massa, repelente, encarniçado.

O meu cavalo assustou-se e recuou espavorido - e eu, mal percebi a cena, abalei imediatamente a prevenir o Vasco.

O esqueleto estava sentado junto ao tronco

da figueira, espernegado, a cabeça deitada sôbre o ombro.

Aventou o Vasco que devia ser recente a morte do preto, pois alguns ramos da árvore, partidos de-certo por êle, ainda estavam frescos.

O assalto do quissonde dera-se portanto algumas horas antes - umas horas que bastaram para que o cadáver fôsse inteiramente devorado pelas terríveis formigas.

Pág. 156 e 157

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Capítulo VII - Terra de Cuanhamas

40. - Lenda do Vélo d' Oiro

Eu era como aquele pastorinho da lenda que foi sentar-se na praia e viu luzir sobre o metal ilusório das águas, muito longe, um lindo Vélo ar. d'Oiro. Como êle, também eu me deitei a nadar,

palpitante, confiado, a estalar de entusiasmos

explosivos.

E hoje, que não sou pobre nem desgovemado como era, quanto eu não dava para ser ainda o pastorinho arrebatado que se meteu a cortar as águas estonteado pelo fulgor do Vélo d'Oiro!

Pág. 168

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41. - Telegrafia indígena

As notícias no mato correm quási tão depressa como numa grande cidade. A telegrafia indígena, não menos complicada nem confusa para os leigos do que a nossa telegrafia de civilizados, não é também menos rápida nem menos perfeita. Aconteceu por vezes termos notícias de regiões distantes de centenas de quilómetros nalguns postos por onde passámos. Achei o caso natural durante muito tempo, pois em todos os postos havia um telefone. Mas o que só muito tarde vim a saber é que essas notícias eram muitas vezes dadas aos Chefes de Pôsto pelos indígenas e não pelo telégrafo.

Desta maneira, três horas depois, não só o Chefe de Pôsto sabia que andávamos à procura duma mulher branca, como também o sabiam todos os negros da região.

Era um exército a procurar a Estela.

Pág. 171

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42. - Chefe de posto do Evale

Depois entraram a zumbir-me nos ouvidos vibra-

ções estranhas e mal tinha fôrças para levantar

as pálpebras. Deixei de ver.

Voltei a n-iim no acampamento. Estavam junto da minha cama o Chefe de Pôsto do Evale e o Vasco que acabava de injectar-me o soro anti-

-venenoso.

Pág. 172 e 173

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43. - Soba do Evale descobre a Estela

A Estela tinha sido encontrada pelo soba do

Evale, a cêrca de nove quilómetros acampa-

mento, junto dum tufo de capim. Foi o Vascc> quem a foi buscar na carrinha e a reanimou. Estava arrazada de fadiga - verdadeiramente na ante-câmara da morte - quando deram com ela. Por felicidade nem as feras nem o cacimba a acabaram. Recolheram-na na tenda de lona e

ali estava quando eu voltei ao acampamento às

costas do Catuba.

Pág. 173 e 174 (cont.)

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44. - Sede, roubo do cavalo e descoberta do ladrão

É preciso sentir a sêde - a sêde que é a imperios necessidade de prover de água os tecidos desidratados, e não a simples vontade de beber que se ganha na calma das cidades e na tentação das carapinhadas - para respeitar aquela água opaca, adormecida do fundo sujo das cacimbas, que tem a babugem dos animais do mato e é muitas vezes a água que resta dos seus banhos.

Eu que tantas vezes bebia água em Lisboa com receio de me perder por via de febres tifoides, água que era clara e transparente, bebi muitas vezes as águas imundas das cacimbas com a esperança de me salvar.

Oito dias depois do Evale passámos Cafima e encontrámos a última libata indígena - uma libata rica de secúlo, que tinha muitos bois e

muitas mulheres.

Nesse dia desapareceu n-iisteriosqmente o meu cavalo. Fiquei um pouco desorientado ante a perspectiva da falta de transporte.

O janota aconselhou imediatamente que se interrogasse o ôlho de vidro do Vasco, que devia ter visto para onde fôra o cavalo. Mas o Vasco, mais prático e experiente nas coisas do Cuanha-

ma, logo que soube da falta do «Estoril», garantiu:

- Foram os cuanhamas.

]Êstes indígenas são ótimos cavaleiros e apreciam imenso os cavalos que, em geral, trocam por bois na África do Sul, mas que acham cómodo obter também sem mais trabalhos nem despezas do que as que o meu lhes tinha custado.

Dirigimo-nos imediatamente à senzala. O Vasco agarrou no braço do primeiro negro que lhe apareceu e apertou com fôrça.

E antes que o invectivasse ou lhe fizesse alguma pregunta, respondeu o preto:

- Não fui eu senhor... Foi o Chilulo!

Sherlock Holmes não teria sido mais rápido. Dez minutos depois já cavalgava no meu Estoril a caminho do acampamento.

Pág. 178 e 179

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45. - Descobereta do Esqueleto do Gimuto

um ponto de referência. Efectivamente um dia viemos a encontrar um esqueleto desmantelado, que o Mandobe logo reconheceu como sendo o do

Gimuto, pois tinha ao lado uma catana e, sôbre

os ilíacos, restos estampados duma tanga.

Pág. 182 e 183

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46. - Mucancala

E com o braço apontava-nos um vulto distante, quási um pingo escuro no creme do areal.

Era um mucancala.

Metemos os cavalos à carga numa correria doida. o vulto, imóvel ao princípio, não tardou em perceber as nossas intenções e lançou-se tam-

bém em correria desabalada. Não foi longa a perseguição. O galope dos cavalos ganhava terreno, vertiginosamente, e poucos minutos depois estávamos em cima do mucancala espavorido.

Deitou-se de costas no chão, com a bôca escancarada pelo esfalfamento, os olhos desvairados de terror e de fúria, os joelhos levantados em atitude defensiva, a flecha em riste ameaçando - e gania desesperadamente como um mabeco.

Era um tipo repelente de animal bravio. A sua expressão anatómica oscilava entre a do homem e a do símio. A pele de côr desvanecida, num quási amarelo-torrado, tinha um aspecto sujo e incardido, como que lambuzada de argilas em lama, o corpo enf esado de liliputiano, dava a impressão da timidez física, os braços longos, a cabeça repugnante e assimétrica, muito rapada dos lados, com uma crista de carapinha cerrada que ia da testa ao cocuruto, a face esquálida, os maxilares salientes, os olhos oblíquos e encovados, a bôca irregular e grossa com um geito de fístula infectada, formavam um conjunto repelente, de causar náuseas.

Se realmente é de admitir que o homem descende do macaco e se as certezas científicas de Darwin são mais alguma coisa do que as habituais fantasias duma Ciência, que todos os dias nega o que ontem afirmou para dar legar a uma nova afirmação, os mucancalas representam, dentro dessa verdade, o ser de transição - uma

espécie de característico marco miliário do grande caminho que vai do gorila ao homem apurado

da Europa.

Pág. 184 a 186

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Capítulo VIII - Rumo à mulola do Tchimporo

47. - Partida para a mulola do tchimporo

Investimos finalmente com o areal na madru-

gada de 1 de junho, aos primeiros alvores do dia.

Pág. 189

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48. - Carrinha: carroça puxada por duas juntas de bois

Levávamos apenas a carrinha, puxada por duas juntas de bois, seis pretos e mais uma junta de reserva.

Pág. 191

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49. - Mucancala preso

À noite, à fôrça de cuidados e de drogas da nossa farmácia, o selvagem parecia escapo e reanimado. Mas nem um momento perdeu as atitudes bravias e esquivas. Chegou a morder o Mandobe quando êste lhe dava de comer.

Pág. 204

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Capítulo IX - No interior da mulola do Tchimporo

50. - Balanço das perdas

Estivemos dois longos dias a refazer-nos , e pudemos então, no mesmo logar onde em tempos o Mandobe e o Gimuto tinham armado a sua cubata, fazer o balanço das nossas perdas: dois serviçais, e dois bois ; os vivos trôpegos e derreados, o carro desmantelado !

Pág. 214

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51. - Mutiati

Predominava o mu-

tiati e as leguminosas de espinho, mas viam-se também, por todos lados, anafadas mulembas, sicomoros, grandes rubiaceas, o nucibe, a otalamba e o vivungo (plantas da borrracha), enormes figueiras bravas e, um pouco mais espaçados, os ibondeiros alambazados, feios, fortes, verdadeiros aquidermes da flora.

Pág. 215

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52. - Imbondeiro e o armazenamento de água

Ao terceiro dia mudámos o acampamento seis ou oito quilómetros mais para diante, até junto dum ibondeiro ôco onde as chuvas tinham deixado uma água límpida e fresca como a de Sintra.

Pág. 217 e 218

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53. - Goncho, Catutba e Jaisse

Lembro-me que uma noite èle, o Goncho, o Catuba e o jaisse, comeram uma cabra inteira em volta da fogueira, enquanto nós doriniamos. Rasgaram-na em tiras, que passaram pelo sal, assaram-nas no lume e foram-nas tasquinhando insaciavelmente até de manhã.

Pág. 218

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54. - História de um leão e de um porco no jardim zoológico de Luanda

Passou-se o caso no jardim Zoológico de Loanda e numa jaula onde o humorismo ou a curiosidade científica de alguém tinha instalado, conjuntamente, um leão e um porco. Eram ambos recem-nascidos, quando lhe impuzeram a comunidade, e foram crescendo em boa camaradagem e amizade até à idade adulta. Tratava dos bichos um condenado que se lhes afeiçoara e que

tinha o máximo cuidado em não lhes faltar com as refeições na abundância necessária e a horas exactas. Durante as horas de calor dormiam ambos muitos chegados um ao outro; e de manhã, pela fresca, era frequente verem-se brincar, o porco dando trombadas no leão, o leão sapateando o suíno com carinhoso bom humor. Isto durou cêrca de dois anos - o tempo suficientemente para fazer do porco um grande cevado e do leão uma imponente fera. Mas nem a gordura apetitosa dum nem os instintos sanguinários do outro alteraram, durante êsse tempo, a boa harmonia da sociedade.

Um dia, o condenado que os tratava terminou o tempo de degredo, expiou a pena e foi-se embora. Veio outro para tratar dos animais, mas não lhes tinha, infelizmente, o mesmo amor. Acabaram-se as refeições a horas certas e aquela abundância tranqüilizadora em que tinham vivido.

Uma noite o condenado apanhou tão grande bebedeira que esteve dois dias sem dar de comer aos bichos. O leão suportou heroicamente a fome um dia inteiro e mais a manhã do outro dia. Depois começou a exasperar-se e a ser tentado pelas formas roliças do companheiro. Velhos instintos ancestrais despertaram e a biologia da fera dominou, como era de esperar, a sua sentimentalidade de camarada. À tardinha foi-se ao porco e comeu-o!

Até aqui decorre apenas a história banal dum leão e dum porco tal como qualquer homem, desde Lineu a João Fernandes, a teria compreendido e previsto. Mas a história tem uma conti-

nuação.

O leão ficou só. As delícias da gula e da digestão, como tôdas as delícias do físico, passaram depressa. Notou então que lhe faltava o companheiro, lembrou-se, possivelmente, do seu focinho meigo e das suas carícias ternas - e entrou a entristecer. Passava os dias deitado, melancólicamente, a um canto da jaula, e perdeu aquele mesmo apetite que o levara a devorar o companheiro. Emagreceu, pôs-se num estado miserável, perdeu a altivez leonina do olhar e a arrogância decorativa da juba, adoeceu. Uma manhã foram encontrá-lo morto na jaula - imorto com saüdades do porco!

Pág. 229 a 231

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Capítulo X - Regresso à Humpata

55. - O administrador de Capelongo e a resolução de uma indaca

Foi o Vasco dar com o administrador a resolver uma indaca entre dois secúlos da região. Por baixo duma grande figueira brava que existe em frente da secretaria da circunscrição tinham-se reünido as duas partes litigantes, com as respectivas testemunhas, e alguns anciãos que faziam de jurisconsultos do direito indígena.

O Administrador, com o intérprete ao lado, muito senhoril e sentencioso, interrogava e ouvia as partes.

O queixoso começou a expôr o seu caso, numa língua de trapos acompanhada por esgares e gestos. De vez em quando o Administrador preguntava ao intérprete:

- O que diz êle ?

E o intérprete muito sério e compenetrado do seu papel, respondia:

- Por enquanto, senhor, ainda não disse nada - só falou!

Ao cabo duma boa meia hora, o participante disse enfim alguma coisa. Tratava-se dum caso grave: O queixoso tinha roubado um boi negro ao réu. Descoberto por êste quando pretendia disfarçar o boi, pintando-o de branco, não conseguiu esconder o latrocínio, porque começou a chover e a negrura do boi apareceu em pleno explendor. Na noite dêsse dia morreu o boi com

a caonha, antes de ter recolhido à libata do legítirno proprietário. Concordou o queixoso que devia ao outro uma indemnização e tiveram por êsse tempo uma indaca - a primeira - pois o roubado exigia um boi melhor do que o seu e o gatuno fazia tôda a diligência por impingir um pior. Resolvida a questão pelo Administrador recolheram as partes para cumprir a sentença, que devia executar-se ao outro dia. Mas durante a noite que mediou entre a indaca e a execução da sentença, o larápio, e agora queixoso, teve uma formidável dor de dentes. E como era a primeira de que sofria e não conseguiu repouso em tôda a noite, por via da violência das dores, concluiu que tinha sido feitiço arranjado pelo outro para se vingar do furto do boi. E logo resolveu indemnizar-se dando apenas um garrote pequeno. Não quis o outro, que negava a sua intervenção no feitiço e que apenas queria o seu boi, e veiu o primeiro queixar-se à Administração.

Ameaçava durar horas aquela questão, com o depoimento das testemunhas e o conselho dos anciãos, quando o Vasco, para abreviar, se prestou a servir de intérprete.

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56. - Chegada à Chibia

Ia Março entrado quando a atingimos a Chibia, a quarenta quilómetros, aproximadamente, da

Humpata - dois dias de viagem com um bocadinho de vontade.

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Capítulo XI - Chagada a Lisboa

57. - Chegada a Lisboa

Cheguei a Lisboa em Agosto.

Quando por entre a bruma duma manhã cinzenta os meus olhos começaram a encher-se da ânsia de enxergar os primeiros contornos do Cabo da Roca, saltava-me o coração do peito em doida alegria.

Pág. 253

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58. - Pátria Portuguesa na Europa e em África

A minha saudade era apenas - e nunca julguei que pudesse ser tão grande - a saudade física e substancial pela terra. Compreendi que não era um grilheta libertado, mas apenas o filho criado e apetrechado que se desgarra do lar paterno e vai à sua vida. A minha saudade por uma terra a penetrar no meu entusiasmo por outra, realizava em mim a unidade espiritual duma Pátria e está na Europa e na África.

Pág. 269

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5262 - O Vélo d´Oiro, Henrique Galvão - Índice

Índice de Rui Roberto Ramos

Capítulo I Tentação de África 5

Capitulo II Chegada a Moçamedes 15

Capíto III Chegada ao Lubango e ida para a Humpata 27

Capítulo IV Reunião com o Mandobe 35

Capítulo V Preparativos para a jornada à mulola do Tchimporo 53

Capítulo VI O meu diário (de 28 de Março a 2 de Maio) 61

Capítulo VII Terra de Cuanhamas 167

Capítulo VIII Rumo à mulola do Tchimporo 189

Capítulo IX No interior da mulola do Tchimporo 214

Capítulo X Regresso à Humpata 237

Capítulo XI - Chagada a Lisboa 253