terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Um grande museu no fim do mundo

Um grande museu no fim do mundo

via Sopas de Pedra de A. M. Galopim de Carvalho em 08/02/09
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À SEMELHANÇA DOS ESTADOS UNIDOS da América, da China ou da Mongólia, o Canadá está entre os países que maior número de espécies de dinossáurios tem trazido ao conhecimento científico. E a expressão pública que melhor evidencia essa importante contribuição para o engrandecimento e visibilidade da Paleontologia, é o Royal Tyrrel Museum of Paleontology, em Drumheller, num amplo e desolado vale a norte da província de Alberta, integrado no Dinosaur Provincial Park, criado em 1955. Esta reserva natural foi classificada e está protegida como Património Mundial da Humanidade (World Heritage), pela UNESCO. Para além da pradaria primitiva e dos fundos aluviais do Red Deer River (Rio do Veado Vermelho), o parque abrange uma vasta extensão de badlands, isto é, terrenos desertificados, constituídos por camadas sedimentares horizontais de natureza areno-argilosa, profusamente sulcados por barrancos. É destas camadas, datadas do Cretácico superior (77 a 74 milhões de anos), que se retiraram, em quantidade e em óptimo estado de conservação, a maioria dos fósseis de dinossáurios expostos neste magnífico Museu. Criado em 1985, cujo nome evoca o geólogo Joseph Burr Tyrrel, dos Serviços Geológicos do Canadá, que, em 1884, descobriu naquela região os primeiros ossos de um grande carnívoro, parente muito próximo do conhecido Tyrannosaurus rex, a que deu o nome de Albertosaurus (do nome da província canadiana de Alberta). Desde então, e durante mais de um século de explorações, foram escavados nestes terrenos e descritos cerca de uma centena de espécies de dinossáurios e de outros vertebrados seus contemporâneos.
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Em Novembro de 1995 tive o prazer e a honra de ser convidado pela direcção da Casa do Alentejo de Toronto a participar nas festividades da "XII Semana Cultural Alentejana". Foi através de Vasco Osvaldo Santos, um luso-canadiano de quem nos tornámos amigos. Como não podia deixar de ser, programei uma visita às badlands do Drumheller Valley e ao citado Museu.
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Para visitar o Tyrrel Museum, uma pérola nos confins do mundo, houve que voar algumas horas até Calgary, capital da província de Alberta, sobre miríades de lagos escavados pelo gelo da última grande glaciação, a Wisconsin, como por lá se diz. No máximo da sua expansão para sul, há uns 20 000 anos e à semelhança do que aconteceu na Europa e na Ásia, o glaciar árctico atingiu esta latitude, sulcando os terrenos por onde passou. Ao recuar, por fusão, o gelo deixou uma vastíssima paisagem repleta de depressões convertidas depois em lagos de todos os tamanhos. A hora a que sobrevoei esta região proporcionou-me um espectáculo inesquecível. Cerca de 10 000 metros abaixo, milhares de "espelhos" reflectiam o sol, fazendo-o entrar, de baixo para cima, pelas janelas do Boeing.
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O trajecto até Drumheller foi feito em rectas intermináveis, traçadas numa planura imensa, quase como uma mesa de bilhar. Comparativamente, a chamada planície alentejana seria considerada uma paisagem montanhosa. Foi uma corrida de cerca de duas horas entre campos de trigo e, pontualmente, aqui e ali, os característicos engenhos de bombear petróleo bruto, quais enormes e isolados passarões de ferro, em lento e cadenciado sobe-e-desce.
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Drumheller é uma muito pequena cidade, numa paisagem semidesértica, provinciana, ao estilo de muitas do oeste americano, de onde sobressai, na periferia e em altura, a característica construção de madeira para guardar o cereal. Perdida para lá da pradaria, nas chamadas badlands (terra de barrancos e inculta), viu a sua pacatez invadida por formigueiros de gente que por ali tem de passar a caminho do Tyrrel. Este fabuloso museu, situado a uma dezena de quilómetros mais à frente, no citado vale, é um oásis no tórrido e ressequido Verão local e um conforto suficientemente aquecido no gelo branco do Inverno. Do hotel nesta cidadezinha, um enorme bloco de betão a condizer com a afluência à única oferta turística local (o Dinosaur Provincial Park) guardo recordação da simpatia e afabilidade do pessoal, do tamanho desmesurado dos quartos e das camas, de uma cozinha sem graça, deslavada, muito americana, e de uma zurrapa, tipo Mateus Rosé envinagrado. Além deste "néctar", só cerveja e coca-cola.
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A meio da noite, o silêncio e a vastidão da planura sem fim eram atravessados pelo silvo interminável, cantante, do comboio. Quais serpentes quilométricas, estas composições que atravessam o continente de costa a costa, puxados por uma máquina à frente, empurradas por uma outra atrás e, às vezes, com mais outra, a meio, a ajudar, demoram tempo e mais tempo a passar, matraqueando nos carris num "pouca-terra" que parece não mais acabar. Muito antes anunciado pelos seus silvos, só muito, muito depois esses sons se apagam na lonjura do horizonte.
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Nos vários dias que durou a nossa vista ao Tyrrel, tivemos, ao nosso serviço, um taxi, um carrão americano dos anos 50, conduzido por uma mulher grande e desembaraçada, tipo cow boy do Far West, que nos ia levar, pela manhã, e trazer, ao fim da tarde e que, simpaticamente, deu umas voltas connosco a fim de nos mostrar a sua cidade. No museu, um restaurante self service, possibilitava-nos uma refeição vulgar, rápida e sem história, permitindo-nos o tempo necessário à observação pormenorizada dos conteúdos e das soluções museográficas utilizadas e, ainda, o convívio, em termos profissionais e humanos, com os colegas canadianos. A acrescentar à memória desta frutuosa e agradável estadia, recordo um certo embaraço que experimentei ao ser solicitado para proferir uma palestra para o staff da casa, sobre dinossáurios em Portugal. Formado numa geração em que imperava a francofonia, o meu inglês falado ou escrito deixa muito a desejar. Mas como os nomes dos fósseis são universais, em latim ou latinizados, como os nomes das nossas jazidas não têm tradução e com o auxílio de algumas dezenas de diapositivos (que sempre viajavam comigo), acabei por lhes transmitir a informação que me foi ali possível.
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Este museu, um deslumbramento para os que gostam dos dinossáurios, situado a milhares de quilómetros de distância dos potenciais interessados, complementado por um bem organizado e eficaz serviço de apoio pedagógico, dirigido, preferencialmente aos grupos escolares, recebe anualmente, imagine-se, uma média de 250 000 visitantes idos de todo o mundo. Mais do que a maioria dos museus das grandes cidades.
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Este museu, no fim do mundo, longe de tudo e de todos e o seu enorme sucesso são a prova mais evidente do poder atractor dos "grandes bichos". Esta evidência deveria ser motivo de reflexão por parte de quem, entre nós, detém o poder mas, infelizmente, não tem sido. Lembremo-nos do estado de abandono e da consequente e irremediável degradação das jazidas de Carenque, da Praia Grande e do Cabo Espichel.

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