sábado, 19 de janeiro de 2008

5262 - O Vélo d' Oiro, Henrique Galvão

5262 - O Vélo d' Oiro, Henrique Galvão

Capítulo I - Tentação de África

1. - Tentação de ir para África

Tinha eu vinte e sete anos e estava empregado no Banco do Crédito Agrícola, quando me inquietou, pela primeira vez, a tentação da África.

Fôra por lá que meu avô juntara a fortuna que eu depois consumi em estúpidas doidices e, à África também se tinha aferrado meu primo direit Vasco Benevides-depois duma deportação por motivos políticos e muito desarrumo na vida que levara em Portugal.

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2. - Localização da mulola do Tchimporo

«Existe cá para o Sul uma região misteriosa, à beira das terras do Cuanhama, conhecida pelo I nome de Mulola do Tchimporo, a cujo interior nenhun-ia alma branca conseguiu ainda chegar. «Dizem uns que é terra árida, tôda de areias I soltas e ressequidas, e palpitam outros que, no in-

terior, deve ser povoada e abundantemente ves-

tida de rica vegetação.

«Resulta o mistério da dificuldade de lá se chegar, pois a água falta e não é possível levar automóveis através do areal imenso - e muito menos carros de tracção animal, pois todo o gado

morreria de sêde.

«Tinha eu ouvido falar da região, como tôda a gente, mas nada, até há algum tempo, despertara em mim o desejo de a conhecer.

«Mas, vai em seis meses, e por forma que a seu tempo saberás e que seria muito longa de narrar agora, adquiri a certeza física de que há estonteantes abundâncias de oiro no interior da

mulola.

«Oiro nativo, meu querido Rodrigo, oiro quási puro, que mais trabalho não dá do que meter-lhe a picareta e carregá-lo nos carros! Um preto ganguela, que conseguiu atravessar a região e descobrir caminho provido de água, trouxe-me infonnações e provas das quais não é possível

duvidar.

«Não julgues que são fantasias minhas; sou o mesmo homem que era, de natural desconfiado e pessimista ; não me convenci sem fortes razõesmas, agora, estou convencido e bem convencido, com dados que não enganam.

«Se confias em mim e estás disposto a vir com o teu capital, indispensável para organizar convenientemente a viagem à Mulola, que fica a mais

de seiscentos quilómetros daqui, telegrafa e mete-te a cantinho, pois nunca um homem terá marchado para a Fortuna com tantas probabilidades de a alcançar.

«Quero, no entanto, prevenir-te a tempo de que a aventura não é isenta de perigos nem de fadigas e que é preciso que venhas disposto a tudo. Doutra forma, mais valerá ficares.

«Mas vindo ou ficando, deverás guardar o maior dos segredos. És a primeira pessoa, depois de minha mulher, a quem faço esta revelação. E só de fazê-la fico em tremuras, não vá a carta perder-se e espalhar-se o segrêdo.»

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Capítulo II - Chegada a Moçamedes

3. - Descrição de Moçamedes vista do mar

O Angola ancorou em Mossâmedes por volta das onze horas do dia 13 de Dezembro - mau dia !

O pôrto era uma grande planície de aço polido em infinita tranquilidade. Apenas, de longe em longe, os cardumes de sarrajão o embaciavam com manchas escuras e inquietas.

A terra, com o seu fundo amarelo de areias, as falesias depiladas, sob aquele sol estorricante do verão africano, parecia arder em estremecimentos de febre. Todo o semicírculo, amplo e gracioso, que vai do Saco à Fortaleza, dava a impressão dum grande brazeiro, donde se evolavam as temperaturas abafantes que rarefaziam o ar.

A cidade, coberta das vistas pela fita verde do jardim público - uma mancha esguia na palidez da paisagem - sesteava à sombra magra daquela pobre frescura vegetal. E da banda das fábricas e pescarias, num plano inclinado de ter-

ras sedentas, as casas acachapadas e os barcos de quilha ao léu, tinham a mórbida quietação dos imolados.

Para além da cidade, a paisagem lívida do Deserto a perder de vista-uma grande labareda de tons amarelos que se confundia com um céu agitado por cálidas pulsações.

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4. - Chegada ao porto de Moçamedes

A África!.. Estou em África!

À proa, os homens da manobra, afogueados e sujos, vertiam negras bagas de suor.

Em volta do paquete, ancorado numa imobilidade letárgica de grande paquiderme, acudiam gasolinas nervosos, carregados de gente barulhenta, que se consumia em gestos e dizeres para os passageiros debruçados na amurada.

E foi essa gente que ria, que não trazia nas faces o livor macabro da bilis derramada, que eu via semelhante a um branco prolongamento das fisionomias que tinha deixado em Lisboa, quem me deu ânimo e fé para esperar que nem tudo na África fôsse assim, como eu deduzia das agressões do calor e da amargura da paisagem.

Dum gasolina, que por fim atracou, saltaram senhoras garridas, muito ataviadas de modas europeas, muito prognósticas e desempoeiradas, umas para receber conhecidos, outras para mercar adornos e meias no barbeiro de bordo.

E logo a paisagem do spardeck se modificou. Parecia uma feira alegre e movimentada, com gritinhos femininos e frases rápidas, corridas nervosas e abraços amplos.

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5. - Deserto de Moçamedes como um oceano de areia

Olhei outra vez para terra em busca de confôrto - mas vi-a ainda lívida, esbrazeada, espécie de cais dum outro oceano: O Oceano imenso das areias, que nem me palpitava onde tinham fim!

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6. - Desembarque em Moçamedes

Desembarquei depois do almôço, com duas malas de beliche e um baú verde de fôlha, na velha ponte-cais da cidade, entre uma senhora gorda que vinha de Benguela e'um tropa tisnado ue se destinava ao interior

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7. - Moçamedes: Jardim, ruas, pianos

Enfiei pelo jardim em cata duma sombra onde refrescasse o corpo e descansasse os olhos maguados por violentas agressões de luz, e atirei-me para um banco, derreado por funda melancolia.

Pela álea solitária, apenas umou outro negro de tronco brunido por transpirações violentas, com serapilheiras sórdidas em volta dos quadris, ou pretas com os filhos às costas e enfusas na cabeça, passavam em ar de mândria, silenciosamente.

As fôlhas verdes estavam cobertas de poeira, como se proviessem de longas jornadas, e, duma

bica que alimentava um lago redondo, no meio do jardim, vinha um som cantante e fresco de água a correr, que na continuação, entorpecia e adormentava como as rezas monótonas de velhas fanáticas.

Cerravam-se-me os olhos num torpor de febre e sentia que o crâneo se me esvasiava como uma casa que a noite vai abafando em trevas. Em breve, apenas ouvia o zumbido cálido das tardes encalmadas e apáticas e a melopeia adormecedora das águas.

Lembro-me que sonhei com grandes montanhas d'oiro e que eu as acometia freneticamente com uma picareta que se embotava e não conseguia partir a rocha. Depois, sem transição, vi-me num areal enorme, enterrado até aos joelhos, cheio de sêde, afogueado por angústias inarráveis.

Acordei inundado de suores, com a bôca sêca e os olhos esgazeados, mas senti-me aliviado ao ouvir outra vez o palrar fresco da água e vendo os ramos pendidos nas árvores.

Num quiosque, em frente da Alfândega, alguns encalmados vestidos de branco, chupavam cervejas intermináveis.

A água cantarolava sempre na bica magrinha do jardim.

Sentia os lábios grossos e grandes formigueiros de indolência pelo corpo - uma grande fiacidez em todos os nervos motores.

E avancei para o quiosque, onde bebi a minha primeira cerveja africana - o grande vício, o grande veneno dos europeus que vão à África.

já os automóveis corriam pelas ruas e a cidade se mostrava desentorpecida e movimentada.

Às janelas ensombradas acudiam meninas garridas, com um ar lisboeta da rua dos Douradores, muito bem rebocados ; das lojas saíam figuras europeas que desmentiam a idea que eu fizera da África.

Percorri as ruas da cidade, enormes, geométricas, paralelas - três ruas de casas baixas ' que me lembraram muitas vezes as moradias dalgumas cidades do Algarve.

De vez em quando chegavam-me aos ouvidos a música dum Fado ou as notas eléctricas dum Charleston americano, tangidos em pianos desafinadotes.

imuitos pianos há em Mossâmedes! Cantavam em tôdas as ruas, adivinhavam-se na penumbra que ficava para além de certas janelas!

E pela tarde, com menos calor e bem atestado de refrescos, já a cidade me parecia mais simpática e acolhedora, com a sua fisionomia europea, as suas casas algarvias, as suas meninas dengosas e os seus pianos desafinados.

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8. - Seca de peixe na praia de Moçamedes

Por baixo de nós as barcas de pesca despejavam abundâncias prateadas de peixe e nos espaços livres, entre as fábricas e os estaleiros, secavam ao sol largos estendais de peixe esbarrigado.

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Capítulo IV - Reunião com o Mandobe

9. - Reunião com o Mandobe

Sentámo-nos. O Mandobe acocorou-se diante de nós e contou a sua história - uma história longa, cheia de derivações, num português destrambelhado e confuso, que o Vasco ia esclarecendo e que eu escutava tomado por ânsias e curiosidades.

Foi o primeiro capftulo do nosso romance do Oiro:

O Mandobe era um pastor ganguela, que vivia para as bandas do Menongue, na paz da sua senzala e na obediência animal das suas mulheres.

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10. - Rumo a seguir para a Mulola do Tchimporo

Combinaram então, para se furtarem a vistas

indiscretas, seguir pela margem direita do Cubango e tomar depois, tangencialmente, pela Mulola do Tchimporo, até à fronteira da Damaralândia.

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11. - Gimuto e o reconhecimento do oiro

E o Gimuto descobriu que os veios amarelos eram de oiro.

Êle conhecia-o bem desde que andara com uns ingleses, na região de Cassinga, onde bastas vezes o tinha visto. Simplesmente, enquanto em Cassinga as pedras tinham apenas ligeiríssimas incrustações, ali, o oiro formava veios maciços, compactos, abundantes.

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Capítulo V - Preparativos para a jornada à mulola do Tchimporo

12. - Rosa acompanha o cozinhiero Janota

Teimou o janota, o tal cozinheiro, em fazer-se acompanhar pela mulher - uma elegantíssima matrona, de abundantes tranças e muito ataviada de missangas e manteiga. Não houve outro remédio senão ceder. Ainda julgámos que desistiria porque estava para ser papá, mas a Rosa deu-lhe hoje o seu último filho, de modo que está amanhã pronta para a viagem.

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Capítulo VI - O meu diário (de 28 de Março a 2 de Maio)

13. - Morte do filho de Janota

30 de Março

Morreu esta tarde o filho do Janota. A Rosa aina não deixou de soltar brados de dor, apenas interrompidos para perguntar ao pequeno cadá-

ver quem foi o autor do malefícios De resto, tam-

bém o janota e os outros negros afiançam que a

morte foi produzida por feitiço.

Pág. 65 e 66

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14. - Acampamento no Capelongo

1 de Abril

Acampamos no Capelongo.

Por baixo de nós, o Cunene, como uma grande chapa de aço polido, neste fim de tarde dourado e calmo, corre tranqüilamente. Em volta dos bois as carraceiras brancas e elegantes parecem lírios de que a paisagem se enfeita.

Amanhã passaremos na jangada da circunscrição para a outra margem.

O acampamento, hoje, neste cenário largo e doce, entre as casas da circunscrição e um cotovelo metálico do rio, tem maior encanto e mais pitoresco. O caniço das margens, alto, compacto, com imagens delicadas na superfície espelhenta do Cunene, é uma cabeleira suave que contrasta com a grenha hirsuta das matas que temos atravessado.

A-pesar-das casas - uma escassa meia dúzia

- que há em volta da circunscrição, esta é bem uma paisagem de África. Sinto profundamente a impressão do isolamento e da distância. Cada um de nós é uma ilha - juntos, somos um pequeno arquipélago, arredado num canto do Mundo. Tenho uma noção fantástica do ponto do globo onde me encontro.

Pág. 67 e 68

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15. - Soba de Cassinga

6 de Abril

O soba de Cassinga veio ter connosco ao acampamento. Trazia duas galinhas de presente e vinha-nos pedir que lhe matemos um leão que lhe anda a desvastar o gado. Ainda ontem, à noite, entrou no sambo donde levou um garrote, que foi encontrado a mais de dois quilómetros, meio devorado. E o soba descreveu um lindo bicho, de juba loira e arrogante - de-certo o mesmo que ante-onteffi ouvimos rugir.

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16. - Morte do leão

Passava das nove horas. De todos os lados apareciam pretos curiosos - dir-se-ia que alguns surdiam do chão por alçapões misteriosos. Andavam como sombras, sem ruído, todos de olhos muito abertos.

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17. - Biografia de Estela

O seu drama de mulher branca, nestas lonjuras de África, é bem um drama africano.

Filha dum americano, empregado superior da

Companhia do Petróleo, e duma portuguesa, a Estela teve nos primeiros anos da sua vida, por junto, tôdas as alegrias e tôdas as esperanças que a vida tinha para lhe conceder.

Menina mimada pelos pais, filha única dum casal bem instalado na vida, retouçou em pura felicidade, entre a boa sociedade do Pôrto, até aos doze anos.

Um dia o pai teve que vir para Angola, como pesquisador de petróleo, numa comissão choruda e tentadora. Trouxe a mulher, a filha e uma criada - a Marta - que assistira ao nascimento da pequena e lhe era imensamente dedicada.

Instalaram-se todos em Maquela do Zombo, nun-la casa desmontável de linhas americanas, que tinha um jardim em volta e dominava, do alto em que estava assente, a paisagem exuberante do Congo.

Pág. 96 e 97

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18. - Marta assediada por Alves

Seis meses depois a Marta era assediada pelo Alves, um fumante bem apessoado e de cabedais, que ela distinguiu entre todos os esfomeados de mulher que a perseguiam. Casaram e foram viver para Cabinda, onde constava que eram felizes.

Pág. 97

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19. - Estela no Capelongo

Encontrou, todavia, a Estela, no Capelongo, um viver mais tranquilo e arredado. O isolamento em que estava o povoado e a fama de mulher

esquiva e arisca que tinha criado, juntamente com umas cacetadas com que o Alves afastara um pretendente mais teimoso, puseram-na em sossêgo. Adormeceu um pouco a sua irritabilidade latente e os meses foram passando em silêncio e calma monotonia.

Além disso, o amor inalterável da Marta, cheio de delicadezas e transigências, adoçava-a e oferecia-lhe permanentemente o sentimento e a realidade dum afecto que não era suspeito, duma coisa boa entre tantas ruins que a perseguiam e que ela odiava profundamente.

Pág. 101 e 102

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20. - Chefe de posto de Cafima

11 de Abril

Hoje, antes de partirmos, almoçámos com o chefe de pôsto. O Vasco não queria ir para não levantar suspeitas sôbre a presença duma mulher branca no combóio de homens que se destinam a Cafima, mas não teve outro remédio. Se não fôssemos ao pôsto, teria o chefe vindo ao acampamento, onde de-certo descobriria a Estela.

Fomos. E ainda bem que fomos!

A sede do pôsto é uma casa de adobe com telhado de capim. Tem uma varanda em volta e está erguida a um metro do solo, sôbre colunelos de pedra, por causa da salalé. Com dois barracões que tem à ilharga constitui todo o povoado, pois a antiga missão religiosa desapareceu, segundo dizem, por causa do clima que é hostil e traiçoeiro.

Nesta casa vive um homem de cêrca de trinta anos, emagrecido e gasto, com a pele curtida pela mataria e pelo sol, a esclerótica amarela, os matares salientes e os beiços gretados. Já teve duas biliosas e vive só. Passam-se semanas que não vê um branco, recebe correio de três em três meses e mais, ganha uma miséria e é - dizem - um funcionário exemplar!

riste homem tem, sob a sua administração e guarda, uma região quási tão grande como a província do Algarve, povoada por habitantes pobres, a quem a fome visita de vez em quando, e defendida por um clima rigoroso e cruel. É éle quem administra a Justiça, que atrai os indígenas, que os ensina a cultivar, que cobra o imposto, que abre estradas e carreteiros, que constroi as pontes e os aterros, que faz a escrita do pôsto - é êle, enfim, o representante e o símbolo da senhoria de Portugal nestas lonjuras incomensuráveis.

De cima mais de-pressa recebe censuras e apertões que louvores e incitamentos - de baixo surgem-lhe dificuldades de tôda a espécie, que tem de dominar, quási sem recursos. O Mundo ignora que êle existe e os seus heroismos, as suas valentias, a sua coragem persistente não têm as formas teatrais que conduzem à glória. É uma ilha. Amanhã, outra biliosa levá-lo-á talvez e o seu lugar está reservado na vala comum dos esquecidos. As próprias coisas notáveis que fizer

serão florões para adornar a glória doutros mais elevados em hierarquia.

Pois, êste homem espectrificado, que teve uma ale-ria quási infantil em dar-nos de almoçar, não nos falou senão dos seus projectos de trabalho, das obras que tinha empreendido, no aperfeiçoamento das suas estradas, na disciplina dos seus indígenas - de tôdas essas pequenas coisas que são a glória autêntica de Portugal, que explicam a nossa História e que prometem o nosso futuro.

E eu que tenho ouvido tantos discursos patrióticos para exibir oradores, que tenho visto subirem foguetes entre a vozearia dos vivas, que decorei tôdas as fórmulas do patriotismo verbalista, tive de encontrar, em Mossâmedes, o Pompílio e, por estes matos, os heróis de que a História não rezará, para compreender a qualidade da minha raça e encontrar uma razão da Razão para o meu orgulho de ser português.

Em volta da nossa mesa de almôço, rilhando o churrasco indígena e bebendo o vinho da nossa terra, eu venerei aquele homem que trazia a morte nos olhos e que não tinha outra ambição manifestada senão a de ser útil ao seu País - o País que não o conhecia e que vivia das virtudes de tantos como êle.

Ainda bem que fomos almoçar com o chefe de pôsto. Oxalá éle viva quando regressarmos da Mulola com o nosso oiro e a nossa generosidade.

Pág. 106 a 108

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21. - Notícias de um branco na Mulola do Tchimporo

16 de Abril

O Vasco foi hoje visitar uma libata de cuanhamas e voltou preocupado. Ouviu falar da passagem dum branco cujos sinais coincidem com o homem que o Mandobe viu na Mulola. Não trazia carros nem serviçais. Viajava a pé'com uma preta e don-nia onde calhava.

Preguntou se êle era inglês, mas os pretos responderam:

- É branco!

Trata-se por conseqüência dum português. Para os indígenas o branco é só o português. Os outros são o ingrez, o aremão, etc.

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22. - Rasto de elefantes

O Mandobe estudou as pègadas e disse que eram de fêmeas. A pègada dos machos é maior e mais redonda.

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23. - Cuanhamas

Os cuanhamas são negros magníficos, muito diferentes das outras raças que tenho visto. Altos, esguios, elegantes, de expressão altiva e agradável, são bem os descendentes duma raça aguerrida de guerreiros agitados e irrequietos. Muito mais inteligentes e civilizados que os outros povos vizinhos, domina-os ainda o espírito da aventura e da vagabundagem que assinala as raças gentias de mais poder.

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24. - Sanzala do Ganipacho

Tôdas as cubatas são iguais na forma - apenas a do Ganipacho é maior.

A entrada principal da cubata, como é de uso entre os cuanhamas, fica voltada para o nascente e é fechada por uma porta em orgão, por onde entram e saem em boa camaradagem, os homens, os bois, os porcos e as galinhas. Além desta porta existe uma outra, junto ao curral do gado, mascarada or arbustos.

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25. - Mulheres e gado do Ganipacho

Foi depois disto que o Ganipacho resolveu não casar outra vez e acabar os seus dias na companhia das quatro consertes que já tinha. De resto, quatro mulheres e mais de duas mil cabeças de gado eram já uma bonita fortuna.

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26. - Mandume

Remontámos aos tempos áureos da independência dos cuanhamas-independência de facto, pois só platónicamente, de direito, as suas terras

pertenciam a outros. Eram então os cuanhamas

um grande povo militar, aguerrido, indomável, que viera de chefes heróicos até ao Oghamba Mandume, o último que levantara o Cuanhama contra o domínio português.

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27. - Constituição das hostes cuanhamas

Estavam todos os guerreiros - e guerreiro era todo o homem dos quinze aos sessenta anos agrupados em tangas, verdadeiros batalhões de cem homens, que o bater da cua, em sinal de rebate, rapidamente juntava. Um lenga, chefe de guerra, comandava quatro, cinco e mais tangas. Seiscentos homens tivera o lenga Ganipacho sob as suas ordens, quando tinha quarenta anos.

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28. - Adoração de Cupido

22 de Abril

Quando hoje me aproximava da abata do Ganipacho deparei com um espectáculo imprevisto. Numa clareira da mata, mais de vinte mu leques de ambos os sexos, o mais velho dos quais não devia ter mais de dez anos, completamente nus, adoravam Cupido segundo o ritual em voga em todo o mundo.

Espantados com a minha presença fugiram, a ganir desesperadamente, não sei se enfurecidos pela interrupção, se amedrontados.

Com a minha ingenuidade europeia fui con-

tar a cena ao Ganipacho, entendendo que a minha denúncia era moral e cabida, pois visava a reprimir a precoce preversidade dos miudos.

O Ganipacho ouviu, com o ar de quem ouve coisas banais, e observou apenas, com certo desfastio :

- É para aprender senhor!

Começo a compreender porque é tão raro encontrar uma preta adulta sem um filho às costas. É da aprendizagem!...

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29. - Rasto de elefantes

O Vasco preguntou:

- Ódiripi óno jamba? ( (onde estão os elefanfes ?)

Não os tinham sentido naquela noite. Era preciso ir rio abaixo, ern c-ata dum rasto fresco, e segui-lo depois.

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30. - A escrita das pegadas

Vamos seguindo os rastos.

O passeio das enormes feras deduz-se tão claramente, tão precisamente, como uma fórmula algébrica: Chegaram ao rio pelas nove horas da noite, depois dum passeio tranquilo de vagabundos. Eram cinco fêmeas e um macho. Estiveram largo tempo a banhar-se regaladamente, ora nadando nas águas do «poço», ora chapinhando nas margens como praístas desenfastiados. Depois aproveitaram a casca rugosa duma mulemba para se coçar vagarosamente. E a árvore enorme, massagista improvizada, devia ter os-

cilado num murmúrio lamentoso de ramos, sob a pressão gigantesca de algumas toneladas de carne animada por movimentos voluptuosos.

Cêrca das quatro horas da madrugada deviam ter deixado o rio, pingando largas bagas de água, bem dispostos, felizes. Ali mesmo comeram os primeiros ramos - os mais tenros - lançando a tromba por entre a folhagem, farejando, escolhendo, arrancando depois num movimento brusco a parte mais apetitosa e macia. Mas não param. Tôda a floresta é um grande restauram de lista variadíssima. Por vezes é cerrada, áspera, densa e emaranhada. Êles abrem a sua estrada, cilindrando-a, sem esfôrço, em pura e fácil fôrça viva.

No alto duma árvore há vagens apetitosas, ainda húmidas de orvalhos. Erguem a tromba para avaliar da sua delicadeza e, se lhes apetecem, não importa que elas tenham nascido em altos ramos, numa árvore robusta, com mais de meio metro de diâmetro na base e meio século de existência entre as mais. Encostam a cabeça ao tronco e empurram quási sem esfôrço. A árvore range, lamenta-se por todos os ramos e cai ferida de morte. O elefante tem as vagens ao alcance da tromba. Escolhe, come umas tantas e passa adiante, retomando a sua marcha vagabunda de fantasista, a cabeça nunca agitação incessante, umas vezes magestoso e inteligente, tomando ventos, outras vezes bonacheirão e desenfastiado.

Vamos seguindo o rasto, que nos vai contando, na sua grafia bizarra, a fantasia das feras. já o sol nos cai pesadamente nas costas -o tronco dos pisteiros parece envernizado, mas a sua marcha é sempre ágil, ritmada, elegante.

A mata vai-se tornando mais densa. Pouco a pouco, à medida que avançamos, a cabeleira verde dos capins, vai dando logar à grenha hirsuta e irritante das matas de espinheiros.

No terreno, já endurecido nesta quadra do ano, a perseguição torna-se mais difícil: os rastos fogem, somem-se e escapam, por vezes, à vista mais apurada. Outras vezes há rastos vários que se cruzam. É preciso descobrir, entre o de ante-ontem, o de ontem à tarde e de hoje, aquele que nos convém. A marcha toma-se assim mais vagarosa e fatigante, por causa do dispêndio de atenção a que obriga.

Um pouco mais longe cerram-se mais as espinheiras. Só com infinitos cuidados conseguimos defender-nos da agressão irritante daqueles espinhos aduncos que nos rasgam a roupa e a pele.

O vento que ia de feição - isto é, soprando contra nós - torna-se instável, leviano, consentindo que as feras nos vão pressentir, a algumas centenas de metros, e se ponham em fuga. Acendemos cigarros uns sôbre os outros, nervosamente, para verificarmos a direcção do vento. Temos mais de vinte quilómetros andados e sentimos que o nosso esfôrço se vai inu izar por causa

daquela brisa quási imperceptível. Prevemos já o regresso ao acampamento, arrasados, tristes, sob os olhares irónicos do janota.

Mais umas dezenas de metros e a decepção confir.rna-se. Umas passadas mais largas, a impressão da pègada sôbre a ponta do pé, dizem-nos, com a clareza duma frase, que o animal fugiu desordenadamente. Aquele é o rasto da corrida, bem diferente das pègadas tranquilas dos seus passeios de vagabundo.

A poucos metros descobrimos, ainda quente, a cama da sesta.

É a decepção. Aqueles elefantes não se deterão tão cedo, nem nós os conseguiremos alcançar.

Parámos desalentados. Os pisteiros deram ainda uma volta que desiludiu as últimas esperanças.

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31. - Desculpa de Janota por ter perdido o almoço

Increpado por ter perdido a carga - cesto do almôço e alguns pratos de alumínio - afiançou: - jamba comeu tudo, siô. Comeu mesmo!

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32. - Distirbuição pela população da carne do elefante morto

Surdiam de todos os lados, armados de catanas afiadas, silenciosos como sombras, atrás da notícia de carne abundante, que rapidamente se tinha espalhado. Eram em tal número e aumen-

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33. - Corpo de Estela versus as Vénus negras

Olho para o seu corpito frágil, com os ombros descaídos, os braços quási lineares, para a sua face cavada e para a sua beleza lirial mas macerada, e, entre a piedade, a comiseração, o dó que me inspira, não lobrigo sombra de atracção física ou chama de desejo. Mais me têm impressionado certas Vénus negras, de carnes túrgidas e linhas triunfantes, embora a escorrerem manteiga rançosa e repelente, e que são menos esquivas e complicadas.

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34. - Pai de Ganipacho e a travessia da Mulola do Tchimporo

O Ganipacho assegurava que o pai do seu pai tinha atravessado a, Mulola, com duas tangas de guerreiros e que sempre tinha encontrado água nas cacimbas que abrira. Nem êle nem ninguém sabia que trilho tinham seguido, mas era positivo que marcharam do Bié para Namakunde, devendo pois ter atravessado a Mulola numa direcção sensivelmente Norte-Sul.

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35. - Acampamento entre o Cuvelay e a missão da Mupa

26 de Abril

Acampámos entre o Cuvelay e a Missão religiosa da Mupa, debaixo duma linda figueira brava, de copa hospitaleira e maternal - um suntuoso palácio de fôlhas erguido na planura de capim. De longe parece uma ave enorme, na atitude de acolher os filhos debaixo das azas.

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36. - Missão da Mupa

A Missão a Mupa forma um largo quadrilátero de casas compridas e brancas, com telhados à portuguesa, e varandas coloniais em volta, que fecha um terreiro alegre e amaneirado, de suave frescura. Um dos lados do quadrilátero é formado pela igreja pobrezinha, onde os pretos, quando cheguei, rezavam a oração da noite. Nas outras casas ficam as oficinas, farmácias, escolas, refeitório, habitações, armazéns - tôdas as peças engenhosas e cuidadas de que precisam uma escola, uma oficina, uma lavoira e uma igreja, a mais de quatrocentos quilómetros de terras de recursos!

Por detrás da igreja ficam a horta e o pomar - milagres de vegetação arrancados a estas terras bravias - e os sambos do gado.

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37. - Padre Mateus da Missão da Mupa

Recebeu-me e fez-me as honras da casa o padre Mateus, uni vèlhinho de barbas patriarcais e olhar doce, desembaraçado nos gestos e nos movimentos, muito simples e agradável dentro da sua sotaina branca de missionário. Tem a pele aperganúnhada e rugosa-, os cabelos ralos e desencan-iinhados, o corpo cüiciado por torturas do clima - mas os seus olhos são claros e vivos como os das crianças.

Com êle vivem e trabalham na Missão mais dois missionários. O mais novo tem vinte anos e chegou há seis meses, o mais velho - o Padre Mateus justamente - tem sessenta anos e chegou há quarenta. E em quarenta anos foi uma vez à Europa!

A sua expressão satisfeita e feliz, a sua tranqüilidade impressionante, o seu olhar puro de criança foram inteiramente ganhos em lonjuras como esta a desbastar selvagens e a revelar-lhes o aspecto superior da senhoria dos brancos.

Ao mesmo tempo que outros brancos vieram ocupar pelas armas e dominar com a guerra, em cata de glórias terrenas, mercês da Pátria e cumprimento de deveres, veio êle conquistar com o amor e a caridade, em cata do agrado de Deus! Os primeiros voltaram ao som de fanfarras, cantando vitória, com a sua galhardia militar de ven-

cedores a quem a História será grata - êle e os seus ficaram, humildes e ignorados, para uma glória mais alta, que não está na mão dos homens conceder.

Sinto um grande respeito pelos heróis da África e avalio hoje, em boa consciência, o raro quilate dos seus heroismos - mas venero estes, que não têm ambições de riqueza nem de glória, que consomem os corpos a fogo lento de muitos anos, que amam sem alarido e constroem sem espectáculo, que não esperam recompensas na terra e que fazem o dom total da sua vida, ao Deus em que creem e à Pátria que servem.

Todos nós admiramos, franca ou intimamente, os homens que realizam as grandes coisas que as nossas possibilidades não alcançam. E eu que vim à África apenas para ganhar dinheiro e que sou incapaz de desistir do meu intento ou renunciar, sob o exemplo superior dum grande gesto, aos meus apetites e às minhas ambições, não posso deixar de reconhecer na minha inferioridade o ponto de referência que me permite avaliar a superioridade deles.

É preciso estar em África, sob o pêso da Distância e do Isolamento, conhecer a dureza dum longo mês de viagem atrás dum carro boer e sentir, inesperadamente, a doçura desta casinha perdida no sertão, onde tangem sinos de aldeia e as almas podem despir o colete de forças em que

mato as prende, para compreender a grandeza

e o heroismo dos missionários.

já tinha ouvido falar deles. Mas hoje senti-os.

O Padre Mateus fez-me beber a sua magnífica berlunga, bebida fermentada feita de farinha de milho, e conversou largamente comigo, na varanda da Missão, depois de terminada a resa da noite e recolhidos os muleques.

Veio para a África quando o Sul de Angola era praticamente uma Terra de Ninguém. Era o tempo dos sobados poderosos e indomáveis e do absolutismo indígena, em que os comerciantes que se atreviam para o interior tinham que pagar direitos de passagem, que muitas vezes eram a própria vida. Para muitos povos indígenas foi êle o primeiro branco que viram.

Em quarenta anos de missão assistiu e colaborou na evolução que levou a soberania de Portugal a todos os cantos de Angola e que transformou as antigas raças guerreiras e crueis em povos nacionais e pacíficos de trabalhadores. Caniinhou algumas vezes à frente das colunas militares, bifurcado numa mula, como guia das tropas, interprete, medianeiro, e salvou muitas vidas de prisioneiros de guerra. Mas também andou só por entre os povos rebeldes, a lutar com palavras e exemplos de amor contra a sua barbarie e a sua ignorância, e conquistando uma influência cuja acção pacificadora deixou muitas vezes a perder de vista o êxito das armas.

O Padre Mateus não acredita que nenhum outro povo colonizador saiba tratar e fazer-se estimar pelo indígena como o português.

Pág. 143 a 146

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38. - Caça de um jacaré

Num areal do rio já depois de acamparmos, estavam dois portentosos jacarés estendidos na areia, em doce ripanço, saboreando as delícias do sol poente. Apontei demoradamente à cabeça do n-laior e a minha bala certeira foi vingar a pobre Rosa. O jacaré atingido em cheio deu um salto prodigioso - uma explosão de energias poderosas a transformarem-se - e cafu de barriga ao léo, com a cauda a mergulhar na água.

Pág. 151

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39. - Quissonde e um esqueleto humano

Sob as ramadas pendentes a rvore i com o seguinte espectáculo: O quissonde, uma formiga escura, de grandes mandíbulas, carnívora e nauseabunda, num exército de muitos milhões, que marchava de longe, em cordão compacto e grosso, escabichava as últimas fibras de carne num esqueleto humano. Era um assalto em massa, repelente, encarniçado.

O meu cavalo assustou-se e recuou espavorido - e eu, mal percebi a cena, abalei imediatamente a prevenir o Vasco.

O esqueleto estava sentado junto ao tronco

da figueira, espernegado, a cabeça deitada sôbre o ombro.

Aventou o Vasco que devia ser recente a morte do preto, pois alguns ramos da árvore, partidos de-certo por êle, ainda estavam frescos.

O assalto do quissonde dera-se portanto algumas horas antes - umas horas que bastaram para que o cadáver fôsse inteiramente devorado pelas terríveis formigas.

Pág. 156 e 157

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Capítulo VII - Terra de Cuanhamas

40. - Lenda do Vélo d' Oiro

Eu era como aquele pastorinho da lenda que foi sentar-se na praia e viu luzir sobre o metal ilusório das águas, muito longe, um lindo Vélo ar. d'Oiro. Como êle, também eu me deitei a nadar,

palpitante, confiado, a estalar de entusiasmos

explosivos.

E hoje, que não sou pobre nem desgovemado como era, quanto eu não dava para ser ainda o pastorinho arrebatado que se meteu a cortar as águas estonteado pelo fulgor do Vélo d'Oiro!

Pág. 168

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41. - Telegrafia indígena

As notícias no mato correm quási tão depressa como numa grande cidade. A telegrafia indígena, não menos complicada nem confusa para os leigos do que a nossa telegrafia de civilizados, não é também menos rápida nem menos perfeita. Aconteceu por vezes termos notícias de regiões distantes de centenas de quilómetros nalguns postos por onde passámos. Achei o caso natural durante muito tempo, pois em todos os postos havia um telefone. Mas o que só muito tarde vim a saber é que essas notícias eram muitas vezes dadas aos Chefes de Pôsto pelos indígenas e não pelo telégrafo.

Desta maneira, três horas depois, não só o Chefe de Pôsto sabia que andávamos à procura duma mulher branca, como também o sabiam todos os negros da região.

Era um exército a procurar a Estela.

Pág. 171

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42. - Chefe de posto do Evale

Depois entraram a zumbir-me nos ouvidos vibra-

ções estranhas e mal tinha fôrças para levantar

as pálpebras. Deixei de ver.

Voltei a n-iim no acampamento. Estavam junto da minha cama o Chefe de Pôsto do Evale e o Vasco que acabava de injectar-me o soro anti-

-venenoso.

Pág. 172 e 173

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43. - Soba do Evale descobre a Estela

A Estela tinha sido encontrada pelo soba do

Evale, a cêrca de nove quilómetros acampa-

mento, junto dum tufo de capim. Foi o Vascc> quem a foi buscar na carrinha e a reanimou. Estava arrazada de fadiga - verdadeiramente na ante-câmara da morte - quando deram com ela. Por felicidade nem as feras nem o cacimba a acabaram. Recolheram-na na tenda de lona e

ali estava quando eu voltei ao acampamento às

costas do Catuba.

Pág. 173 e 174 (cont.)

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44. - Sede, roubo do cavalo e descoberta do ladrão

É preciso sentir a sêde - a sêde que é a imperios necessidade de prover de água os tecidos desidratados, e não a simples vontade de beber que se ganha na calma das cidades e na tentação das carapinhadas - para respeitar aquela água opaca, adormecida do fundo sujo das cacimbas, que tem a babugem dos animais do mato e é muitas vezes a água que resta dos seus banhos.

Eu que tantas vezes bebia água em Lisboa com receio de me perder por via de febres tifoides, água que era clara e transparente, bebi muitas vezes as águas imundas das cacimbas com a esperança de me salvar.

Oito dias depois do Evale passámos Cafima e encontrámos a última libata indígena - uma libata rica de secúlo, que tinha muitos bois e

muitas mulheres.

Nesse dia desapareceu n-iisteriosqmente o meu cavalo. Fiquei um pouco desorientado ante a perspectiva da falta de transporte.

O janota aconselhou imediatamente que se interrogasse o ôlho de vidro do Vasco, que devia ter visto para onde fôra o cavalo. Mas o Vasco, mais prático e experiente nas coisas do Cuanha-

ma, logo que soube da falta do «Estoril», garantiu:

- Foram os cuanhamas.

]Êstes indígenas são ótimos cavaleiros e apreciam imenso os cavalos que, em geral, trocam por bois na África do Sul, mas que acham cómodo obter também sem mais trabalhos nem despezas do que as que o meu lhes tinha custado.

Dirigimo-nos imediatamente à senzala. O Vasco agarrou no braço do primeiro negro que lhe apareceu e apertou com fôrça.

E antes que o invectivasse ou lhe fizesse alguma pregunta, respondeu o preto:

- Não fui eu senhor... Foi o Chilulo!

Sherlock Holmes não teria sido mais rápido. Dez minutos depois já cavalgava no meu Estoril a caminho do acampamento.

Pág. 178 e 179

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45. - Descobereta do Esqueleto do Gimuto

um ponto de referência. Efectivamente um dia viemos a encontrar um esqueleto desmantelado, que o Mandobe logo reconheceu como sendo o do

Gimuto, pois tinha ao lado uma catana e, sôbre

os ilíacos, restos estampados duma tanga.

Pág. 182 e 183

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46. - Mucancala

E com o braço apontava-nos um vulto distante, quási um pingo escuro no creme do areal.

Era um mucancala.

Metemos os cavalos à carga numa correria doida. o vulto, imóvel ao princípio, não tardou em perceber as nossas intenções e lançou-se tam-

bém em correria desabalada. Não foi longa a perseguição. O galope dos cavalos ganhava terreno, vertiginosamente, e poucos minutos depois estávamos em cima do mucancala espavorido.

Deitou-se de costas no chão, com a bôca escancarada pelo esfalfamento, os olhos desvairados de terror e de fúria, os joelhos levantados em atitude defensiva, a flecha em riste ameaçando - e gania desesperadamente como um mabeco.

Era um tipo repelente de animal bravio. A sua expressão anatómica oscilava entre a do homem e a do símio. A pele de côr desvanecida, num quási amarelo-torrado, tinha um aspecto sujo e incardido, como que lambuzada de argilas em lama, o corpo enf esado de liliputiano, dava a impressão da timidez física, os braços longos, a cabeça repugnante e assimétrica, muito rapada dos lados, com uma crista de carapinha cerrada que ia da testa ao cocuruto, a face esquálida, os maxilares salientes, os olhos oblíquos e encovados, a bôca irregular e grossa com um geito de fístula infectada, formavam um conjunto repelente, de causar náuseas.

Se realmente é de admitir que o homem descende do macaco e se as certezas científicas de Darwin são mais alguma coisa do que as habituais fantasias duma Ciência, que todos os dias nega o que ontem afirmou para dar legar a uma nova afirmação, os mucancalas representam, dentro dessa verdade, o ser de transição - uma

espécie de característico marco miliário do grande caminho que vai do gorila ao homem apurado

da Europa.

Pág. 184 a 186

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Capítulo VIII - Rumo à mulola do Tchimporo

47. - Partida para a mulola do tchimporo

Investimos finalmente com o areal na madru-

gada de 1 de junho, aos primeiros alvores do dia.

Pág. 189

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48. - Carrinha: carroça puxada por duas juntas de bois

Levávamos apenas a carrinha, puxada por duas juntas de bois, seis pretos e mais uma junta de reserva.

Pág. 191

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49. - Mucancala preso

À noite, à fôrça de cuidados e de drogas da nossa farmácia, o selvagem parecia escapo e reanimado. Mas nem um momento perdeu as atitudes bravias e esquivas. Chegou a morder o Mandobe quando êste lhe dava de comer.

Pág. 204

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Capítulo IX - No interior da mulola do Tchimporo

50. - Balanço das perdas

Estivemos dois longos dias a refazer-nos , e pudemos então, no mesmo logar onde em tempos o Mandobe e o Gimuto tinham armado a sua cubata, fazer o balanço das nossas perdas: dois serviçais, e dois bois ; os vivos trôpegos e derreados, o carro desmantelado !

Pág. 214

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51. - Mutiati

Predominava o mu-

tiati e as leguminosas de espinho, mas viam-se também, por todos lados, anafadas mulembas, sicomoros, grandes rubiaceas, o nucibe, a otalamba e o vivungo (plantas da borrracha), enormes figueiras bravas e, um pouco mais espaçados, os ibondeiros alambazados, feios, fortes, verdadeiros aquidermes da flora.

Pág. 215

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52. - Imbondeiro e o armazenamento de água

Ao terceiro dia mudámos o acampamento seis ou oito quilómetros mais para diante, até junto dum ibondeiro ôco onde as chuvas tinham deixado uma água límpida e fresca como a de Sintra.

Pág. 217 e 218

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53. - Goncho, Catutba e Jaisse

Lembro-me que uma noite èle, o Goncho, o Catuba e o jaisse, comeram uma cabra inteira em volta da fogueira, enquanto nós doriniamos. Rasgaram-na em tiras, que passaram pelo sal, assaram-nas no lume e foram-nas tasquinhando insaciavelmente até de manhã.

Pág. 218

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54. - História de um leão e de um porco no jardim zoológico de Luanda

Passou-se o caso no jardim Zoológico de Loanda e numa jaula onde o humorismo ou a curiosidade científica de alguém tinha instalado, conjuntamente, um leão e um porco. Eram ambos recem-nascidos, quando lhe impuzeram a comunidade, e foram crescendo em boa camaradagem e amizade até à idade adulta. Tratava dos bichos um condenado que se lhes afeiçoara e que

tinha o máximo cuidado em não lhes faltar com as refeições na abundância necessária e a horas exactas. Durante as horas de calor dormiam ambos muitos chegados um ao outro; e de manhã, pela fresca, era frequente verem-se brincar, o porco dando trombadas no leão, o leão sapateando o suíno com carinhoso bom humor. Isto durou cêrca de dois anos - o tempo suficientemente para fazer do porco um grande cevado e do leão uma imponente fera. Mas nem a gordura apetitosa dum nem os instintos sanguinários do outro alteraram, durante êsse tempo, a boa harmonia da sociedade.

Um dia, o condenado que os tratava terminou o tempo de degredo, expiou a pena e foi-se embora. Veio outro para tratar dos animais, mas não lhes tinha, infelizmente, o mesmo amor. Acabaram-se as refeições a horas certas e aquela abundância tranqüilizadora em que tinham vivido.

Uma noite o condenado apanhou tão grande bebedeira que esteve dois dias sem dar de comer aos bichos. O leão suportou heroicamente a fome um dia inteiro e mais a manhã do outro dia. Depois começou a exasperar-se e a ser tentado pelas formas roliças do companheiro. Velhos instintos ancestrais despertaram e a biologia da fera dominou, como era de esperar, a sua sentimentalidade de camarada. À tardinha foi-se ao porco e comeu-o!

Até aqui decorre apenas a história banal dum leão e dum porco tal como qualquer homem, desde Lineu a João Fernandes, a teria compreendido e previsto. Mas a história tem uma conti-

nuação.

O leão ficou só. As delícias da gula e da digestão, como tôdas as delícias do físico, passaram depressa. Notou então que lhe faltava o companheiro, lembrou-se, possivelmente, do seu focinho meigo e das suas carícias ternas - e entrou a entristecer. Passava os dias deitado, melancólicamente, a um canto da jaula, e perdeu aquele mesmo apetite que o levara a devorar o companheiro. Emagreceu, pôs-se num estado miserável, perdeu a altivez leonina do olhar e a arrogância decorativa da juba, adoeceu. Uma manhã foram encontrá-lo morto na jaula - imorto com saüdades do porco!

Pág. 229 a 231

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Capítulo X - Regresso à Humpata

55. - O administrador de Capelongo e a resolução de uma indaca

Foi o Vasco dar com o administrador a resolver uma indaca entre dois secúlos da região. Por baixo duma grande figueira brava que existe em frente da secretaria da circunscrição tinham-se reünido as duas partes litigantes, com as respectivas testemunhas, e alguns anciãos que faziam de jurisconsultos do direito indígena.

O Administrador, com o intérprete ao lado, muito senhoril e sentencioso, interrogava e ouvia as partes.

O queixoso começou a expôr o seu caso, numa língua de trapos acompanhada por esgares e gestos. De vez em quando o Administrador preguntava ao intérprete:

- O que diz êle ?

E o intérprete muito sério e compenetrado do seu papel, respondia:

- Por enquanto, senhor, ainda não disse nada - só falou!

Ao cabo duma boa meia hora, o participante disse enfim alguma coisa. Tratava-se dum caso grave: O queixoso tinha roubado um boi negro ao réu. Descoberto por êste quando pretendia disfarçar o boi, pintando-o de branco, não conseguiu esconder o latrocínio, porque começou a chover e a negrura do boi apareceu em pleno explendor. Na noite dêsse dia morreu o boi com

a caonha, antes de ter recolhido à libata do legítirno proprietário. Concordou o queixoso que devia ao outro uma indemnização e tiveram por êsse tempo uma indaca - a primeira - pois o roubado exigia um boi melhor do que o seu e o gatuno fazia tôda a diligência por impingir um pior. Resolvida a questão pelo Administrador recolheram as partes para cumprir a sentença, que devia executar-se ao outro dia. Mas durante a noite que mediou entre a indaca e a execução da sentença, o larápio, e agora queixoso, teve uma formidável dor de dentes. E como era a primeira de que sofria e não conseguiu repouso em tôda a noite, por via da violência das dores, concluiu que tinha sido feitiço arranjado pelo outro para se vingar do furto do boi. E logo resolveu indemnizar-se dando apenas um garrote pequeno. Não quis o outro, que negava a sua intervenção no feitiço e que apenas queria o seu boi, e veiu o primeiro queixar-se à Administração.

Ameaçava durar horas aquela questão, com o depoimento das testemunhas e o conselho dos anciãos, quando o Vasco, para abreviar, se prestou a servir de intérprete.

Pág. 241 e 242

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56. - Chegada à Chibia

Ia Março entrado quando a atingimos a Chibia, a quarenta quilómetros, aproximadamente, da

Humpata - dois dias de viagem com um bocadinho de vontade.

Pág. 244

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Capítulo XI - Chagada a Lisboa

57. - Chegada a Lisboa

Cheguei a Lisboa em Agosto.

Quando por entre a bruma duma manhã cinzenta os meus olhos começaram a encher-se da ânsia de enxergar os primeiros contornos do Cabo da Roca, saltava-me o coração do peito em doida alegria.

Pág. 253

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58. - Pátria Portuguesa na Europa e em África

A minha saudade era apenas - e nunca julguei que pudesse ser tão grande - a saudade física e substancial pela terra. Compreendi que não era um grilheta libertado, mas apenas o filho criado e apetrechado que se desgarra do lar paterno e vai à sua vida. A minha saudade por uma terra a penetrar no meu entusiasmo por outra, realizava em mim a unidade espiritual duma Pátria e está na Europa e na África.

Pág. 269

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5262 - O Vélo d´Oiro, Henrique Galvão - Índice

Índice de Rui Roberto Ramos

Capítulo I Tentação de África 5

Capitulo II Chegada a Moçamedes 15

Capíto III Chegada ao Lubango e ida para a Humpata 27

Capítulo IV Reunião com o Mandobe 35

Capítulo V Preparativos para a jornada à mulola do Tchimporo 53

Capítulo VI O meu diário (de 28 de Março a 2 de Maio) 61

Capítulo VII Terra de Cuanhamas 167

Capítulo VIII Rumo à mulola do Tchimporo 189

Capítulo IX No interior da mulola do Tchimporo 214

Capítulo X Regresso à Humpata 237

Capítulo XI - Chagada a Lisboa 253

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