sábado, 8 de agosto de 2009

(título desconhecido) - [Não resisto]

via DIÁRIO DE UM PACIENTE II de Andre Moa em 10/07/09

NÃO RESISTO
(E porque não resisto, aí vão uns bons nacos de prosa que me deixaram todo 'prosa'.
André Moa

«Caríssimo Autor,
No rescaldo do excelente lançamento de ontem, tinha hoje à minha espera o texto que vai em anexo do Dr. Beja Santos, a quem tínhamos enviado o livro, reforçado por um telefonema há minutos a pedir desculpa por não ter podido estar presente no lançamento e a reforçar o quão notável achou o seu testemunho.

Aqui lho envio, pois, com todo o gosto que imagina, e a pedido do Dr. Beja Santos.
Um abraço,
Ana Pereirinha
Mau tempo no anal
Beja Santos

Começando por um lugar-comum, constate-se que o cancro é uma das doenças mais temidas e que evoca emoções fortes não só no doente mas também na família. Aliás, é vasta a bibliografia respeitante ao doente oncológico e à sua família, diferentes ramos científicos (caso da Psicologia Oncológica) debruçam-se sobre as perturbações psicossociais associadas ao diagnóstico do cancro, terapêuticas e acompanhamento da família do doente. O cancro é foco contínuo de ansiedade e stress, levanta problemas delicados ao processo de comunicação entre os profissionais e os doentes, orienta-se pela adesão terapêutica e qualidade de vida possível para o doente, na medida em que os tratamentos podem recorrer à cirurgia, radioterapia ou quimioterapia, com intuito de controlar ou exterminar a doença, há sempre efeitos secundários como náuseas, vómitos prostração ou perda de cabelo, fazem-se acompanhar de desconforto físico, tristeza ou medo de morrer.
Cada doente é um caso individual, não há nível idêntico de raiva ou revolta quando se conhece o diagnóstico em dois ou mais casos, temos depois a aceitação durante o tratamento, a relação entre os profissionais de saúde e o doente pode ser fundamental no apoio e na recuperação do doente.
Vêm estas observações genéricas a propósito de um livro singular, o diário de um paciente que sofre do recto e da próstata, os flagelos quase que se sobrepõem, as dores são excruciantes, o doente enfrenta os turbilhões dos diferentes sofrimentos, consegue encontrar humor na observação que faz à vida na enfermaria e aos tratamentos. É, no seu todo, um hino ao optimismo, um relato espantoso de uma vitória sobre esses sofrimentos, páginas de sinceridade de quem continua a viver agarrado à vida rememorando os ciclos temporais, os amores, as amizades, o estro poético, as leituras, o registo da evolução da doença, as relações com Deus e a indiferença perante o fenómeno do divino, a serena preparação para a morte, venha ela quando vier. O livro chama-se "Mau tempo no anal" e o seu autor é André Moa, o canceroso que sobreviveu e enganou a morte, com sangue, suor e lágrimas (Quidnovi, 2009).
É um relato, um testemunho a que nenhum doente se deve furtar. O melindroso é troçado e aligeirado: "dona Bexiga", ou "o Sr. Cu-Recto". É mordaz na enfermaria, pois esta é um ambiente que reproduz todos os outros ambientes. É o caso de um doente que chega e parte rapidamente, sem estabelecer comunicação: "Ontem foi internado um dandy. De quarenta, cinquenta anos? Oficial? Sargento? Civil? Foi operado a um ouvido. Já não é a primeira operação do género a que se submeteu. Passou o dia muito calado, a maior parte do tempo a ler um livro volumoso cujo título não consegui decifrar. Literatura policial, será? Já teve alta, hoje. Despediu-se quase tão laconicamente como quando chegou. Desejei-lhe as melhoras e que não sentisse necessidade de voltar. Nem o nome dele me ficou. Chamo-lhe Meteorito com ânsias de Estrela". Tudo começa quando ao irmão lhe é detectada uma doença maligna, à cautela, porque há factores hereditários, faz exames e é aqui que ele sabe que tem um tumor, prontamente André Moa se atira ao combate. Supera as crises, adapta-se, seguramente que a ideia da morte vai e vem, no seu diário ele fala dessa fé na vida e a sua descrença nos valores divinos. Agarra-se à família, ao netinho, aos amigos, responde ao telemóvel, está sempre com mais esperança do que permite a lógica da dor. No seu diário fala do que sabe e do que não entende nos tratamentos. Gosta da equipa de saúde, faz a colonoscopia, a TAC, leva-nos a partilhar do seu estado de alma: "O veredicto chegou inexorável. A intervenção no recto será mais premente do que a inicialmente prevista, pelo que não poderá ser feita via rectal, mas pelo abdómen. Neste caso não poderei ser operado para já à próstata: uma cirurgia é suja, a outra é limpa... Está a ver, dona Próstata? Tanta chinfrineira para nada". Vai ser sujeito a um "bombardeamento nuclear", um conjunto de sessões de radioterapia e regista as primeiras dores: "Na noite passada não preguei olho. Um forte ataque hemorroidal, doloroso até mais não. Com estas dores constantes, sem posição para estar deitado, sentado ou de pé, sem qualquer medicamentação que me alivie pouco que seja, encontro-me numa situação desesperante... Presentemente estão a servir-me de muletas duas oxibutininas, comprimidos, 5 mg por dia, dois pacotinhos de nimesulida inibsa, 100 mg, granulado para suspensão oral, e dois comprimidos de diosmina + hesperidina, 450 mg + 50 mg. Que o organismo reaja segundo as boas intenções de quem tal prescreveu e de quem isto toma. Amen".
Regista aturadamente os tratamentos, a endoscopia, o bombardeio nuclear, ao todo 20 sessões, quimioterapia, tudo o que seja necessário para afastar a dona Morte, dia após dia arranja forças para acreditar que estas situações anormais não podem prostrar um ânimo forte, a dose de químio, a dose de rádio, o encontro com as máquinas que o doente humaniza: "De barriga para cima, o meu olhar bate de chapa na cabeça do monstro degolado e nele se tem fixado, a estudar-lhe a anatomia, a tentar decifrar os seus dotes, a sua actividade, os seus intentos, o modo de funcionamento. Hoje reparei que a cabeça do robot até orelhas tem. Fazem lembrar uns auscultadores achatados e bem colados ao pavilhão auricular".
De forma brutal, vem o mau tempo no anal, continuam as doses de químio e rádio, continua algaliado e ele não resiste a confessar: "Urinar para mim tornou-se um martírio; a sanita, a minha pedra sacrificial... Há três noites que não durmo praticamente nada. Tenho corrido para a casa de banho de 15 em 15 minutos, pelo que não dá tempo para fechar os olhos e adormecer. Urino com dores, mas urino".
Fim da radioterapia, é o compasso de espera para a operação, continua a urinar muitas vezes, chega o dia D, e depois de rapado vai para o bloco operatório. O seu optimismo triunfou, seguem-se as confirmações de que o cancro não aguentou esta luta. Mais tarde, seguir-se-á a operação à próstata. André Moa aprendeu (ou reaprendeu?) o que é verdadeiramente significante e o que deve ser tratado como insignificante, fica feliz com a sua vida nova, deixa-nos um relato interessantíssimo sobre literacia em saúde a propósito do seu relatório da TAC e um dia o diário finda, finda porque entrou num novo estádio de saúde, André Moa sente a acalmia corporal, entoa loas à vida e diz-nos à despedida: "Basta de tanto sofrer. Eu quero viver muito e bem. Eu quero viver muito bem. Amen. Fim do diário, que ainda não de mim".
A dedicatória do livro também pode ajudar os últimos hesitantes acerca da urgência desta leitura: "A todos quantos necessitam, necessitaram ou venham a necessitar de uma palavra de coragem que os ajude a suportar e a superar os reveses da vida".

Caríssima editora,
Cara Ana Pereirinha,

Que lindo, não é, este texto do Dr. Beja Santos? Só agora abri o correio, só agora o li, pelo que ainda me sinto emocionado, com um orvalhinho nos olhos. Agradeça-lhe muito em meu nome. Fez-me muito bem a sua leitura. Para mais no fim de um dia hospitalar e com notícias não muito agradáveis, já que tive hoje consulta e vi o resultado de umas análises feitas na passada segunda-feira, que mostram que o factor cancerígeno voltou a subir. Mau presságio. Assim, nunca mais paro de escrever diários. E eu que queria voltar-me para a ficção, a ter que continuar neste relato chão de uma realidade nadíssima agradável. É a vida como disse o outro e eu repito constantemente.
Um beijinho, cara amiga Ana.
Bem-haja por tudo, e agora por me ter encaminhado este belo texto, para mim muito salutar
André Moa

Caro Onésimo, acabo de ver e ler esta recensão do Dr. Beja Santos que a Ana Pereirinha fez o favor de me enviar. Ainda estou emocionado, Apresso-me a reencaminhá-la para ti, para partilhares desta doce e reconfortante emoção.
Um grande abraço.
André Moa

Magnífico!
Um bom presságio. Se já começa assim tão cedo, vais ver o que vai vir de reacções.
Grande abraço de parabéns.
E não te amedrontes com a subida. Isto nestes dias após a festa a adrenalina baixa e...
Grande abraço do
Onésimo

Querido André Moa,

Temos fé em si, porque a sua fé sem deus é mais contagiante do que qualquer nova descoberta química.
Assim o deixo antes do fim-de-semana, com a esperança que nos tem ensinado e de que já não sabemos abdicar!
Um grande beijinho,
Transmiti a sua mensagem ao Dr. Beja Santos,
Até segunda,
Ana»

Muito obrigado e bom fim-de-semana.
Beijinhos
André Moa

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