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Jacarandá de noreply@blogger.com (António Barreto) em 09/01/09
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UMA DAS MAIORES FRUSTRAÇÕES da minha vida consiste em não viver com os meus livros todos! Reunidos e arrumados, debaixo do mesmo tecto. Actualmente, tenho-os distribuídos por três locais diferentes: a minha casa, o meu escritório e o meu gabinete na Universidade. Sendo que tenho ainda umas caixas deles guardadas num antigo escritório.
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Por reflexo atávico, nunca deito fora um livro. Seja qual for. Isto faz com que o problema do espaço é crescente e só se resolveria com muitas centenas de metros quadrados. Não me queixo da minha casa, nem do meu escritório, pois são razoavelmente grandes. O problema é que os livros são ainda maiores. Houve alguém que disse que, ao contrário do provérbio estúpido, "o saber ocupa lugar"! Ocupa sim! E muito!
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O arranjo dos meus livros é relativamente clássico. Em primeiro lugar, por temas de trabalho ou interesse. Por exemplo, tenho secções mais ou menos organizadas de: História de Portugal moderna e contemporânea; sociedade portuguesa; estatísticas; Douro; vinhos; política; fotografia. Depois tenho secções por género: ficção; poesia; ensaio; pintura. Ou então: grandes clássicos do pensamento.
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Outra secção, enorme, é a de dicionários, vocabulários e enciclopédias. Não vivo nem trabalho sem um permanente recurso a estes instrumentos. Como "estou dividido" entre três locais, tenho muitas vezes de comprar dicionários e enciclopédias repetidos. Há um costume que estranho e que consiste em, numa mesa de amigos, ou num escritório da universidade, se discute um qualquer tema e há uma controvérsia sobre um nome, um autor, uma data, enfim, um facto. Pode estar-se a discutir horas, aos berros, e quase ninguém tem o reflexo simples de ir buscar um dicionário e encontrar a resposta. Tenho amigos que são capazes de discutir durante duas horas a data de nascimento de Masaccio! Ou o cognome de D. Afonso II! Têm mais prazer nisso do que simplesmente encontrar a verdade e passar à frente!
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Gosto muito de revistas, que vou lendo todos os dias, mas fujo delas, isto é, não as guardo. Nem revistas nem jornais. Não consigo viver com pilhas de jornais e revistas que se deixam de lado "para um dia ler" ou "para um dia recortar"... Já sei que nunca lerei, nem recortarei. E ocupam espaço a mais. E são tentações para "fazer colecção", colecção pela colecção (é preciso ter os números todos...), o que me irrita. As poucas "colecções" de revistas ou livros que tenho (como, por exemplo, a "Análise Social") são as que se tornaram indispensáveis para trabalhar e escrever. Quando tenho mais de três exemplaras do "Economist" ou da "The New York review of books", faço uma razia, tiro as páginas que realmente quero guardar e... tudo para o lixo!
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Dentro de cada secção da biblioteca, a intenção original, sempre reafirmada, nunca realizada, seria a de ter os livros arrumados por autor ou por época... Eis que não se consegue. Há um permanente desajuste entre o espaço previsto na estante, a dimensão da parede e a quantidade de livros que surge sobre esse tema... Já desisti. Há autores que, por acaso ou por necessidades de trabalho, estão bem colocados, com as suas obras seguidas... Há outros que estão divididos por várias estantes. Dentro das mesmas secções, claro, que nesse aspecto sou mais cumpridor.
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Há autores de quem tenho muitos livros. Sempre à espera de que sejam publicadas as "obras completas" em edição compacta, para poupar espaço. Assim fiz com Marx, Tocqueville, Malraux, Proust, Orwell, Chateaubriand, Tolstoi, Eça, Camilo e outros. O problema é que saem as obras completas, na Pléiade, na Aguilar, na Folio ou na Lello, compro-as imediatamente e... fico com todos, os dispersos e os reunidos em papel bíblia!
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O problema da diversidade de formatos não tem resolução. Por mais engenhocas que se seja. Já não vale a pena lutar. Ainda por cima, há cada vez mais a mania de fazer livros de formatos estranhos. Para dar nas vistas. De repente, aparece uma revista ou um livro (daqueles de mesa de café...) com 40 cm por 40 cm! Ou com 60 cm de altura! Não há nada a fazer. A não ser arranjar uma vala comum para esses descarados. Há gente assim, está sempre com invenções... Para os livros de fotografia, que são geralmente de grandes dimensões, mandei fazer uma estante adequada. O problema é que, pouco depois, começou a moda de fazer livros de fotografia em formato de bolso (alguns deles muito bons!). O que faz com que certas estantes mais se parecem com a boca de um velho e grande desdentado, com altos e baixos.
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Detesto livros no chão, livros em cima de armários, livros em locais pouco apropriados (quartos de banho, cozinhas, dispensas, garrafeira, etc.), livros nos corredores, livros nos vãos das janelas, livros em arcas, livros em caixas de cartão... Para já não falar de livros colocados na horizontal, por cima de livros arrumados na vertical! Ou de livros encostados na oblíqua! Por isso vou periodicamente condenando mais uma parede. Isto é, mando fazer estantes, do chão ao tecto, a fim de aumentar o espaço disponível. O que retira parede para ter algumas fotografias penduradas e bem visíveis diante de mim. Por vezes, quando olho, sinto-me cercado. Pior, sinto que vivo numa biblioteca. Que horror! E se, de repente, chegassem leitores?
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Raramente empresto livros. E só o faço a meia dúzia de pessoas de muita confiança. Se um dia alguém não me devolve um livro (em boas condições...), nunca mais! Vai direito para a lista negra! Raramente peço emprestados livros. Quando preciso, compro. Ou vou à biblioteca da Universidade. Mas, de preferência, compro. Reconheço que há qualquer coisa de perverso (ou de fetiche...) na posse de um livro.
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Gosto de comprar livros em boas livrarias, aquelas onde se faz perguntas e se obtém respostas. Onde se pode encomendar um livro. Acontece que já quase não há dessas livrarias. Compro também na FNAC, pois claro, onde a confusão e a desordem são totais, mas há lá empregados sabedores. Detesto comprar livros nos supermercados. E acontece-me frequentemente comprar livros em aeroportos. A princípio, irritava-me com a ideia de mandar vir livros da Amazon e de outros comerciantes da Internet. Mas depressa percebi que aquela via era genial. Encontra-se quase tudo o que se procura e compro muitos livros que não procurava, deleite supremo. Ainda por cima são baratos e chegam em boas condições. E é um verdadeiro prazer receber aqueles pacotes muito bem feitos, em casa, com os livros encomendados! Como é um prazer oferecer, à distância, um livro a alguém que se ama, por intermédio da Amazon, com embrulho e dedicatória!
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Detesto livros com traços de leitura feitos por outros. Notas, sublinhados, comentários ou exclamações. Quero lá saber o que outros disseram a propósito do que estou a ler! Eu próprio faço pouco uso dessas técnicas anti-ecológicas! Tomo notas em cadernos, folhas, etc., que por vezes guardo entre as páginas.
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Tenho alguns livros muito valiosos. Primeiras edições raras. Livros ilustrados dos séculos XVIII e XIX. Livros raros de carácter histórico. Mas em geral vieram parar às minhas mãos por amor, acaso, presente, destino, herança... Ou porque não existem edições modernas mais adequadas à leitura. Na verdade, não gosto de tratar os livros como se fossem peças de ourivesaria, de que, aliás, também não gosto. Ainda se fosse, por exemplo, uma "Bíblia" de Gutemberg, glosada e comentada por Lutero!... Ou "O Príncipe", anotado à mão por Napoleão!...
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Ainda não consegui realizar um sonho estúpido que tenho: fazer fichas, em Access, de todos os meus livros. Depois, fazer, também em Access, fichas de leitura, à medida que vou lendo. Mas rapidamente compreendo que tal método acabaria por tirar prazer e interesse na leitura e faria de mim uma espécie de "Robot" ou de guarda-livros. Na verdade, o que distingue a minha biblioteca de uma qualquer biblioteca pública é exactamente isso: visto-a. Como um casaco usado. Vivo com ela na pele. Ela tem tanto a minha marca, como eu tenho a dela. É mesmo uma união a sério, para a vida, para o melhor e o pior.
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Um dia, um amigo de poucas leituras veio a minha casa, olhou em volta, coçou o queixo e disparou: "Você leu isto tudo?". Confesso que, durante segundos, fiquei perplexo. Quase envergonhado. Com vontade de mentir e lhe dizer que sim, tinha ido tudo. Mas percebi a tempo que a reacção, além de covarde, era estúpida. Ler todos os livros que se tem em casa? Obras completas? Obras de referência? Manuais e tratados? Livros de estatística? Livros académicos? Dicionários? Enciclopédias? Percebi que só há duas hipóteses. Quem leu tudo o que tem casa, tem meia dúzia de livros. Ou está a mentir.
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Quantos livros tenho? Muitos!