segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Beldroegas de muitas maneiras

via Sopas de Pedra by A. M. Galopim de Carvalho on 1/17/10
É SABIDO, ENTRE FAMILIARES E AMIGOS mais chegados, o meu gosto muito especial pelas beldroegas. Estas ervinhas que «já mataram a fominha a muita gente», como lembrou Monarca Pinheiro, carnudas e aciduladas, são boas nas sopas, nas saladas, no esparregado e, até, em jeito de peixinhos-da-horta. Para além do seu interesse gastronómico tenho com elas uma profunda ligação dos tempos da adolescência. Nesses anos era frequente acampar com o meu irmão Mário e mais dois ou três amigos em locais não muito afastados da cidade, escolhidos em função da facilidade do transporte ou da caminhada a pé, do tempo disponível ou de um qualquer critério de ocasião.

Havia nesse tempo acampamentos promovidos pela extinta Mocidade Portuguesa, a organização fascista para a juventude, paralela ao sistema escolar e obrigatória dos sete aos dezoito anos. Com toda a logística assegurada por militares, tudo nestes acampamentos lembrava a tropa, do comandante do campo ao enfermeiro de serviço permanente e aos magalas cozinheiros que preparavam o rancho diário em velhas cozinhas de campanha, sobrevivências fumegantes da Grande Guerra. Também acampei uma vez como filiado na dita organização, por altura de uma grande concentração nacional, em que se comemorava o feito heróico de Aljubarrota, com missa campal, desfile, fanfarra, bandeiras, provas desportivas, discursos patrióticos e rancho melhorado.

Mas não foram esses acampamentos que me deram a conhecer as beldroegas. Esses ajudaram a moldar o antimilitarismo que me marcou para a vida e muito condicionou a minha postura durante o serviço militar quando, já adulto, o tive de cumprir. Foram os outros, os feitos em liberdade com os meus amigos, percorrendo os campos, parando aqui ou ali, ao sabor dos acasos, da beleza do local ou em função de conhecimentos e amizades que se iam estabelecendo. Tanto podíamos ficar num eucaliptal porque, ao nascer do dia e ao cair da tarde, o aroma libertado nos dava a sensação de estarmos a respirar saúde, como sob um alpendre, junto ao monte de uma qualquer herdade, ou dentro de uma horta, à beira do poço. Viver a natureza e do muito que ela nos dá, com um mínimo de cómodos e utensílios, e em convívio quase constante com os camponeses, fazer campismo, nas condições e no tempo em que nós o fizemos, foi uma escola para a vida. Das Ciências Naturais, às Sociais e Humanas, aí se abriram muitas das portas para o mundo à nossa frente.

Abastecendo-nos nas vendas, colhendo o que nos autorizavam colher ou, mesmo, o que algumas vezes ousávamos apanhar, íamos prolongando ao máximo a nossa permanência no mundo rural. Foi numa destas deambulações em que montámos tenda numa horta fresca e verdejante, ao abrigo de um frondoso salgueiro, que conhecemos bem de perto as beldroegas e as elegemos como prato de todos os dias. Com azeite ou no pingo do toucinho, com grão, com queijo e/ou com ovos, de tomatada, em "sopas de entulho" com massa, arroz ou batata, e tudo o mais que tivéssemos à mão, as beldroegas entraram, forte, na minha vida. A princípio, as pessoas do campo com quem íamos contactando mantinham, face a nós, uma certa reserva, depois aceitavam-nos e até nos achavam graça. "Rapazes da cidade feitos malteses", diziam. Daí para a frente acamaradavam connosco, algumas vezes aos serões, em redor do lume, e não era raro presentearem-nos com algo que traziam de casa, uns ovos, um queijinho, duas cabeças de alho …

- "Baldoregas" é o que aí não falta! – Dizia-nos o tio Inácio, o hortelão da herdade das Cortiçadas. – Isso é praga que alastra por todo o lado, bem bebida que anda junto aos roços da rega. Arranquem-na toda que isso até me faz jeito. Escuso de a mondar. Está a tirar a força ao tomate, ao feijão e a tudo o mais que trago aí.

Tão grandes eram e tão fartas, que bastavam uns quatro ou cinco pés para nos encher a panela e eram tantas que, sem mexer os pés do mesmo sítio, podíamos apanhar um molho do tamanho de uma braçada. E tenras, que até os caules mais grossos se podiam cozinhar.

- Mas então, porque é que vossemecê não as leva para o mercado? – Perguntei, admirado com tamanho desinteresse deste homem por um legume tão saboroso.

- Isso é obra que ninguém compra. Só os porcos pegam nelas e é preciso não terem mais nada. Aí o pessoal mais pobre, sem emprego, é que as apanha para matar a fome à família.

E era assim, de facto, nesses anos de grande pobreza para muitos dos meus conterrâneos. Os tempos mudaram e com eles também os hábitos alimentares. E hoje, pouco mais de seis décadas volvidas sobre este diálogo, quem quiser beldroegas paga-as por bom preço e é preciso ir cedo a um mercado abastecedor.

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