sábado, 23 de agosto de 2008

O “milagre das couves”

via Sopas de Pedra by A. M. Galopim de Carvalho on 8/21/08
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Imagem obtida [aqui]
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NO TEMPO EM QUE FUI CRIANÇA E ADOLESCENTE, os castigos corporais, longe de serem considerados crime, como hoje, felizmente, acontece, eram perfeitamente tolerados pela sociedade e até vistos, por muitos cidadãos respeitáveis, como a forma mais eficaz de educação.
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Era o par de açoites à criancinha, por causa da sopa rejeitada ou como castigo pelas mais diversas diabruras. Eram as reguadas e orelhadas, na escola primária, usadas como estímulo pedagógico, e o sonoro estalo na cara, dado pelo reitor do liceu, como o melhor garante da boa disciplina. Era o pontapé no cu do recruta que não conseguia acertar o passo na formatura de espingarda ao ombro. Era a bordoada de criar bicho, no interior da esquadra da polícia ou no posto da GNR, para não falar das sevícias infringidas pela Pide aos comunistas e demais opositores do regime dos Doutores Salazar e Caetano.
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Dos menos aos mais violentos, os castigos corporais estiveram na ordem do dia das nossas vidas. Sopapos, nalgadas, chineladas (dadas com o chinelo), bofetadas, cascudos, torcegões de orelhas e outros mimos do género, convenhamos que suaves, fizeram parte do meu aprender a ser gente. A menina-de-cinco-olhos, o cavalo-marinho e o cinto do pai foram expressões correntes usadas como ameaças nunca cumpridas. Sova, surra, coça e tareia eram vocábulos cedo aprendidos. Felizmente, não senti, na carne, certas modalidades correctivas, cujos nomes, só de os ouvir, desencorajavam muitas das asneiras a que se é tentado nesses anos de preparação para a vida adulta.
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A ameaça do cinto do pai não impediu que o Vasco, um primo por afinidade, na altura um rapaz nos seus treze ou catorze anos, tivesse cometido uma daquelas tolices de bradar aos Céus, como era costume dizer. Logo ali castigado pela mãe com um vigoroso par de tabefes, prometeu-lhe esta que teria de se haver com o pai, quando ele chegasse a casa, à hora do jantar.
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Bem dito, bem feito. Ao fim da tarde, a mãe do Vasco, ainda muito acalorada pelo comportamento do filho, relatou ao marido, na presença do rapaz, a asneira cometida por ele. O semblante do homem ia-se carregando, à medida que ouvia o desenrolar do acontecido, ao mesmo tempo que o do meu primo denunciava a expectativa do correspondente castigo.
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Ouvido o relato, nos seus pormenores, seguiu-se aquilo que o Vasco já conhecia de experiência própria. O desapertar do cinto e o sair deste, lento e ameaçador, das presilhas das calças. O passo seguinte, bem interiorizado por ele, era debruçar-se sobre a mesa e oferecer a retaguarda à acção correctiva que o esperava. Aos primeiros açoites, milagre! Grossas folhas de lombarda começaram a despontar das pernas dos calções do rapaz, acabando por cair no chão.
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Na verdade, não houve aqui nada de equiparável ao que se passou com a nossa Rainha-santa Isabel que, à pergunta intimidatória de D. Diniz, seu esposo, respondeu, graciosa e segura:
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- São rosas, Senhor!
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O que se passou foi que, conhecedor deste tipo de castigo, o Vasco tinha-se prevenido. Assim, nessa tarde fora à horta e enchumaçara o traseiro com as folhas da dita crucífera.


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