domingo, 21 de fevereiro de 2010

O VIDRO E A AREIA

via Sopas de Pedra by A. M. Galopim de Carvalho on 2/21/10
(Para os filhos mais jovens dos nossos leitores)

NAQUELA MANHÃ, o Domingos, a Francisca e o Mateus, esquecendo o que a mãe sempre recomendava, levantaram-se da mesa do pequeno-almoço e não levaram, para a cozinha, os copos em que tinham bebido o leite. Correram para a rua, onde os esperava a carrinha que, todos os dias, os levava para a escola.
A mãe saíra logo a seguir, a correr, a caminho do emprego e, assim, os três copos ali ficaram esquecidos, com todo o tempo para fazerem o que os objectos costumam fazer sempre que não há ninguém por perto a observá-los, isto é, conversarem uns com os outros. Foi então que o copo do Domingos, maior e mais experiente do que os outros, começou por lhes perguntar:
- Vocês, por acaso, sabem como apareceram aqui?
- Eu sei – respondeu o copo da Francisca. – Estávamos numa prateleira do supermercado, quando a mãe dos nossos meninos nos tirou de lá e nos trouxe para aqui.
- E tu, como é que cá chegaste? – Quis saber o copo do Mateus, virando-se para o do Domingos.
- Eu já cá estou há muito tempo. Dei de beber ao pai deles e, uma vez, por pouco, não me parti, quando o Domingos me deixou cair desta mesa para baixo. O que me valeu foi a alcatifa. Ao centro da mesa, muito interessada a ouvi-los, estava uma bonita jarra, também ela de vidro, que resolveu entrar na conversa, dirigindo-se ao mais sabichão:
- E tu, já que sabes tanto, tens ideia de como foste feito?
Perante o silêncio que teve como resposta, a jarra dispôs-se a contar-lhes a história das suas vidas.
- Se vocês forem para o campo, em muitos sítios do Alentejo, das Beiras, do Minho ou de Trás-os-Montes, vêem e pisam uma rocha muito dura, mas que, às vezes, se esboroa debaixo dos pés ou entre os dedos das mãos. É uma rocha que toda a gente conhece e a que se dá o nome de granito. – E acrescentou: - Dá-se-lhe o nome de granito porque é feita de grãos de umas coisinhas chamadas minerais. Entre esses minerais, há dois que é preciso conhecer para se contar o resto da história.
- Quais são? – Interrompeu, muito entusiasmado o copo do menino mais crescido.
- São o quartzo e o feldspato, precisamente, os dois minerais mais abundantes à superfície da Terra. Repitam comigo: quartzo e feldspato.
- Quartzo e feldspato. - Repetiram eles, a uma voz.
Agora, é preciso muita atenção. – Continuou a jarra. - O feldspato é como aquelas pessoas que, mal saem à rua, constipam-se logo. Exposto ao ar e à chuva, transforma-se em argila, um pó muito fininho de que é feito o barro.
- E o quartzo? Também é, assim, tão lingrinhas? – Perguntou o copo da Francisca.
- Não! – Disse a jarra. - O quartzo é um valentão. Resiste à chuva e ao sol, ao calor e ao frio. Nada o destrói. – E continuou: - Desfeito o feldspato, os grãos de quartzo ficam soltos e, assim, a chuva arranca-os e arrasta-os até aos rios que, por sua vez, os levam para longe. Uns ficam pelo caminho, nas margens dos rios, fazendo parte das terras de aluvião, outros acumulam-se no litoral, onde formam as praias, praias que fornecem as areias que o vento sopra para fazer as dunas.
- E depois? – Perguntou o copo do Domingos, maravilhado com esta verdadeira lição.
- Depois – continuou a jarra – é preciso dizer que a única coisa que acontece aos grãos de quartzo é ficarem redondinhos e muito brilhantes de tanto rolarem, primeiro no fundo dos rios, quilómetros e quilómetros, e, depois, nas praias batidas constantemente pelas ondas em rebentação, num vaivem sem fim.
- E depois? – Interessou-se o copo do Mateus.
Depois, é que vem o resto da história. – Disse a jarra, olhando em redor para se certificar não haver ali ninguém que os surpreendesse naquela longa conversa. – Querem ouvir?
- Quereeeeeeemos! – Gritaram os três copos, ao mesmo tempo.
- Então oiçam, muito caladinhos. Os homens antigos descobriram que a areia colocada num forno muito quente, se derretia como manteiga. Descobriram ainda, que assim podiam fazer frascos, copos, garrafas e jarras como eu. Mais tarde aprenderam a fabricar vidros para as janelas, para as montras das lojas, lentes para os óculos e muitas outras coisas. E agora querem saber mais?
- Quereeeeeeeemos – gritaram de novo.
- Então prestem muita atenção! Se a areia for muito branquinha, quase só com grãozinhos de quartzo, fazem um vidro sem cor e transparente como vocês e eu.
- Mas há garrafas verdes. - Lembrou o copo do Mateus.
- É verdade. – Confirmou a jarra. – Umas são verdes, outras são castanhas e outras não têm cor, como nós. Há vidros de muitas cores. Tudo depende das substâncias que se misturam à areia para obter essas cores. Mas isso fica para uma nova conversa.
- E eu a julgar que a areia só servia para os meninos brincarem na praia. – Disse um dos copos.
- Não! – Exclamou a jarra. – Para além do vidro, também serve para fazer cimento, loiça, plásticos e borracha. Serve, ainda, para temperar e enformar o ferro e para fabricar produtos químicos e farmacêuticos.

Apercebendo-se de que alguém se aproximava, disse numa voz muito baixinha:

- Por hoje já chega. Se quiserem aprender mais coisas, arranjem maneira de ficar aqui sobre a mesa, ao pé de mim. Se não, vão ser arrumados numa prateleira qualquer, e eu fico aqui sozinha sem ter com quem conversar.

O Porco Alentejano

via Sopas de Pedra by A. M. Galopim de Carvalho on 2/7/10
HÁ CERCA DE 65 milhões de anos, uma grande catástrofe, à escala do Planeta, levou à extinção de cerca de 75% das espécies vivas de então. Libertos da presença dominadora da grande maioria dos dinossáurios, os mamíferos ficaram com campo aberto para proliferarem ao longo dos milhões de anos que se seguiram, adaptando-se a todos os ambientes em terra, no mar e no ar. Desta evolução, que teve a seu favor uma infinidade de tempo e um número incontável de gerações, resultou, há cerca de 30 milhões de anos, a aparição dos suídeos que daí, caminhando até aos dias de hoje, evoluíram para o animal que todos conhecemos e apreciamos: – o porco alentejano.

Sus ibericus, o nosso porco, é uma espécie mediterrânea, descendente próxima do Sus mediterraneus, o javali do Sul, com origem africana. Com uma rusticidade semelhante à do Sus scrofa, o javali europeu é mais corpulento e rotundo do que este seu parente selvagem, que ainda hoje povoa as matas da Europa, incluindo Portugal.

Raça suína autóctone portuguesa, o porco alentejano tem por habitat o montado, quer o de azinho (Quercus rotundifolia) quer o de sobro (Quercus suber). Milhares de anos de adaptação a este bosque mediterrâneo da região alentejana, aproveitado como importante sistema agro-pastoril, a sua domesticação pelas primeiras civilizações sedentárias neolíticas e continuada pelas que aqui nos deixaram as antas, os menhires e os cromeleques, moldaram o animal que chegou aos nossos dias. A Natureza e o Homem adaptaram o montado ao porco e este ao montado, num binómio que, durante séculos, foi o suporte de parte importante da economia da mais vasta província de Portugal. Muito diferente do porco bísaro, transmontano (mais pequeno e malhado de branco rosado e negro), o porco alentejano, muitas vezes chamado de porco preto, é a última raça suína de pastoreio, na Europa.

O porco alentejano é considerado o animal que melhor utiliza os frutos do montado (a bolota e a lande), convertendo-os em carne de reconhecida qualidade. "Para preservação deste património gastronómico e cultural que os nossos antepassados nos legaram, não podemos tirar o montado ao porco ou o porco ao montado, sob pena de aniquilarmos ambos", escreveu, em 2000, Tirapicos Nunes. Da carne fresca, do toucinho alto conservado na salgadeira e dos muitos e variados enchidos dos nossos pais e avós e da nossa infância, o porco alentejano e os seus produtos voltam a impor-se no comércio e na restauração. Têm nome e marca de excelência os presuntos de Barrancos e as diversas carnes cheias de Moura, Portalegre, Estremoz, Borba, São Mansos e Arronches, entre outros locais de produção artesanal, no escrupuloso respeito pela tradição.

Quando vivo, o animal tem pouca apresentação e, daí, o seu nome. Causa repulsa a muita gente, mas, dizem os bons apreciadores, a sua carne é um convite ao prazer O porco sempre esteve na cozinha dos ricos e dos pobres. Com uma diferença: os ricos comiam mais presunto, paio e linguiça, e os pobres, mais toucinho e farinheira. A carne de porco é a que melhor convida à confraternização, bem testemunhada em todo o ritual da matança, um património cultural em declínio, na sequência das normas europeias vigentes. A rechina, ou cachola, é uma confecção carregada de valores simbólicos associados à "liturgia do sangue". O sangue simboliza a vida e, assim, matar o porco em família é continuar um ritual antigo em que este era oferecido em sacrifício aos deuses, herança de que a grande maioria dos políticos que nos governam se não dá conta.

Mesopotâmios, egípcios e gregos criavam e consumiam porco. Ofereciam-no em sacrifício aos deuses. E aos deuses só se oferece o que há de melhor. Homero glorificava este animal, considerando a sua carne a mais saborosa de todas. Entre os etruscos, o porco ocupava o primeiro lugar na respectiva dieta, e a criação de suínos, ao contrário da dos bovinos, tinha por único destino o consumo alimentar. Na Europa do Norte, a cultura do porco era também uma realidade entre os celtas. Durante a sua permanência no Alentejo, nos séculos VII a V a. C., deixaram vestígios deste seu hábito alimentar.

Continuando uma tradição vinda dos etruscos, os romanos criaram porcos como base importante da sua alimentação. Cícero considerava esta espécie como "uma dispensa ambulante", pois, enquanto vivo, o animal tinha a capacidade de conservar o alimento correspondente ao seu próprio corpo. Para os romanos, a natureza criara o porco para os festins. Na época imperial, a partir do século III, distribuía-se pão e carne de porco à população. Entre este povo, os leitões eram os animais domésticos mais oferecidos em sacrifício aos deuses. Depois eram comidos em lautos banquetes.

No Médio Oriente, a Bíblia proibia o consumo de carne de animais, não ruminantes, com a unha fendida. O porco e o javali estavam, assim, na lista das proibições. Nesta linha, o porco foi sempre considerado impuro por muçulmanos e judeus. As leis, quer a de Moisés, quer a do Islão, proíbem o seu consumo. Com os invasores islâmicos, o porco foi banido da dieta alimentar alentejana. Foi o tempo do Garb-al-Andaluz, cujos vestígios abundam nesta região, tanto nos objectos e palavras, como na gastronomia. Basta que nos lembremos da açorda e das migas, do escabeche e do ensopado de borrego ou das confecções à base de grão.

Entre os visigodos, o porco era uma entidade mítica. A conhecida porca da Murça é disso testemunho. A figura deste animal está inscrita nos ex-votos de vários santuários dedicados a Endovélico. Com a reconquista cristã e a expulsão dos mouros, a suinicultura no Alentejo aumentou de tal modo que se considera esta actividade pecuária como um traço importante da nossa economia no tempo que se lhe seguiu. O porco passou a ter um papel preponderante entre cristãos, ao contrário dos judeus. No Alentejo, o porco separava duas comunidades. O porco é o animal mais apreciado entre cristãos e o mais interdito entre judeus, a ponto de, em períodos de perseguição a estes se investigarem os hábitos alimentares das famílias e, daí, se deduzir a respectiva religião. As alheiras terão nascido como disfarce para iludir tal vigilância.

Ao longo da Idade Média, o número crescente de porcos atingiu valores consideráveis que obrigaram à publicação de disposições legais reguladoras da respectiva criação. Muitas famílias, vivendo em cidades, criavam animais em pocilgas, com reflexos evidentes na higiene e saúde públicas. Os vassalos podiam engordar dois, os populares apenas um, mas os fidalgos e outros senhores estavam autorizados a criar vinte, trinta, ou mais, uma filosofia social ainda bem marcada na nossa sociedade.

Nos campos, os porcos eram tantos que danificavam searas e hortas. Na Évora medieval, o número de porcos a deambular pelas ruas (nesse tempo térreas e pejadas de dejectos) e azinhagas era tão elevado, que uma postura municipal ordenou que "nenhum porco andasse pelas ruas sem ter o focinho argolado", o que os impedia de fossar. No final da Idade Média, o porco continuava a ser o produto animal mais consumido, tendo sido um providencial recurso alimentar em tempos de fome. Além da montanheira (criação no montado) e do chiqueiro familiar, havia a criação em ádua, isto é, um local onde as pessoas deixavam os seus animais à guarda de um porqueiro comum, a quem pagavam para os apascentar nos baldios do concelho.

Bácoro, barrasco, cerdo, cochino, farropo, javardo, leitão (nos juvenis), marrano, marrancho, suíno, varrasco e varrudo são muitas as designações dadas a este animal, tal a sua importância no quotidiano das gentes.

A peste suína africana, a doença do sobreiro e o declínio da montanheira por pouco não levaram à extinção deste nosso património. Por outro lado, com a modificação dos hábitos alimentares, interesseira e inteligentemente conduzidos e incentivados por campanhas publicitárias, a mando da grande indústria agro-alimentar, em prol dos óleos importados e das margarinas, contra a banha e até contra o azeite e, ainda, a introdução, no consumo, de raças exóticas, com mais carne e menos toucinho, o porco alentejano parecia ter os dias contados, o que, felizmente, não aconteceu. A partir dos anos 80, com o controlo da epidemia que quase os dizimara, Portugal foi reconhecido como zona indemne e, graças à meritória e oportuna promoção da chamada "dieta mediterrânea", está a renascer o interesse pela suinicultura desta raça e pelos produtos dela derivados. Contam-se, hoje, por centenas, os produtores deste animal em todo o Alentejo. No presente, muitos hectares de montado são, ainda, uma garantia às necessidades dos tempos que correm, mas o futuro é incerto e preocupante, tendo em conta a rarefacção deste sistema agro-pastoril. A alimentação desta nossa raça com cereais e farinhas vai, certamente, mudar-lhe as características que a tornaram um produto natural de excelência.

Moi, aussi, je fais des vacances!

via Sopas de Pedra by A. M. Galopim de Carvalho on 1/31/10
CORRIA O ANO de 1962. O então Instituto de Alta Cultura (depois Instituto de Investigação Científica, extinto em 1992) atribuíra-me uma bolsa de estudos, no montante de cinco mil escudos mensais, para estagiar no Instituto de Paleontologia do Museu de História Natural, em Paris. A tarefa que me fora destinada pelo catedrático, director do Departamento de Geologia, onde eu acabara de entrar como 2º assistente além do quadro, consistia em estudar uma abundante e diversificada fauna fóssil de Briozoários (invertebrados coloniais, na maioria marinhos e recifais) dos terrenos do Miocénico e Pliocénico (23,5 a 1,75 milhões de anos) de Portugal.

Este tema não era, nem de perto nem de longe, o que verdadeiramente me interessava como tema de trabalho. O meu grande interesse, como tema de especialização, apontava, fundamentalmente, para a dinâmica externa da Terra, incluindo a geomorfologia e a sedimentologia. Mas no meu tempo era assim. O catedrático, mandava e a gente ou obedecia ou dava lugar a outro.

Mas Paris era Paris e era o sonho de muitos dos meus contemporâneos. Além do Museu, teria à minha disposição a Sorbonne, o Colégio de França, a Escola de Minas, Instituto de Geografia e todas as especializações possíveis. E ali estávamos nós, a Isabel e eu, num pequeno apartamento do Hotel Blanadet, na Rue Monge, em pleno Quartier Latin, no 6º andar, sem elevador, nem casa de banho privativa. A toilette diária era feita no quarto de dormir. O lavatório de parede era também lava-loiça e lava-roupa.

Ao fim de duas ou três semanas de estadia na capital dos franceses, descoseu-se-me uma das botas, entre a sola e a vira. Era coisa de pequena monta. Meia dúzia de pontos e o problema ficaria resolvido. Eu sabia que assim era porque, em criança, como já revelei noutros escritos, brincando, brincando, fui aprendiz de sapateiro na oficina do meu tio Manuel.

Duas portas ao lado do nosso Hotel, trabalhava, de manhã cedo ao cair da noite, um cordonnier (sapateiro) italiano de meia-idade, imigrante, fugido à miséria a que a profissão o amarrava na terra-mãe. O cenário da sua pequena oficina era o mesmo que eu conhecera bem de perto. A um canto, um molho de sapatos e botas à espera de concerto, com indicação do arranjo pretendido escrita a lápis sobre as solas. No outro, uma prateleira com as obras acabadas, à espera de quem as viesse levantar, e no outro, ainda, o balde de demolhar a sola, cheio de uma aguadilha negra, de odor característico. A meio de uma das paredes, a cadeirinha baixa onde se sentava o único ocupante do espaço, à frente do qual uma banqueta, de tamanho reduzido, punha à disposição do mestre o essencial das suas ferramentas, com destaque para o martelo de peta larga, a turquês de pregar, a grosa, a faca afiada como um bisturi, as sovelas, os ferros de brunir. No chão, ao alcance da mão, a pedra de bater a sola, feita de um grosso calhau rolado, a forma de ferro de três posições e a caixa compartimentada, contendo os vários tipos de pregos usados no ofício. Ainda no chão, espalhados por todo o lado, acumulavam-se os pedaços de sola e cabedais rejeitados, restos de solas velhas e de tacões usados, outros desperdícios e pregos velhos e torcidos, inutilizados.

No nosso hotel residia um jovem siciliano, alto e magro, de rosto tisnado, ossudo e de cabelos negros como as asas de um corvo. No tempo, a que se refere esta crónica, este jovem, de seu nome Benito Merlino, era mais um dos muitos compositores-intérpretes da canção, candidatos ao sucesso na "cidade das luzes". De viola na mão, e um italiano afrancesado, este nosso companheiro de hotel corria os caveaux e bares da rive gauche, procurando aquela porta que se abre ao futuro. Benito tinha composições alegres, ao estilo do folclore da Catânia, com poemas agradáveis de ouvir numa cativante prosódia siciliana. E essa porta abriu-se-lhe. Benito fez carreira em Paris, nos anos 60 e 70, e vendeu muitos discos.

Soube por este nosso amigo que o cordonnier era, igualmente, um siciliano, de nome Alberto, ali radicado, havia meia dúzia de anos. Este só me conhecia de ver-me passar à porta e do bonjour que ocasionalmente trocávamos. A ver-me entrar, recebeu-me com a atenção que dispensava aos seus clientes e pegou na bota que eu levava na mão. Mirou-a de um lado e de outro e foi peremptório.

- São dez francos.

Dez francos, ao câmbio de então, eram sessenta escudos, eram dez almoços no restaurante universitário. Sessenta escudos por meia dúzia de pontos, entre a sola e a vira, era um exagero. Um concerto daqueles era trabalho que não chegava aos dez escudos, na oficina do meu tio. E se o freguês fosse conhecido, era arranjo que ele fazia de graça.

No meu francês, que ainda dominava mal, lá lhe fui dizendo que achava o preço muito elevado para as minhas posses. Que, em Portugal, aquilo era obra para muito menos, ao que ele, num tom reivindicativo, quase agressivo, contrapôs:

- Na terra de onde eu vim era a mesma exploração. Lá, sapateiro é profissão de pobre, não permite ganhar para dar educação aos filhos, o que os condena, também a eles, à pobreza. Leia, aí, o que diz o jornal. - Apontou-me o "L'Humanité", a seu lado, no chão, e desabafou:

- Na Sicília, os que têm dinheiro comem bifes e nós comemos massa sem conduto e não fazemos férias. Aqui sou gente igual aos outros, agora como carne e – acrescentou no francês que já falava – moi, aussi, je fais des vacances.

E ficámos conversados.

O tempo foi passando e há um dia em que o Benito me apresentou ao seu amigo e conterrâneo, Alberto. Como amigo do meu amigo, meu amigo é, passámos a conviver mais a miúdo, a ponto de, muitas vezes, ao fim da tarde, no regresso do Museu, ficar a falar com ele dos mais variados assuntos: do meu trabalho e do dele, das nossas origens e do muito que havia em comum nos nossos dois cantinhos da Europa do Sul. Num desses dias, a meio da conversa, ele, que não esquecera o nosso primeiro encontro, perguntou-me:

- E a bota, ainda está à espera de concerto?

À minha resposta afirmativa, mandou-me ir buscá-la, prontificando-se a cosê-la, agora como amigo, isto é, de graça.

- Então vamos fazer uma coisa. – Sugeri. – Dê-me um pedaço de fio encerado, uma seda e empreste-me a sovela, que eu próprio a coso.

Um quarto de século depois da minha experiência na oficina do meu tio Manuel, eu estava, em Paris, sentado na cadeira do mestre, de avental de atanado, luvas de sapateiro e a bota segura entre os joelhos, a recordar os gestos que aprendera.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Autobiografia de Rosa Lobato de Faria

via As Causas da Júlia by juliacoutinho@gmail.com (Júlia Coutinho) on 2/14/10
Rosa Lobato Faria, morreu, dia 2 de Fevereiro de 2010, aos 77 anos.
Deixamos aqui a 'autobiografia' que escreveu para o JL há dois anos.

Autobiografia.

Quando eu era pequena havia um mistério chamado Infância. Nunca tínhamos ouvido falar de coisas aberrantes como educação sexual, política e pedofilia. Vivíamos num mundo mágico de princesas imaginárias, príncipes encantados e animais que falavam. A pior pessoa que conhecíamos era a Bruxa da Branca de Neve. Fazíamos hospitais para as formigas onde as camas eram folhinhas de oliveira e não comíamos à mesa com os adultos. Isto poupava-nos a conversas enfadonhas e incompreensíveis, a milhas do nosso mundo tão outro, e deixava-nos livres para projectos essenciais, como ir ver oscilar os agriões nos regatos e fazer colares e brincos de cerejas. Baptizávamos as árvores, passeávamos de burro, fabricávamos grinaldas de flores do campo. Fazíamos quadras ao desafio, inventávamos palavras e entoávamos melodias nunca aprendidas.

Na Infância as escolas ainda não tinham fechado. Ensinavam-nos coisas inúteis como as regras da sintaxe e da ortografia, coisas traumáticas como sujeitos, predicados e complementos directos, coisas imbecis como verbos e tabuadas. Tinham a infeliz ideia de nos ensinar a pensar e a surpreendente mania de acreditar que isso era bom. Não batíamos na professora, levávamos-lhe flores.

E depois ainda havia infância para perceber o aroma do suco das maçãs trincadas com dentes novos, um rasto de hortelã nos aventais, a angustia de esperar o nascer do sol sem ter a certeza de que viria (não fosse a ousadia dos pássaros só visíveis na luz indecisa da aurora), a beleza das cantigas límpidas das camponesas, o fulgor das papoilas. E havia a praia, o mar, as bolas de Berlim. (As bolas de Berlim são uma espécie de ex-libris da Infância e nunca mais na vida houve fosse o que fosse que nos soubesse tão bem).
Aos quatro anos aprendi a ler; aos seis fazia versos, aos nove ensinaram-me inglês e pude alargar o âmbito das minhas leituras infantis. Aos treze fui, interna, para o Colégio. Ali havia muitas raparigas que cheiravam a pão, escreviam cartas às escondidas, e sonhavam com os filmes que viam nas férias. Tínhamos a certeza de que o Tyrone Power havia de vir buscar-nos, com os seus olhos morenos, depois de nos ter visto fazer uma entrada espampanante no salão de baile onde o Fred Astaire já nos teria escolhido para seu par ideal.

Chamava-se a isto Adolescência, as formas cresciam-nos como as necessidades do espírito, música, leitura, poesia, para mim sobretudo literatura, história universal, história de arte, descobrimentos e o Camões a contar aquilo tudo, e as professoras a dizerem, aplica-te, menina, que vais ser escritora.

Eram aulas gloriosas, em que a espuma do mar entrava pela janela, a música da poesia medieval ressoava nas paredes cheias de sol, ay eu coitada, como vivo em gran cuidado, e ay flores, se sabedes novas, vai-las lavar alva, e o rio corria entre as carteiras e nele molhávamos os pés e as almas.

Além de tudo isto, que sorte, ainda havia tremas e acentos graves. Mas também tínhamos a célebre aula de Economia Doméstica de onde saíamos com a sensação de que a mulher era uma merdinha frágil, sem vontade própria, sempre a obedecer ao marido, fraca de espírito que não de corpo, pois, tendo passado o dia inteiro a esfregar o chão com palha de aço, a espalhar cera, a puxar-lhe o lustro, mal ouvia a chave na porta havia de apresentar-se ao macho milagrosamente fresca, vestida de Doris Day, a mesa posta, o jantarinho rescendente, e nem uma unha partida, nem um cabelo desalinhado, lá-lá-lá, chegaste, meu amor, que felicidade! (A professora era uma solteirona, mais sonhadora do que nós, que sabia todas as receitas do mundo para tirar todas as nódoas do mundo e os melhores truques para arear os tachos de cobre que ninguém tinha na vida real).

Mas o que sabíamos nós da vida real? Aos 17 anos entrei para a Faculdade sem fazer a mínima ideia do que isso fosse. Aos 19 casei-me, ainda completamente em branco (e não me refiro só à cor do vestido). Só seis anos, três filhos e centenas de livros mais tarde é que resolvi arrumar os meus valores como quem arruma um guarda-vestidos. Isto não, isto não se usa, isto não gosto, isto sim, isto seguramente, isto talvez. Os preconceitos foram os primeiros a desandar, assim como todos os itens que à pergunta porquê só me tinham respondido porque sim, ou, pior, porque sempre foi assim. E eu, tumba, lixo, se sempre foi assim é altura de deixar de ser e começar a abrir caminho às gerações futuras (ainda não sabia que entre os meus 12 netos se contariam nove mulheres). Ouvi ontem uma jovem a dizer, a revolução que nós fizemos nos últimos anos. Não meu amor: a revolução que NÓS fizemos nos últimos 50 anos. Mas não interessa quem fez o quê. É preciso é que tenha sido feito. E que seja feito. E eu fiz tudo, quando ainda não era suposto. Quando descobri que ser livre era acreditar em mim própria, nos meus poucos, mas bons, valores pessoais.

Depois foram as circunstâncias da vida. A alegria de mais um filho, erros, acertos, disparates, generosidades, ingenuidades, tudo muito bom para aprender alguma coisa. Tudo muito bom. Aprender é a palavra chave e dou por mal empregue o dia em que não aprendo nada. Ainda espero ter tempo de aprender muita coisa, agora que decidi que a Bíblia é uma metáfora da vida humana e posso glosar essa descoberta até, praticamente, ao infinito.

Pois é. Eu achava, pobre de mim, que era poetisa. Ainda não sabia que estava só a tirar apontamentos para o que havia de fazer mais tarde. A ganhar intimidade, cumplicidade com as palavras. Também escrevia crónicas e contos e recados à mulher-a-dias. E de repente, aos 63 anos, renasci. Cresceu-me uma alma de romancista e vá de escrever dez romances em 12 anos, mais um livro de contos (Os Linhos da Avó) e sete ou oito livros infantis. (Esta não é a minha área, mas não sei porquê, pedem-me livros infantis. Ainda não escrevi nenhum que me procurasse como acontece com os romances para adultos, que vêm de noite ou quando vou no comboio e se me insinuam nos interstícios do cérebro, e me atiram para outra dimensão e me fazem sorrir por dentro o tempo todo e me tornam mais disponível, mais alegre, mais nova).

Isto da idade também tem a sua graça. Por fora, realmente, nota-se muito. Mas eu pouco olho para o espelho e esqueço-me dessa história da imagem. Quando estou em processo criativo sinto-me bonita. É como se tivesse luzinhas na cabeça. Há 45 anos, com aquela soberba muito feminina, costumava dizer que o meu espelho eram os olhos dos homens. Agora são os olhos dos meus leitores, sem distinção de sexo, raça, idade ou religião. É um progresso enorme.

Se isto fosse uma autobiografia teria que dizer que, perto dos 30, comecei a dizer poesia na televisão e pelos 40 e tais pus-me a fazer umas maluqueiras em novelas, séries, etc. Também escrevi algumas destas coisas e daqui senti-me tentada a escrever para o palco, que é uma das coisas mais consoladoras que existem (outra pessoa diria gratificantes, mas eu, não sei porquê, embirro com essa palavra). Não há nada mais bonito do que ver as nossas palavras ganharem vida, e sangue, e alma, pela voz e pelo corpo e pela inteligência dos actores. Adoro actores. Mas não me atrevo a fazer teatro porque não aprendi.

Que mais? Ah, as cantigas. Já escrevi mais de mil e 500 e é uma das coisas mais divertidas que me aconteceu. Ouvir a música e perceber o que é que lá vem escrito, porque a melodia, como o vento, tem uma alma e é preciso descobrir o que ela esconde. Depois é uma lotaria. Ou me cantam maravilhosamente bem ou tristemente mal. Mas há que arriscar e, no fundo, é só uma cantiga. Irrelevante.

Se isto fosse uma autobiografia teria muitas outras coisas para contar. Mas não conto. Primeiro, porque não quero. Segundo, porque só me dão este espaço que, para 75 anos de vida, convenhamos, não é excessivo.
Encontramo-nos no meu próximo romance.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

OS REFLUXOS DA HISTÓRIA

via MUKANDAS do Monte Estoril by Irdea on 1/30/10

QUANDO O HAITI FOI

UM PARADIGMA DA LIBERDADE

Por:

Leonel Cosme

Não serão muitos os angolanos (e menos os portugueses) que, vendo hoje a onda de horror que arrasou o Haiti, reduzindo o seu povo ao grau zero do progresso da humanidade, sabem ou se lembram de que ele já constituiu um paradigma da luta de libertação dos negros escravizados de todo o mundo; e de que, em Angola, esse paradigma não só sensibilizou colonos excep-cionais, já no século XIX, como inspirou a geração de jovens intelectuais angolanos que, nos meados do século XX, fizeram da literatura um instru-mento da luta pela independência do seu país.

Faço daqui um convite aos curiosos e interessados para procurarem nas principais bibliotecas públicas um livro editado, em Lisboa, em 1880, inti-tulado, genericamente, A RAÇA NEGRA, da autoria de A. F. Nogueira, na altura sócio efectivo da Sociedade de Geografia de Lisboa, membro da Comissão da Exploração da África da mesma Sociedade. (A quem quiser saber mais sobre o que foi este colono excepcional, António Francisco Nogueira, de nome completo, saído do Brasil, em 1850, para o distrito de Moçâmedes, sugiro a leitura do meu ensaio Muitas são as Africas, Novo Imbondeiro, 2006).

Naquela época, focando a marcha progressiva dos povos negros, já independentes, da Libéria e do Haiti, considerava Nogueira, "pode dizer-se com verdade que os Negros têem desmentido a asserção dos pedantes ethnologos, que alegando a sua natural inferioridade, os declaram incapazes de cuidarem de si mesmos." E centra o seu arrazoado, — que contestava também as teorias racistas de proeminentes africanólogos portugueses — no progresso verificado no Haiti, desde a proclamação da independência do domínio francês, em 1804, pelo general haitiano Toussaint Louverture.

Nogueira conta pormenorizadamente a história do novo país (hoje é ligeiramente repetida nas enciclopédias), desde que, em 1492, ali aportou Cristóvão Colombo, ocupando o território habitado por uma "raça caraíba, que os hespanhoes destruíram apesar do bem que os tinha recebido, substituindo-a por Negros d'Africa, importados como escravos, e que eram mais vigorosos e trabalhadores."

Jorge Luís Borges, logo no primeiro parágrafo do seu livro de crónicas irónicas História Universal da Infâmia (1935) reza assim sobre os primórdios da ocupação do Haiti pelos colonizadores espanhóis:

Em 1517, o padre Bartolomé de las Casas teve muita pena dos índios que se extenuavam nos laboriosos infernos das minas de ouro das An-tilhas e propôs ao imperador Carlos V a importação de negros, que se extenuaram nos laboriosos infernos das minas de ouro das Antilhas. A essa curiosa variação de um filantropo devemos factos infinitos. Enume-ra-os, na mesma toada irónica, terminando a lista com o napoleonismo corajoso e encarcerado de Toussaint Louverture, a cruz e a serpente no Haiti, o sangue das cabras degoladas pela catana do papaloi, a habanera mãe do tango, o candombe.

Meio século atrás, Nogueira registava que em Port-au-Prince já existia um conservatório, uma escola de Medicina, diversos estabelecimentos de instrução secundária, que o seu comércio era considerável e positivas as finanças públicas. Desta e doutras verificações, ele parte para o desempenho da colonização portuguesa: "E não nos impressiona a objecção de que civilisar os indígenas das nossas possessões d'Africa é o mesmo que eman-cipar essas colónias. Se ao mesmo tempo que educando o Negro tratarmos de aclimar o Branco onde isso for possível este será ainda por muito tempo um apoio seguro para nós. Mas dado que afinal a colónia se venha a emancipar — e esse é o destino de todas as colónias —, que devemos preferir: conserval-a estéril e improductiva como até agora, ou convertel-a em uma nação amiga, e mesmo irmã ao menos sob o ponto de vista da civi-lisação e dos costumes?"

Como é imaginável, este excepcional colono, autodidacta formado certa-mente no tempo em que viveu em Pernambuco, ainda numa época de plena escravatura dos negros levados de África para as minas, engenhos e planta-ções, fazia o contraponto da política colonial portuguesa vigente.

Pois o Haiti e outros territórios das Antilhas colonizados por espanhóis, holandeses, franceses, ingleses e norte-americanos, como Cuba, Martinica, Jamaica e Guiana, assumir-se-iam, no início do século XX, como faróis da luta dos negros de todo o mundo pela dignificação da Raça escravizada e oprimida durante quatro séculos, cujas vozes se fizeram ouvir em livros, revistas e congressos da América, de África e da Europa. Entre as primeiras, nenhum estudioso das literaturas do chamado Terceiro Mundo ignora quem foi Nicolás Guillén, de Cuba, Aimé Césaire e Frantz Fanon, da Martinica, Carlos Moore, da Jamaica, Léon Damas e René Maran, da Guiana, e Jacques Roumain e Jean Price-Mars, do Haiti.

A essas vozes se juntaram as de outros negros e mestiços das colónias de África (lembremos apenas a de Leopold Sédar Senghor, do Senegal, a mais audível na época, e no que toca a Angola, a de Agostinho Neto e Viriato da Cruz, já na segunda metade do século XX). Viriato evoca mesmo o libertador do Haiti, Toussaint, a par do Zumbi brasileiro, no seu poema Mamã Negra (Canto de Esperança), de 1961, e Neto já evocava Bamako, um poema feito depois da conferência panafricana realizada na capital do Mali, em 1954.

Refira-se que esta conferência antecedeu a que se realizaria, no ano seguinte, em Bandung (Java), reunindo 29 congressistas da África e Ásia. Foi denominada Conferência dos Povos Não Alinhados (só não participaram representantes de Israel, Coreia e África do Sul). Foi esta a primeira confe-rência dos países do Terceiro Mundo, na qual se exigiu a independência dos povos oprimidos e o respeito pelos direitos do homem. Presidida pelo pri-meiro-ministro da Índia, Nehru, pode compreender-se que foi a realização deste conclave que encorajou as primeiras investidas dos indianos contra a colónia portuguesa de Goa.

Nesse mesmo ano, numa palestra realizada na Sociedade de Geografia de Lisboa, para encerramento da Semana do Ultramar, Adriano Moreira clas-sificava Nehru, promotor da Conferência dos Não Alinhados, como "um velho e ressentido adversário da presença da raça branca na África e na Ásia", sustentando que "condenar todo e qualquer colonialismo, quer o colonialis-mo espaço-vital, quer o colonialismo missionário, é evidentemente uma po-sição racista contra os brancos, porque é justamente a presença dos brancos que terá de fazer-se terminar, para executar tal princípio."

Hoje, vendo a pobreza e a desgraça de um Haiti que deu ouro, diamantes, açúcar, algodão, tabaco e madeiras nobres à América e à Europa, contra si próprio e a favor de alguns, devemos pensar, a par dos louváveis impulsos emocionais, que toda a ajuda a dispensar ao seu povo de maioria negra e mestiça e de minoria branca é um imperativo da consciência da Humanidade face à Natureza e à História.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Caminhos da Mineralogia - (a modernidade)

via Sopas de Pedra by A. M. Galopim de Carvalho on 1/25/10
OS TRABALHOS INOVADORES nos domínios da análise e da sistemática químicas levados a efeito por Lavoisier (1743 – 1794), tragicamente guilhotinado na voragem da Revolução Francesa, contribuíram decisivamente para que a Mineralogia se elevasse acima da ciência empírica que fora até aí. Nas classificações mineralógicas que se seguiram a este alvorecer da química moderna, foram usadas não a natureza dos catiões metálicos constituintes, mas sim os respectivos grupos aniónicos. Da classificação em "minerais de ferro", "minerais de cobre", "minerais de chumbo", etc., passou-se a outra que distingue sulfatos, carbonatos, cloretos, tungstatos, etc.

Do outro lado do Atlântico, seguindo esta nova perspectiva, o mineralogista James Dwight Dana propunha, em 1837, o seu System of Mineralogy, uma classificação abrangente das muitas centenas de espécies então conhecidas que, com algumas achegas que a melhoraram e valorizaram, chegou aos nossos dia e está patente na organização das colecções dos museus e das universidades e escolas de todo o mundo. A utilização dos raios-X no conhecimento da estrutura íntima da matéria cristalina marcou o começo do século XX, provou a existência de redes atómicas na sua constituição e permitiu a ao cristalógrafo alemão, Hugo Strunz, em 1941, melhorar a classificação de Dana, sobrepondo-lhe um critério estrutural, nomeadamente nos silicatos, nos boratos, nos fosfatos. A cristalografia estrutural pôs como que um ponto final à velha cristalografia morfológica, usada no passado como precioso complemento na diagnose das espécie minerais, sendo hoje um domínio importante da física do estado sólido, arrastando consigo o vasto mundo dos minerais.

Há pouco mais de uma vintena de anos surgiu uma nova tendência classificativa dos minerais, essencialmente estrutural, em substituição da velha classificação química. Esta nova via, proposta pelo português José Lima-de-Faria, é uma espécie de extensão, a todo o reino mineral, da classificação estrutural dos silicatos, de Strunz. Se é certo que o progresso científico assenta na criatividade e na não estagnação, não é menos certo que é difícil mudar hábitos mentais e apontá-los para novos rumos. A inovação necessita de tempo. As bases da moderníssima classificação estão lançadas, porém a sua aplicação está ainda longe de ser realidade.

Beldroegas de muitas maneiras

via Sopas de Pedra by A. M. Galopim de Carvalho on 1/17/10
É SABIDO, ENTRE FAMILIARES E AMIGOS mais chegados, o meu gosto muito especial pelas beldroegas. Estas ervinhas que «já mataram a fominha a muita gente», como lembrou Monarca Pinheiro, carnudas e aciduladas, são boas nas sopas, nas saladas, no esparregado e, até, em jeito de peixinhos-da-horta. Para além do seu interesse gastronómico tenho com elas uma profunda ligação dos tempos da adolescência. Nesses anos era frequente acampar com o meu irmão Mário e mais dois ou três amigos em locais não muito afastados da cidade, escolhidos em função da facilidade do transporte ou da caminhada a pé, do tempo disponível ou de um qualquer critério de ocasião.

Havia nesse tempo acampamentos promovidos pela extinta Mocidade Portuguesa, a organização fascista para a juventude, paralela ao sistema escolar e obrigatória dos sete aos dezoito anos. Com toda a logística assegurada por militares, tudo nestes acampamentos lembrava a tropa, do comandante do campo ao enfermeiro de serviço permanente e aos magalas cozinheiros que preparavam o rancho diário em velhas cozinhas de campanha, sobrevivências fumegantes da Grande Guerra. Também acampei uma vez como filiado na dita organização, por altura de uma grande concentração nacional, em que se comemorava o feito heróico de Aljubarrota, com missa campal, desfile, fanfarra, bandeiras, provas desportivas, discursos patrióticos e rancho melhorado.

Mas não foram esses acampamentos que me deram a conhecer as beldroegas. Esses ajudaram a moldar o antimilitarismo que me marcou para a vida e muito condicionou a minha postura durante o serviço militar quando, já adulto, o tive de cumprir. Foram os outros, os feitos em liberdade com os meus amigos, percorrendo os campos, parando aqui ou ali, ao sabor dos acasos, da beleza do local ou em função de conhecimentos e amizades que se iam estabelecendo. Tanto podíamos ficar num eucaliptal porque, ao nascer do dia e ao cair da tarde, o aroma libertado nos dava a sensação de estarmos a respirar saúde, como sob um alpendre, junto ao monte de uma qualquer herdade, ou dentro de uma horta, à beira do poço. Viver a natureza e do muito que ela nos dá, com um mínimo de cómodos e utensílios, e em convívio quase constante com os camponeses, fazer campismo, nas condições e no tempo em que nós o fizemos, foi uma escola para a vida. Das Ciências Naturais, às Sociais e Humanas, aí se abriram muitas das portas para o mundo à nossa frente.

Abastecendo-nos nas vendas, colhendo o que nos autorizavam colher ou, mesmo, o que algumas vezes ousávamos apanhar, íamos prolongando ao máximo a nossa permanência no mundo rural. Foi numa destas deambulações em que montámos tenda numa horta fresca e verdejante, ao abrigo de um frondoso salgueiro, que conhecemos bem de perto as beldroegas e as elegemos como prato de todos os dias. Com azeite ou no pingo do toucinho, com grão, com queijo e/ou com ovos, de tomatada, em "sopas de entulho" com massa, arroz ou batata, e tudo o mais que tivéssemos à mão, as beldroegas entraram, forte, na minha vida. A princípio, as pessoas do campo com quem íamos contactando mantinham, face a nós, uma certa reserva, depois aceitavam-nos e até nos achavam graça. "Rapazes da cidade feitos malteses", diziam. Daí para a frente acamaradavam connosco, algumas vezes aos serões, em redor do lume, e não era raro presentearem-nos com algo que traziam de casa, uns ovos, um queijinho, duas cabeças de alho …

- "Baldoregas" é o que aí não falta! – Dizia-nos o tio Inácio, o hortelão da herdade das Cortiçadas. – Isso é praga que alastra por todo o lado, bem bebida que anda junto aos roços da rega. Arranquem-na toda que isso até me faz jeito. Escuso de a mondar. Está a tirar a força ao tomate, ao feijão e a tudo o mais que trago aí.

Tão grandes eram e tão fartas, que bastavam uns quatro ou cinco pés para nos encher a panela e eram tantas que, sem mexer os pés do mesmo sítio, podíamos apanhar um molho do tamanho de uma braçada. E tenras, que até os caules mais grossos se podiam cozinhar.

- Mas então, porque é que vossemecê não as leva para o mercado? – Perguntei, admirado com tamanho desinteresse deste homem por um legume tão saboroso.

- Isso é obra que ninguém compra. Só os porcos pegam nelas e é preciso não terem mais nada. Aí o pessoal mais pobre, sem emprego, é que as apanha para matar a fome à família.

E era assim, de facto, nesses anos de grande pobreza para muitos dos meus conterrâneos. Os tempos mudaram e com eles também os hábitos alimentares. E hoje, pouco mais de seis décadas volvidas sobre este diálogo, quem quiser beldroegas paga-as por bom preço e é preciso ir cedo a um mercado abastecedor.

A versão escrita de João Franco do regicídio de 01 de Fevereiro de1908.

http://historiaaberta.com.sapo.pt/lib/doc023.htm

Fonte: In Franco Castello-Branco, João, Cartas D’El-Rei D. Carlos I a João Franco Castello-Branco seu último Presidente do Conselho, Lisboa, 1924

Cônsul do Sião em Lisboa, testemunha ocular do regicídio [Pinto Basto]

via BLOGUE REAL ASSOCIAÇÃO DE LISBOA by Monarquia Lisboa on 1/28/10

O regicídio, eventualmente o mais importante acontecimento da história portuguesa contemporânea pelos efeitos imediatos que produziu e pelas ondas de choque que ainda hoje se repercutem, teve um grande impacto na corte siamesa, que foi colhida de espanto e requereu de imediato aos seus embaixadores e cônsules na Europa detalhada informação sobre a tragédia. Da consulta da abundante correspondência diplomática a que tenho acedido, o processo respeitante ao assassinato do Rei D. Carlos e do Príncipe Luís Filipe parece corroborar as conhecidas versões, mas também abrir novas pistas para a compreensão dos factos ocorridos no fim de tarde daquele dia ameno de inverno de 1 de Fevereiro de 1908.

Trinta e seis horas após o crime, o Príncipe Devawongse Varoprakan, irmão do rei Chulalongkorn do Sião e Ministro dos Estrangeiros siamês, foi informado em Banguecoque da gravidade da situação portuguesa. O telegrama vinha de Paris e fora enviado pelo embaixador siamês em Paris, Príncipe Charon. Informava laconicamente que o Rei de Portugal fora alvo de atentado e que não sobrevivera. Sugeria o Príncipe Charon que o Rei Chulalongkorn fosse informado com a máxima urgência e que fosse enviado telegrama de condolências à Rainha Dª. Amélia, à Rainha Mãe [Maria Pia] e ao novo Rei D. Manuel. Na manhã seguinte, o Cônsul Geral de Portugal em Banguecoque informava o MNE siamês da ascensão ao trono do Infante D. Manuel, pedindo às autoridades siamesas que proclamassem luto em memória do Rei falecido. O titular dos Estrangeiros siamês respondeu ainda nessa tarde ao representante português junto da corte, informando-o que o Rei Chulalongkorn fora acometido de grande pesar pelas terríveis novas. No dia 14 de Fevereiro, num longo e detalhado relatório, o Príncipe Charon dava conta ao monarca siamês dos acontecimentos. O então cônsul siamês em Lisboa, Pinto Basto, era amigo pessoal do Rei D. Carlos e fora testemunha presencial do atentado, pelo que a informação transmitida por Charon provinha de fonte absolutamente fidedigna e com acesso a altas instâncias do Estado e da corte portugueses. O Príncipe Charon, ao saber do regicidio, apanhara de imediato o Sud-Express e chegara a Lisboa ainda se faziam preparativos para as solenes exéquias. Pinto Basto lavrou o seu testemunho. Desse, avultam os seguintes elementos, que estimamos importantes:

1. Pinto Basto encontrava-se a cerca de 35 metros do landau que transportava a família real. 2. Ao iniciar-se o tiroteio, Pinto Basto correu em direcção ao centro do tiroteio e verificou que a polícia atirava em todas as direcções, tendo escapado por pouco ao fogo dos agentes, que pareciam desnorteados e incapazes de seleccionar alvos. 3. Pinto Basto participou na caçada aos regicidas e agarrou um deles, entregando-o à polícia que inexplicavelmente o abateu no próprio local. 4. Pinto Basto entrou no Arsenal e ajudou a retirar os corpos do Rei e do Príncipe Real. Verificou que o Rei se encontrava morto, pois recebera fatal disparo na medula. O Príncipe Luís Filipe agonizava e não resistiu por muitos minutos aos ferimentos recebidos. Quanto às causas do regicídio, Pinto Basto esclarecia: 1. O Atentado não fora obra de anarquistas, mas decorrera de um vasto complot de revolucionários profissionais, bem organizados, muito bem adestrados e dotados de armamento de grande precisão. 2. A finalidade do atentado era a de matar por atacado toda a família real, bem como o Presidente do Governo. 3. Depois de desenvolver os seus pontos de vista muito críticos a respeito de João Franco, Pinto Basto não deixava de tecer elogios às reformas que o chefe do governo desenvolvia, bem como destacar as qualidades de serviço e honestidade que sempre evidenciara. 4. Os assassinos eram portugueses e alguns destes parece terem sido contratados para executar o crime. O número de criminosos envolvidos seria muito superior ao dos terroristas abatidos pela polícia. Pinto Basto afirma que ao longo de todo o trajecto havia atiradores de atalaia - todos envergando capas ou longas samarras - e que ninguém parece ter-lhes prestado atenção. Chulalongkorn recebeu e leu o longo relatório e informou posteriormente o seu MNE que ficara muito abalado e perplexo com tudo o que lera. O Sião e Portugal iniciavam um longo afastamento que só seria emendado em finais da década de 1930.

Miguel Castelo Branco, publicado aqui e aqui