segunda-feira, 20 de julho de 2009

Esposa, filha ou irmã da terra

via Sopas de Pedra de A. M. Galopim de Carvalho em 19/07/09
FAZ 40 ANOS que Neil Armstrong pisou o solo lunar, um facto notável que testemunha não só o poder da ciência e da tecnologia, mas também a bravura dos que protagonizaram aventuras semelhantes, a começar pelos navegadores de quinhentos que deram "novos mundos ao mundo".

Muito se escreveu e continua a escrever sobre o nosso inseparável e belo satélite natural. Da ficção à ciência, passando pela poesia, a Lua sempre esteve presente bem dentro das nossas vidas. Como geólogo, sempre esta nossa companheira ocupou parte importante da minha curiosidade. Acompanhei com o maior entusiasmo, sobretudo, através da imprensa escrita, a competição americano-soviética pela conquista do espaço, a meados do século que passou. Recordo o discurso do presidente John F. Kennedy, no início dos anos 60, em que afirmou que, até ao fim da década, a América enviaria uma missão tripulada ao solo lunar e trá-la-ia, em segurança, de volta à Terra. Recordo a madrugada de 20 de Julho de 1969, dia em que essa promessa foi cumprida, Colado ao televisor, vi, em directo, Neil Armstrong descer a escada da Apollo 11 e deixar no solo selenita a primeira pegada daquele passo gigantesco do génio humano.

Sem água nem atmosfera, não há na Lua o tipo de erosão que bem conhecemos na Terra. Por isso, o nosso satélite mostra-nos o mesmo visual de há mais de três mil milhões de anos. Uma superfície marcada por esparsos e vastos derrames de basalto – os chamados mares lunares – em contraste com vastíssimas regiões densamente pejadas de crateras de impacto meteorítico, pode ser vista por qualquer um com a simples ajuda de uns binóculos vulgares. Uma tal ausência de actividade erosiva faz com que a celebérrima pegada deixada pelo primeiro homem que ali chegou persista intacta por muitas dezenas de milhões de anos.

Aquando da minha estadia na capital dos franceses nos primeiros anos da década de 60, o nosso satélite era tema de ensino nas aulas de geologia da Universidade, ministradas pelo Prof. Charles Pomerol, cientista e grande divulgador, com quem tive frequente e proveitoso contacto. Ensinava ele que relativamente à origem da Lua se debatiam três concepções dominantes: A "Lua filha da Terra", como uma porção desta que, desde muito cedo, se teria separado dela; a "Lua esposa da Terra", como um corpo planetário estranho, vindo de algures e por ela capturado graviticamente; e a "Lua irmã da Terra", de formação independente e simultânea, ambas geradas, lado a lado, nos primórdios da evolução do Sistema Solar. Para este professor, e segundo os elementos científicos então disponíveis, esta última concepção era a mais verosímil. Passaram quarenta anos de estudo intenso do nosso satélite e a convicção da maioria dos cientistas do presente é aquela que então se referia à Lua como filha da Terra.


(Publicado no DN de 18 de Julho de 2009)

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Gostar de saber e dever cívico de estudar

via Sopas de Pedra de A. M. Galopim de Carvalho em 12/07/09
GOSTAR DE SABER é uma das chaves que abrem as portas ao binómio ensino-aprendizagem e, portanto, ao sucesso escolar e à valorização do indivíduo. A outra, não menos importante, é a consciência do dever cívico de estudar. Compete aos pais, em casa, e aos professores, na escola, desenvolver uma e outra.

Terminada a licenciatura em Geologia, em 1961, e sem qualquer preparação no domínio das ciências da educação, comecei imediatamente a leccionar, primeiro como assistente em aulas práticas e, só mais tarde, após o doutoramento, como regente de aulas teóricas. Os tempos eram outros e a tarimba do docente universitário desse tempo era passar pela maioria, senão todas, as disciplinas do Departamento. Quer em trabalhos práticos no laboratório e no campo, quer em auditórios, por vezes com mais de uma centena de alunos, os docentes dos anos 60 e 70 do século que virou eram conduzidos a uma visão eclética da área científica da respectiva licenciatura. Tal procura de ecletismo, consentida por uma então muito menor especialização do saber científico, estava bem patente nas modalidades de doutoramento e de agregação de então, marcadas por provas incidindo sobre a totalidade das disciplinas dessa área científica, em complemento das necessárias dissertações. O docente da minha geração criava a sua própria pedagogia, determinava-lhe os conteúdos, regia-a a seu modo e examinava os próprios alunos no final do ano ou do semestre.

Por razões diversas, umas bem conhecidas, outras não tanto assim, é frequente, numa qualquer turma, haver um, dois ou mais estudantes menos motivados, visivelmente desinteressados da matéria em estudo. Face a estes alunos, logo identificados nas primeiras aulas, adoptei uma estratégia que quase sempre resultou. Dava-lhes mais atenção, procurando estabelecer com eles um relacionamento de simpatia que lhes tornava agradável o convívio comigo e, consequentemente, a frequência às aulas. Colocava-lhes problemas muito simples, ajudando-os a resolvê-los sem que dessem conta dessa ajuda. Posto isto, elogiava os seus progressos e dava-lhes tratamento que lhes despertava auto-estima, os estimulava a gostar de saber e, por essa via, a gostar de estudar. Para as dúvidas e para recuperarem parte dos atrasos, contavam comigo sem reservas nem receios de revelar dificuldades. Estabelecida uma tal relação de simpatia e confiança, era fácil abordar temas que fossem dar à cidadania e ao dever cívico do estudante que é, em particular, estudar.

Este que foi o meu modo de conviver com os alunos, alegre, cordial, transparente e responsável, tinha como consequência a presença nas aulas da grande maioria dos alunos, do começo ao fim do curso. Uma grande aproximação entre nós intensificava-se nas saídas ao campo e tinha efeitos benéficos até durante os exames, em especial, nas provas orais. Nestas o examinando sentia-se na presença de quem lhe transmitia conhecimento, mas também de um amigo, e não na de um qualquer frio e distante examinador.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Pesamos mais na praia do que na montanha

via Sopas de Pedra de A. M. Galopim de Carvalho em 06/07/09
TODOS SABEMOS que a massa de um corpo é a medida da quantidade de matéria nele contida e que o peso desse corpo é a força com que a Terra o atrai. Essa força gravítica, como nos ensinou Newton (1642-1727) e que todos decorámos na escola, é directamente proporcional às massas do planeta e desse corpo e inversamente proporcional ao quadrado da distância que separa os respectivos centros de gravidade. Uma vez que a Terra não é perfeitamente esférica, uma mesma massa tem pesos diferentes consoante os locais onde se encontra. Nos pólos, onde o raio do planeta é menor, qualquer corpo pesa mais do que no equador, onde o raio é cerca de 25km mais longo. No cimo do Monte Evereste (8 848m), os corpos pesam menos do que ao nível do mar. São cerca de nove quilómetros de diferença na distância ao centro do planeta. Podemos afirmar, então, que pesamos mais na praia do que na montanha.

Um outro factor interfere na referida força de atracção, e esse factor é a densidade das rochas do subsolo onde se proceda à pesagem de um corpo. Quanto mais densas forem essas rochas, maior é a força da gravidade. Assim, no mar, longe os continentes, um mesmo corpo pesa mais do que em terra, uma vez que a crosta oceânica, basáltica, é mais densa (2,9) do que a crosta continental (2,7), essencialmente granítica. Há, pois, uma relação estreita entre as anomalias da gravidade e o equilíbrio isostático.

Os gravímetros são aparelhos de alta precisão com capacidade para medir o valor da aceleração da gravidade em qualquer lugar, em terra ou no mar. A sua grande sensibilidade põe em evidência variações mínimas daqueles valores, em função da latitude, da altitude e da natureza geológica dos locais onde são instalados.

Através de cálculos matemáticos podemos sempre determinar o valor da aceleração da gravidade em qualquer ponto da superfície da Terra. Os valores medidos com o gravímetro necessitam de ser referidos à superfície do geóide e corrigidos de interferências de natureza geológica, a fim de serem comparados com os valores calculados. Verifica-se, então, que, em geral, os valores medidos e corrigidos não coincidem com os valores calculados matematicamente. A diferença entre estes dois resultados é entendida como uma anomalia da gravidade, passível de interpretação geológica. Consideram-se anomalias negativas quando o valor calculado supera o valor medido, e positivas na situação contrária. Nos continentes, as anomalias da gravidade são negativas e aumentam em valor absoluto nas regiões montanhosas, onde a crosta continental (menos densa) é mais espessa. Nos oceanos as anomalias são positivas e variam em função da estrutura do respectivo substrato.

«DN» de 3 de Junho de 2009

Ardósia da minha infância

via Sopas de Pedra de A. M. Galopim de Carvalho em 28/06/09
PARA ALÉM DO GRANITO que conheci ao sentar-me nele, na soleira da porta da casa da minha avó, na rua de Frei Brás, em Évora, a pedra com que privei de perto foi a ardósia, uma espécie de xisto compacto que se deixa laminar permitindo talhar aqueles delgados rectângulos emoldurados, a que chamávamos, simplesmente, pedra, e nos quais as crianças da minha geração aprenderam a escrever as primeiras letras e os primeiros algarismos. Esta mesma ardósia ou lousa, aparada para fazer as vezes de telhas, exportámo-la para Inglaterra com o nome de "soletos", um aportuguesamento popular da palavra inglesa slate, com o mesmo significado. Acrescente-se que na ardósia, que todas a crianças levavam para a escola, se escrevia com lápis da mesma pedra, sendo curioso assinalar que lápis, do latim, lapis, quer dizer, precisamente, pedra.

- Amanhã começas a ir para a mestra Chica. - Disse a minha mãe ao mostrar-me aquela pedra preta, encaixilhada em madeira de pinho, acabadinha de comprar.

Ir para a mestra era uma promoção nos degraus da primeira infância. Dos vizinhos da minha idade, rapazes e raparigas, só eu ainda não frequentava aquela espécie de jardim-escola artesanal, onde a mestra, não sendo uma educadora diplomada como hoje acontece, era apenas uma das poucas mulheres que sabia os rudimentos da leitura e da escrita, que tinha jeito para lidar com crianças e que, assim, angariava uns tostões ao fim do mês.

Foi com a pedra enfiada na sacola de serapilheira novinha em folha e com uma caderinha alentejana empalhada, comprada no Alfredo cadeireiro que, pela mão da minha mãe, dei entrada na mestra Chica.

A sala de aula era a própria sala da casa, onde se almoçava e jantava, se trabalhava e se convivia em família. Digo bem, convivia, pois a telefonia e a televisão estavam longe de invadir os lares e, era falando umas com as outras, contando e ouvindo histórias, que as pessoas desfrutavam os seus tempos de lazer. Além da mesa, das cadeiras, do guarda-loiça e do aparador, lá estava a máquina de costura Singer e uma pequena bancada onde a mestra, ao mesmo tempo que ia entretendo os seus minúsculos pupilos, ia estendendo um melaço de açúcar, amarelado, espesso e quente que, depois de frio e endurecido, cortava em pedacinhos, com que fazia rebuçados para fora. Dizia-se "para fora" porque estas guloseimas caseiras, enroladas em papelinhos de diversas cores, eram fornecidas às lojas que lhas encomendavam e que, por sua vez, as vendiam a uma clientela jovem.

Era num espaço mais alargado desta, que era a maior divisão da casa, que uma meia dúzia de crianças, em idade pré-escolar, sentadas em cadeirinhas ou banquinhos de tamanho a condizer, com a dita pedra sobre os joelhos, procuravam desenhar as letras e os algarismos que a mestra escrevia para que elas copiassem. Muito longe da reconhecida actividade pedagógica dos actuais jardins de infância, apoiados em profissionais com preparação adequada, estar na mestra da minha infância, pouco mais era do que libertar as mães de então que, assim, podiam dispor de tempo para o muito trabalho doméstico que desenvolviam, onde não faltava a costura inerente a uma família inteira, numa época que roupa de casa e de vestir era quase toda confeccionada em casa.

Da mestra Chica ficou-me uma certa fixação à ardósia, não só a do pequeno objecto de estimação, que continuo a ter em casa, na cozinha, e onde se tomam notas próprias do dia-a-dia, como a do grande "quadro preto" da sala de aula que me acompanhou, como aluno, da primária à universidade, e onde durante quatro décadas, como docente, escrevi a giz, ao tempo em que esse auxiliar pedagógico não tinha a concorrência de retroprojectores, diapositivos e de todos os equipamentos electrónicos que marcam presença no ensino dos dias de hoje.