sexta-feira, 10 de julho de 2009

Ardósia da minha infância

via Sopas de Pedra de A. M. Galopim de Carvalho em 28/06/09
PARA ALÉM DO GRANITO que conheci ao sentar-me nele, na soleira da porta da casa da minha avó, na rua de Frei Brás, em Évora, a pedra com que privei de perto foi a ardósia, uma espécie de xisto compacto que se deixa laminar permitindo talhar aqueles delgados rectângulos emoldurados, a que chamávamos, simplesmente, pedra, e nos quais as crianças da minha geração aprenderam a escrever as primeiras letras e os primeiros algarismos. Esta mesma ardósia ou lousa, aparada para fazer as vezes de telhas, exportámo-la para Inglaterra com o nome de "soletos", um aportuguesamento popular da palavra inglesa slate, com o mesmo significado. Acrescente-se que na ardósia, que todas a crianças levavam para a escola, se escrevia com lápis da mesma pedra, sendo curioso assinalar que lápis, do latim, lapis, quer dizer, precisamente, pedra.

- Amanhã começas a ir para a mestra Chica. - Disse a minha mãe ao mostrar-me aquela pedra preta, encaixilhada em madeira de pinho, acabadinha de comprar.

Ir para a mestra era uma promoção nos degraus da primeira infância. Dos vizinhos da minha idade, rapazes e raparigas, só eu ainda não frequentava aquela espécie de jardim-escola artesanal, onde a mestra, não sendo uma educadora diplomada como hoje acontece, era apenas uma das poucas mulheres que sabia os rudimentos da leitura e da escrita, que tinha jeito para lidar com crianças e que, assim, angariava uns tostões ao fim do mês.

Foi com a pedra enfiada na sacola de serapilheira novinha em folha e com uma caderinha alentejana empalhada, comprada no Alfredo cadeireiro que, pela mão da minha mãe, dei entrada na mestra Chica.

A sala de aula era a própria sala da casa, onde se almoçava e jantava, se trabalhava e se convivia em família. Digo bem, convivia, pois a telefonia e a televisão estavam longe de invadir os lares e, era falando umas com as outras, contando e ouvindo histórias, que as pessoas desfrutavam os seus tempos de lazer. Além da mesa, das cadeiras, do guarda-loiça e do aparador, lá estava a máquina de costura Singer e uma pequena bancada onde a mestra, ao mesmo tempo que ia entretendo os seus minúsculos pupilos, ia estendendo um melaço de açúcar, amarelado, espesso e quente que, depois de frio e endurecido, cortava em pedacinhos, com que fazia rebuçados para fora. Dizia-se "para fora" porque estas guloseimas caseiras, enroladas em papelinhos de diversas cores, eram fornecidas às lojas que lhas encomendavam e que, por sua vez, as vendiam a uma clientela jovem.

Era num espaço mais alargado desta, que era a maior divisão da casa, que uma meia dúzia de crianças, em idade pré-escolar, sentadas em cadeirinhas ou banquinhos de tamanho a condizer, com a dita pedra sobre os joelhos, procuravam desenhar as letras e os algarismos que a mestra escrevia para que elas copiassem. Muito longe da reconhecida actividade pedagógica dos actuais jardins de infância, apoiados em profissionais com preparação adequada, estar na mestra da minha infância, pouco mais era do que libertar as mães de então que, assim, podiam dispor de tempo para o muito trabalho doméstico que desenvolviam, onde não faltava a costura inerente a uma família inteira, numa época que roupa de casa e de vestir era quase toda confeccionada em casa.

Da mestra Chica ficou-me uma certa fixação à ardósia, não só a do pequeno objecto de estimação, que continuo a ter em casa, na cozinha, e onde se tomam notas próprias do dia-a-dia, como a do grande "quadro preto" da sala de aula que me acompanhou, como aluno, da primária à universidade, e onde durante quatro décadas, como docente, escrevi a giz, ao tempo em que esse auxiliar pedagógico não tinha a concorrência de retroprojectores, diapositivos e de todos os equipamentos electrónicos que marcam presença no ensino dos dias de hoje.

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