segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Açordas e migas

via Sopas de Pedra de A. M. Galopim de Carvalho em 07/12/08
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«Terra de grandes barrigas
onde só há gente gorda.
Às sopas chamam açorda
à açorda chamam-lhe migas. »
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FOI COM ESTES VERSOS que, em «Palhas e Moínhas», Vasconcelos e Sá, nos começos do século passado, cantou a diferença entre os usos destas palavras no Alentejo e fora dele. Estreada em Évora, em 1936, esta revista musical, em dois actos, tem por tema a mais extensa província de Portugal, as suas gentes e o seu modo de estar e viver naquela época. Entre os muitos participantes, todos recrutados entre a população da cidade, figurou o meu irmão Francisco José que, logo aí, revelou as suas excepcionais qualidades como intérprete da canção.
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A nossa açorda tem origem na tharid dos invasores árabes, uma confecção de pedaços de pão mergulhados num caldo quente, aromatizado e enriquecido com azeite, muito elogiado, diz-se, por Maomé, ensinou-nos o saudoso Alfredo Saramago em "Para uma História da Alimentação no Alentejo" (1997), fazendo notar que tharid alude ao acto de cortar ou arrancar pedaços de pão. Diz ainda este mestre da gastronomia que, durante o período de ocupação romana, se comia no Alentejo uma sopa feita de ervas aromáticas, alho, azeite, pão e água quente. Esta confecção atravessou, assim, as culturas dos povos invasores que se seguiram, tendo sido os árabes que a fixaram e lhe deram a importância que teve entre eles e ainda tem entre nós. A açorda (ath thurda) é, pois uma herança da presença muçulmana neste Garb al Andaluz, dos séculos VII a XIII.
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As açordas do pobre não têm conduto. São as açordas de mão no bolso, como já escrevi noutro local, as dos mais carenciados que, não tendo conduto, só precisam da mão que leva a colher à boca. São as açordas peladas, não fazem mal nem bem, é só pão e água... caem nas calças e não põem nódoas, escreveu Falcato Alves, em "Os Comeres dos Ganhões", 1994. Mas há também, para quem pode, açordas bem temperadas, feitas com a água de cozer bacalhau, pescada ou amêijoas, e com condutos de grande valor nutritivo e requintado paladar, com destaque para os ditos bacalhau, pescada, ou amêijoas, e, ainda, o ovo cozido ou escalfado, as azeitonas e, até, nalgumas famílias, os figos frescos. Convenhamos que uma açorda assim confeccionada, dispensa o chamado segundo prato.
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Como veremos num próximo post, açordas são quase sempre as de alho e coentros ou de poejos. À falta destas ervas há quem as faça com pimento verde esmagado. Mas há outras como as de tomate e muitas mais a ponto de o termo poder ser considerado sinónimo de "sopas de pão".
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Para nós, alentejanos, o termo migas designa um alimento à base de pão migado, embebido num caldo e a seguir esmigalhado e amassado. Esta confecção é aquilo que, em Lisboa e noutras regiões do país, se chama açorda. As açordas de marisco, as boas e as menos boas, que se servem de Norte a Sul, são, na realidade, migas, pois correspondem ao significado da palavra, o que está mais de acordo com as nossas, inclusive as de batata, também elas esmigalhadas e amassadas. Assinale-se aqui, porque nunca é demais saber, que migas e mica, o mineral, radicam no mesmo étimo latino, mica, que significa migalha, partícula.
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As migas na minha terra são quase sempre feitas no pingo da carne de porco com mais gordura, inclusive dos enchidos, e, ao contrário do ditado que reza «migas de pão, duas voltas e já estão», as migas dos nossos antepassados árabes e as que ainda hoje se fazem no Alentejo são enroladas continuamente até tostarem levemente e ganharem uma casquinha estaladiça. Prato tradicional e frequente na mesa de ricos e pobres, com a diferença de que as migas de uns tinham mais carne e as de outros mais toucinho e farinheira.

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