quarta-feira, 14 de novembro de 2012

M236 - Manuel Godinho Rebocho -“AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, ...

Continuação das mensagens M234 e M235

Manuel Godinho Rebocho
2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12 (Companhia de Caçadores Pára-quedistas 123 do Batalhão Caçadores Pára-quedistas 12)Bissalanca/Guiné
1972 a 1974

O Dr. Manuel Godinho Rebocho é hoje Sargento-Mor na reserva e foi 2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12, Bissalanca, 1972/74, escreveu um excelente livro "AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D'ÁFRICA", sobre as suas guerras em África (uma comissão em Angola e outra na Guiné combatendo por Portugal) e a sua análise ao longo dos últimos anos, de que resultou esta tese do seu doutoramento.

Nesta mensagem continua-se a publicação de alguns extractos do seu livro, já iniciadas nas mensagens M234 e M235:

III – A GUERRA DE ÁFRICA E O DESEMPENHO DAS ELITES MILITARES
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(continuação)

A "AFRICANIZAÇÃO" PORTUGUESA
Portugal virou-se, continuamente e cada vez mais, para as Colónias, a fim de preencher a sua necessidade de efectivos militares, tal como fizera no passado, embora nunca com a dimensão destas Campanhas. As tropas africanas representavam uma tradição de serviço ou colaboração com Portugal em tempos de necessidade, desde os primórdios das Colónias. Em quase todos os anos, entre 1575 e 1930, houve uma campanha colonial algures na África portuguesa e as forças auxiliares e irregulares africanas provaram ser indispensáveis. Desde a chamada «guerra preta» das campanhas de 1681 até ao Século XX estas detinham um passado de lealdade e podiam ser reunidas num curto período de tempo (Boxer, 1963: 32). Esta flexibilidade significava que Portugal não tinha de mobilizar um grande número das suas tropas continentais e de transportá-las para África, em tempos de crise colonial. Embora as campanhas anteriores tivessem sido operações de pacificação e não do mesmo género das insurreições modernas, com a sua temática política tinham, no entanto, criado um precedente para a extensa africanização das Campanhas por Portugal.
Allen Isaacman fez uma valiosa apreciação do uso de tropas recrutadas localmente na campanha de 1870-1902 pelo controlo do vale do Zambeze, quando afirma: "A capacidade de Lisboa de recrutar uma grande força africana proporcionou um apoio crucial para o seu sucesso. Só menos de três por cento do total do exército de vinte mil homens eram de ascendência portuguesa" (Isaacman, 1976: 65). Esta informação histórica contribuiu de forma muito significativa, para se compreender a evolução do nosso Exército e a formação dos Oficiais de carreira. Como abundantemente se provou ao longo de toda a investigação, os Oficiais de carreira nunca comandaram tropas nativas, o que significa, muito claramente, que estas campanhas de ocupação foram comandadas pelos chamados «oficiais tarimbeiros» ou seja, aqueles que efectuavam o seu percurso com origem em Soldado.
No Século XX, a «guerra preta» continuou a ser utilizada, tanto em operações de pacificação, até ao seu final em 1930, como na Primeira Guerra Mundial, e resistiu como uma força considerável na defesa das Colónias (Dias, 1932: 611 a 619). O General Norton de Matos tinha recomendado, em 1924, que fossem mantidos em Angola níveis de tropas indígenas de 15000 regulares apoiados por um sistema que pudesse mobilizar mais 45000 reservistas em tempo de guerra (Norton, 1924: 85). A dependência continuada das tropas coloniais como fonte de efectivos, era uma política de defesa estabelecida, e em 1924 foi calculado que, de todas as fontes, 460 000 homens, em 28 divisões, podiam ser utilizadas numa crise nacional (Villas, 1924: 72). Neste cálculo, Angola e Moçambique deveriam fornecer 71 por cento, ou 20 divisões, totalizando 325 000 homens.
Moçambique fora também base fértil de recrutamento para necessidades de tropas noutras Colónias desde o princípio do Século XX. Eram formadas uma ou duas companhias por ano e utilizadas em turnos de dois anos entre 1906 e 1932 (Martins, 1936: 34). Estas utilizações incluíam quase todas as Colónias: Angola, Guiné, Timor, Macau, São Tomé e Índia. Consequentemente, a reputação das tropas moçambicanas estava bem estabelecida em 1961.
Durante a Primeira Guerra Mundial, Portugal lutou em França, no Sul de Angola e no Norte de Moçambique. A maior campanha levada a cabo foi a defesa de Moçambique contra as incursões alemãs. Portugal enviou 32 000 homens da Metrópole e recrutou rapidamente outros 25 000 localmente (Cunha, Joaquim, 1977: 73; e, Selvagem, 1919: 410 a 416) (1).
Muitas companhias de pessoal indígena foram formadas e treinadas sob as mais difíceis condições, e tiveram um desempenho admirável nesta campanha. No final das hostilidades, um Major português que aí dirigira as tropas, reconheceu o seu papel vital neste conflito, afirmando: "Durante os quatro anos de luta, a nossa infantaria africana nativa lutou sempre com uma determinação corajosa, quando bem apoiada e dirigida... A maioria dos portugueses desconheceu esta valiosa colaboração pela causa por que lutávamos" (Aragão, 1926: 22 e 23).
Antes das campanhas de África (1961-1974), a história e os feitos das tropas africanas recrutadas localmente não foram muito apreciados, particularmente na Metrópole. A razão por que a sua contribuição permaneceu tão obscura é um mistério, apesar do facto ter sido o mais venerável de entre todos os poderes coloniais africanos (Cann, 1998: 133). John Cann considera esta falta de conhecimento público um mistério, todavia, a situação percebe-se claramente: os Oficiais de carreira, com mais cultura, foram os únicos a escrever as «crónicas dos feitos africanos»; como eles não comandavam, como nunca comandaram estas tropas, não lhes interessava elevar o seu desempenho, porque, ao fazê-lo, elevavam os feitos dos Oficiais tarimbeiros, que as comandavam. Afinal, as disputas entre os Oficiais dos vários quadros são tão antigas quanto o próprio Exército.
"Na campanha da África Oriental foram-nos muito dedicados os carregadores indígenas. Dos factos mais notáveis que testemunham essa dedicação podemos apontar, durante o cerco de Nevala, o feito de exemplar dedicação de uns 30 carregadores que foram buscar água a uns quilómetros de distância regressando uns 29, com a água colhida através das maiores dificuldades da marcha de noite, quando podiam facilmente ter fugido" (Martins, 1936: 80).
As Companhias de Carregadores, Auxiliares ou tropas de 3.ª linha tinham cerca de 150 homens e eram comandadas por Sargentos do Exército europeu (2), os quais, para o efeito, eram graduados em Capitães e passados alguns anos de bom desempenho, promovidos ao posto. Estes Oficiais eram conhecidos como "Oficiais da Mandioca" (3).
A longa experiência de "africanização" das nossas forças em África foi seguida no plano desenvolvido em 1968, no sentido de nivelar os esforços de recrutamento na Metrópole e expandir a força aos níveis desejados através do recrutamento cada vez maior no Ultramar. Os africanos que serviam nas unidades da frente representavam 30 por cento da força em 1966, e em 1971 tinham aumentado para 40 por cento. Esta expansão representou um aumento das tropas locais, em todos os teatros, de cerca de 30 000 para 54 500. No entanto, havia mais do que esta primeira camada de tropas no processo de "africanização".
Antes das campanhas e deste aumento, as tropas locais foram reunidas não só pelas FA, mas também pelas autoridades civis e utilizadas como "unidades de segunda linha", com as funções de guias, milícia civil, forças auxiliares, grupos de autodefesa para aldeias e outras funções especializadas (EME, B, Vol. I, 1988: 242). As unidades de autodefesa eram apenas civis armados que foram organizados e treinados para agir em defesa da sua aldeia, se esta fosse surpreendida pelos Guerrilheiros. A organização assim formada deu um certo grau de confiança às comunidades locais devido à capacidade, ainda que rudimentar, de defenderem os seus membros.
Em 1968 surgiram vários Grupos Especiais (GE) no Leste de Angola. Estes eram formados por rebeldes capturados ou por aqueles que se entregavam. Com o decorrer do tempo, foram utilizados em toda a Angola, especialmente no sector oriental. Havia noventa e nove grupos de GE e também estes foram incorporados nas forças regulares em 1972. Em 1974, estes noventa e nove grupos com a composição média de trinta e um homens totalizavam 3069 tropas.
Em Moçambique, os GE também foram organizados em 1970 e a sua estrutura, treino e funções eram semelhantes aos de Angola. A primeira organização consistia em seis grupos de 550 homens. Originalmente foram constituídos como pequenas unidades baseadas nos moldes de um típico pelotão ou grupo de combate ligeiro, e acabaram por atingir cerca de 7 700 homens em oitenta e quatro desses grupos. No princípio, eram liderados por Oficiais e Sargentos idos da Metrópole; no entanto, à medida que os quadros locais iam ganhando experiência, foram ocupando os lugares de comando e chefia.
Mais tarde, em 1971, os treinos dos GE foram alargados para incluir uma iniciação na qualificação de Pára-Quedistas. Foram estabelecidas doze unidades deste programa como Grupos Especiais Pára-Quedistas (GEP) e agregados à Força Aérea como um adicional das Tropas Pára-Quedistas normais. Cada uma das doze unidades tinha um Tenente como comandante, um Sargento especialista em operações psicológicas, quatro Sargentos como comandantes de subgrupo, dezasseis Cabos e quarenta e oito Praças, num total de setenta homens. Na totalidade, os GEP eram cerca de 840. Para além dos saltos de preparação, estas unidades raramente foram utilizadas nesta modalidade e eram posicionadas de helicóptero, à semelhança das unidades normais de Pára-Quedistas. Pode-se concluir que o seu treino especial era uma manifestação do interesse e apadrinhamento dos Pára-Quedistas portugueses pelo General Kaúlza de Arriaga, o qual, foi, enquanto Secretário de Estado da Aeronáutica, o criador das Tropas Pára-Quedistas.
Na Guiné, em 1964, foram criadas unidades semelhantes aos GE como forças para-militares, chamadas Milícias. Passaram a chamar-se Milícias Normais e Milícias Especiais, dependendo das funções de cada uma. As Milícias Normais tinham um papel defensivo, protegendo a população de ataques, viviam nas aldeias ou perto delas e estavam sob o controlo operacional do comandante militar local. A Milícia Especial conduzia operações de contra-insurreição ofensivas longe das defesas locais.
Em 1971, foi formado um Corpo de Milícias para integrar todas as Milícias e Tropas de 2.ª linha no Exército regular. O corpo foi organizado por companhias e juntou cerca de quarenta com mais de 8 000 homens, principalmente armados com espingarda G-3 e bazucas. Havia igualmente um Comando-Geral de Milícias que geria a sua administração e formação. A sua formação era conduzida em três centros e o respectivo curso durava três meses.
As Milícias eram bastante eficazes na protecção das aldeias e na consequente libertação de tropas regulares para outras operações. Já nas últimas etapas das campanhas, as Milícias eram responsáveis por 50 por cento dos contactos com os rebeldes. No final das campanhas, estas Milícias totalizavam quarenta e cinco companhias de Milícia Normal (cerca de 9 000 homens) e vinte e três grupos de Milícia Especial (cerca de 713 homens) (EME, B, Vol. III, 1988: 110).
Ainda na Guiné, os Comandos recrutados localmente eram conhecidos por Comandos Africanos (Cavalheiro, 1979: 1 e 2), cujas Praças eram integralmente constituídas por negros nativos. Acerca destas tropas diria Spínola, Comandante-Chefe das Forças Armadas na Guiné, ao formar a 1.ª Companhia de Comandos Africanos, a 11 de Fevereiro de 1969, referindo-se às bases da sua formação e uso, conforme os princípios da africanização estabelecida em Lisboa em 1968: "A nossa Força Militar Africana tem-se afirmado gradualmente e inclui agora uma unidade de elite, a 1.ª Companhia de Comandos Africanos, formada exclusivamente pelos filhos nativos da Guiné... A vossa ascensão à posição de Comandos do Exército Português marca uma etapa significativa no progresso de todos os guineenses" (Cavalheiro, 1979: 1).
Ao transferir os seus esforços de recrutamento para o Ultramar para apoiar a Guerra de África, Portugal alcançou uma série de vantagens importantes. Em primeiro lugar, a pressão do recrutamento na Metrópole foi aliviada, com os consequentes benefícios na opinião pública. Nesta mudança, Portugal não só estava a seguir a tradição de utilizar tropas africanas para combater as guerras africanas, como também a aliviar os obstáculos domésticos à continuação da Guerra. Com esta mudança de atitude, diminuiu a pressão da mobilização na Metrópole, passando as necessidades de efectivos e as baixas a ser assumidas de forma crescente pelos recrutamentos locais nos três teatros de Guerra. Por conseguinte, havia menos testemunhos emocionais a regressar de África e a insatisfação pública doméstica manter-se-ia atenuada e até mesmo passiva por algum tempo.
Em segundo lugar, os africanos portugueses, que tinham o maior interesse nos resultados das Guerras e, por isso, a maior motivação para um final bem sucedido, iriam agora contribuir de forma visível para a luta. O envolvimento dos africanos na sua própria defesa era também visto como uma das melhores formas de mobilização política.
A partir do que fica analisado e desenvolvido, forçoso é concluir que os Altos Comandos Militares, função ao nível de Generalato, orientaram estrategicamente a Guerra, segundo as melhores perspectivas, face às aos recursos financeiros e humanos de que Portugal dispunha e do enquadramento internacional, que nos era totalmente desfavorável. O mesmo é dizer que este nível hierárquico possuía a formação adequada às funções que lhe foram atribuídas. Os erros e a falta de estratégia que influenciaram os resultados da Guerra de África são fundamentalmente da responsabilidade dos políticos. Isto não significa que se isentem os militares dos erros políticos que, nessas funções, possam ter cometido, mas tão só que se isola a estratégia militar da política, ainda que esta possa ser da responsabilidade da mesma pessoa singular. Se, com a informação disponível se pode ajuizar da formação deste nível de elites, não se pode, contudo, definir a sua origem segundo as hipóteses que à partida formulei.

NOTAS do texto:
(1) Carlos Selvagem é o pseudónimo do Oficial de Cavalaria Carlos Tavares de Andrade Afonso dos Santos.

(2) Termo utilizado nos documentos oficiais das FA e na própria Lei.

(3) Informação colhida junto do Capitão Mendonça, Sub-Director da BE, no dia 12/09/2002. O Capitão Mendonça vem, há anos, estudando este tema. Segundo este entrevistado, a promoção de Sargentos a Capitão, para comandarem este tipo de tropas, terá existido até 1930.

(continua)
Textos, fotos e legendas: © Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados

Fonte: Blogue "COISASDOMR, post de 15Ago2010.

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