quinta-feira, 31 de dezembro de 2009
Comentário a Cazombo
terça-feira, 29 de dezembro de 2009
TOQUE A INIMIGO...!
In "Capitães do Vento", Roma-editora.
segunda-feira, 28 de dezembro de 2009
Tempo de Natal em Barrancos
– Neste trabalho, – apontou, depois de me retribuir o cumprimento – no capítulo referente a Barrancos, estão citadas várias jazidas de ftanitos com Monograptus. Passe o Natal com a família lá em Évora e depois meta-se a caminho. Localize as que puder e faça umas boas colheitas. Temos cá exemplares do centro e do norte do país, mas do sul, só temos isto, – concluiu -, passando-me para a mão um fragmento de rocha cinzenta, muito dura e compacta, exibindo os ditos fósseis.
– Vais para Barrancos? Já amanhã? – Admirou-se o Chico, o meu irmão mais velho, que viera do Brasil passar o Natal com a família. – Mas isso é lá no "cu do mundo". Já lá estive durante uma tournée que fiz aqui no Alentejo com o Igrejas Caeiro. É gente boa. Falam uma espécie de espanhol que dá gosto ouvir.
– Tenho de ir. – Justifiquei resignado. Faltara-me a coragem para resistir ao capricho do catedrático e ali estava eu, forçado a deixar a família, agora reunida após anos de ausência de dois irmãos, o Chico e o Marecas.
Cheguei a Barrancos na última das três carreiras que tive de utilizar. A aproximação à vila fazia-se por um percurso tortuoso, num terreno profundamente abarrancado, realidade paisagística de que lhe resultou o nome. No largo da Igreja, um ventinho gélido brincava com as cinzas deixadas pelo grande lume - a imensa e tradicional fogueira da noite de Natal - a lembrarem o que fora a alegria e o convívio em louvor do Menino Jesus. Era noite quando bati à porta da pensão. Sopa e dois pratos faziam o jantar, servido numa sala grande, mal iluminada e fria, com porta para um corredor que levava à cozinha. Aqui, uma enorme chaminé com lume de chão e enchidos frescos ao fumeiro dava ao ambiente um conforto e um aroma a fazerem desta divisão da casa o lugar mais apetecido. Não longe da lareira, uma camilha envolta numa saia até aos pés, servia de mesa tanto de comer como para cumprir os trabalhos escolares da única filha. Pai, mãe e filha, avô e avó viviam e conviviam o tempo todo ali, num bem-estar que contrastava com o desconforto da sala de jantar destinada aos hóspedes.
Depois de uma sopa rala e sem graça nem sabor, o primeiro prato, à falta de peixe, constou de ovos mexidos com linguiça, seguido de um bife sobre o frito, uma ementa cuidada, pensada a condizer com o hóspede vindo de Lisboa e, ainda por cima, da Universidade. Nesse serão já não saí. Recolhi ao quarto, lajeado com placas de xisto a ressumarem água. O tecto, bem alto, limitava-se a um forro de caniço imediatamente por baixo das telhas. Um desconforto que não melhorava do lado de dentro dos lençóis de linho, húmidos e frios, carregados de mantas que só com o peso disfarçavam a falta de agasalho. Lavatório no quarto e espelhinho na parede diziam-me que, na manhã seguinte, a toilette se faria ali. Uma higiene cumprida a medo com as pontas dos dedos a trazerem a água aos olhos.
– Bom dia! Dormiu bem?! – Acolheu-me a avó, de roda do borralho, logo que me sentiu assomar. – Entre, entre. Venha para aqui, que está mais aconchegado. Já lhe preparo o cafezinho.
Pegou então num punhado de gravetos, chegou-os ao grande toro de azinho fumegante, a chiar baixinho, e começou a avivá-lo soprando por um longo canudo de ferro estrangulado na ponta. Às primeiras labaredas arrumou-lhe a cafeteira de barro queimada do uso.
– Este madeiro foi o da noite de Natal – disse – Era bem grande. Tive cá os outros filhos e os netos todos. Olhe aí para o presépio que eles fizeram. O avô trouxe-lhes o musgo e o barro e eles é que fizeram a bonecada toda.
Sentado à camilha, com as pernas passadas para dentro da grossa saia e com a braseira aos pés, tomei café de mistura, bem quente, a acompanhar torradas de pão caseiro, feitas ali, umas atrás das outras, no brasido do chão. Que delícia e que saudades! Até a margarina me sabia à melhor das manteigas. Encorajado por aquela abertura à intimidade da cozinha, desabafei: – Está-se muito melhor aqui do que na sala de jantar. E não seria também mais prático eu comer o mesmo que come a família? – Acrescentei afoito.
– Vossemecê é que sabe. – Respondeu-me com naturalidade. – A gente acha que a casa de jantar é mais apropriada para os hóspedes. Ficam mais à vontade, e nós também. – Sorriu. – Só lá comemos nos dias da festa, menos na noite do Menino, que é passada aqui ao pé do lenho. Hoje vou fazer chispe com repolho, mogango e feijão encarnado. Se gostar, logo à noite come com a gente. E ainda aí tenho esta carne frita que sobrou das migas do almoço de ontem. – Acrescentou, mostrando-me uma tigela de fogo quase rasa de banha encarnada, através da qual se percebia estarem ali mergulhados os pedaços de carne de porco magra e entremeada. – É temperada com alho e massa de pimentão. Sabe o que é? Assim não se estraga. Logo aqueço-lhe um pouco e vai ver como é bom. Quer mais uma pinguinha de café? Coma mais estas torradinhas, agora que estão quentinhas.
Falando deste e de outros Natais, a avó fazia-me companhia. Falou da ceia, do galo que matara, dos ganhotes e borrachos, da "fona" dos netos entre a casa e o grande lume, da missa da meia-noite e do pessoal cantando e tocando zambomba.
Com esta entrada no seio da família foi-se o frio, até o da noite, pois ali ao pé do lume até sabia bem prolongar o serão recheado de histórias e contos. Quando, por fim, recolhia ao quarto, levava comigo o calor das brasas e o da convivência, regalos que, aliados à fadiga de um dia inteiro a subir e a descer barrancos, cabeços e vales, de imediato me viravam a página para o dia seguinte.
Como foi hábito nesses escassos dias por terras barranquenhas e porque, na ocasião, a noite caía muito cedo, frequentei, nos fins de tarde, antes do jantar, a Sociedade, a mais selecta das duas situadas no largo da igreja, em frente uma da outra. Foi o Mário Escoval que ali me introduziu, permitindo-me conviver com os mais notáveis da vila. Como eu, a estudar em Évora, uma boa dúzia de anos atrás, esse meu amigo, era então um entre as forças vivas locais, a par de outros lavradores, do autarca, do comandante da guarda, do professor e do padre Agostinho.
- O que é que bebes? Cerveja?
- Cerveja, não. Só no Verão e com muito calor. Mas se é preciso justificar o direito à cadeira, que seja um café em copo, bem quente e com um "cheirinho". Sempre dá para aquecer as mãos e a alma.
Não era fácil explicar aos meus companheiros de ocasião qual era o meu trabalho, todo o dia no campo, com um saco, um martelo, uma bússola, um mapa do exército e um caderno de campo. Ainda por cima em terras raianas. Logo no primeiro dia, por duas ou mais vezes, tivera a sensação de estar a ser seguido, facto que relatei ao sargento da GNR, já o Mário havia feito as apresentações.
– Fui eu que ordenei a um dos meus homens para ver o que é que um estranho andava ali a tramar – respondeu em tom profissional o representante da autoridade.
– E o que é que ele viu? – Inquiri, interessado em dar continuidade à conserva.
– Viu-o apanhar pedras em tudo o que era sítio, mirá-las por todos os lados, guardar umas e deitar fora outras. Viu-o olhar para o mapa ou para a bússola, escrever umas coisas e pouco mais.
– É esse o nosso ofício. – Aproveitei para explicar. – Apanhamos pedras estudamo-las e desse estudo procuramos conhecer a história da Terra. Desta vez ando à procura de uns fósseis, ou seja, de vestígios de animais que provam que aqui foi mar há uns quatrocentos e trinta milhões de anos.
– Diga-me cá, - salientou o professor. – E como é que aqui foi mar e hoje é tudo terra em seco? E como é que se sabe que foi, assim, há tanto tempo?
- Bom, tudo isso tem a sua explicação, mas leva tempo.
– Foi o Dilúvio, – meteu-se na conversa o Padre Agostinho, até aí calado, mas particularmente atento.
– Bem, retorqui-lhe - escolhendo as palavras. – Essa é uma história que nos põe num outro campo que nada tem a ver com o nosso trabalho. Uma história que dava pano para mangas. – Rematei, sorrindo-lhe.
– Venha para cá no Verão, por altura das festas, – atalhou o eclesiástico – vai ver que gosta. Depois fica aí uns dias connosco para falarmos destas coisas. Tertúlia já nós temos. O Zé Adrião diz que tem lá no monte um peixe petrificado, metido no xisto. O Mário já foi ver e diz que parece mesmo um peixe, assim, grande – e abriu os braços, ao jeito dos pescadores desportivos quando falam das suas proezas. - Temos de ir vê-lo.
Só ao terceiro dia da minha estada em Barrancos localizei a tão desejada camada com fósseis de Monograptus. Após duas jornadas de insucesso, ocorreu-me pedir ajuda a um pastor com quem já me havia cruzado. Depois de umas palavras de circunstância e de umas festas ao cão, que logo me reconheceu e se aproximou a abanar vigorosamente a cauda, tirei do saco a dita amostra de ftanito bem embrulhada em jornal.
– Vossemecê já viu por aqui pedra como esta, com estes risquinhos? – Perguntei, passando-lhe para a mão o exemplar que trouxera de Lisboa.
– Já vi, sim senhor. – Respondeu, satisfeito, com o ar de quem sabia do que estava a falar. – Uns são direitos, outros enroladinhos. Têm assim um denteado como a folha da serra de rodear.
– É isso mesmo. E onde é que os posso encontrar? – Prossegui, animado pela resposta.
– Há aí vários sítios com esta pedra. - Disse, olhando-a atentamente – É muito diferente do resto. É mais dura e não abre nem deixa meter a folha da navalha, como o xisto. Umas são mais claras e outras mais escuras, como esta. Que eu me lembre, assim de repente, aparece ali para o Calvário. Também as há nas Boticas, em Noudar e ao pé da capela de São Ginés – nomes que foi pronunciado, pausadamente, à medida que os ia tirando da memória dos muitos sítios daquele que era o seu mundo. – Mas há mais. Olhe, ali atrás daquele cerro. Está a ver? – E apontou com o cajado. – Na Cerca das Almas, também se apanha obra desta. Há um caminho que passa no alto, - continuou – na direcção de quem vai para a vila. Em lá chegando, vossemecê vê logo um barranco fundo à sua mão direita. É aí, na descida, que há pedra igual a esta, cheínha destas coisas.
Abri o mapa e orientei-o. Lá estava a Cerca das Almas, a uns três quilómetros dali. Marquei o local que me pareceu corresponder à descrição do pastor, dei-lhe os bons dias, fiz mais umas festas ao rafeiro e pus-me a caminho. Era meio-dia quando cheguei ao ponto assinalado, dominado por enorme expectativa e pelo receio de mais uma tentativa falhada. Mas não. A camada fossilífera estava finalmente ali, a meus pés. A cada golpe de martelo a rocha abria-se-me nas mãos, repleta dos tão procurados Monograptus. Sentei-me a comer o farnel que sempre levava por almoço e passei o resto da tarde a partir ftanito e a enrolar em jornais todos os fragmentos que contivessem os ditos fósseis, posto o que regressei à vila, ajoujado ao peso da preciosa carga.
No fim dessa tarde foi a festa na Sociedade. Festejava-se a despedida, mas também o achado pelo qual já todos ansiavam e que, naturalmente, todos desejavam observar de perto. Desembrulharam-se as amostras e cada um viu o que quis e comentou ou perguntou o que lhe apeteceu.
- Vai já amanhã embora? Na carreira das sete e meia? – Perguntou-me por fim um dos presentes que, de seguida, gritou para o empregado, ao fundo da sala – Juzé Manué, bei acá i trázi maih uma jarra di binhú i uma pihca de catalão assadu.
Missão cumprida, podia regressar ao seio da família. E ainda faltavam dois dias para o Ano Bom. Na bagagem trouxe comigo um talego de chita cheio de lembranças dos meus amigos barranquenhos, uma preciosidade que entreguei à minha mãe.
– Isto faz um jeitão – comentou ela, no seu estilo de experiente e hábil gestora da economia familiar. – Mas que bem que cheiram os enchidos! E este pão, que coisa linda! E estes queijos e estas azeitonas! Louvado seja o Menino!
In "COM POEJOS E OUTRAS ERVAS". Âncora Editora, 2004. Lisboa.
domingo, 27 de dezembro de 2009
Quatro décadas: da mudança à incerteza - Intervenção na Academia das Ciência...
Quatro décadas: da mudança à incerteza - Intervenção na Academia das Ciências de Lisboa
À margem da Europa, o país vivia um relativo isolamento. Virado para o Atlântico e para África, onde possuía o último e imenso império colonial, os seus contactos com os países vizinhos eram reduzidos. Para as autoridades políticas, o isolamento era uma virtude. A tradição nacional, que valorizava o catolicismo e a ruralidade, era defendida e cultivada. A memória de um passado glorioso era o substituto de um futuro incerto. O oceano, fonte de memórias antigas, abria o país ao mundo. Mas a fronteira terrestre separava-o, mais do que aproximava, do único e grande vizinho, com o qual as relações não eram, quase nunca tinham sido, próximas, boas e amistosas. O Ultramar era o horizonte. Poderoso na ideologia e na retórica, mas afastado na geografia e na economia. A versão oficial proclamava uma sociedade multirracial, da Europa à Ásia. Mas, na verdade, a sociedade portuguesa era uma das mais homogéneas de todas as europeias. Os seus traços característicos punham em evidência uma grande unidade cultural, religiosa e étnica. Uma só língua dava forma a esta homogeneidade. Nas ruas das cidades, era raro, muito raro, cruzar um africano, um asiático ou qualquer outro estrangeiro. Além de tudo isto, o regime autoritário reforçava a ausência de pluralidade na sociedade portuguesa. (...)
Texto integral [aqui]
quinta-feira, 24 de dezembro de 2009
Da Língua Portuguesa
António Telmo, "Da Língua Portuguesa", Espiral nº4/5, p.58
segunda-feira, 21 de dezembro de 2009
O Complexo de Culpa dos Colonizadores
O Complexo de Culpa dos Colonizadores
A esses povos o colonizador levou antes de mais nada a paz e a segurança. Foram os colonizadores quem pôs fim ás guerras tribais e ao tráfico da escravatura – que fora durante séculos negócio corrente entre os chefes nativos e os negreiros e um direito normal do guerreiro vitorioso. Levaram aos povos autóctones o conhecimento de novas culturas, de sentido universalista, que os alçavam à consciência de membros da grande familia humana e de filhos do mesmo Deus. Organizaram o estudo e a luta contra as doenças, abriram hospitais, sanatórios, lazaretos, consultórios, laboratórios de análises, ordenaram o ensino da medicina e enfermagem, multiplicaram as campanhas de desparasitação, quininização, rastreio da tuberculose, combate aos agentes patogénicos. É de notar, no combate à mosca tzé-tzé, causa da doença do sono, a actividade dos médicos portugueses, que praticamente erradicaram esta doença dos nossos territórios. Generalizaram o ensino primário, abriram escolas técnicas e secundárias, universidades e institutos superiores de investigação. Os nossos institutos de investigação veterinária e agricola em Angola, por exemplo, eram organismos de categoria intenacional.
O colonialismo fez leis de trabalho e de previdência social, estudou os melhores métodos de cultura das terras e da criação de gado, aproveitou fontes de energia, instalou industrias, construiu portos maritimos, rasgou estradas, caminhos de ferro e pistas de aeroportos, edificou cidades, estabeleceu ligações terrestres, maritimas e aéreas, com todo o mundo. Não têm as nações colonizadoras em Àfrica, dum modo geral, razões para se sentirem culpadas do que por lá fizeram. Porque, a par de erros cometidos – e alguns desmedidamente avolumados pelos facciosismos da propaganda – há toda uma obra de trabalho, de progresso, de promoção social, que os africanos mais tarde hão-de lembrar reconhecidos e que para os europeus será sempre motivo de orgulho e não de complexo de culpa, injusto e absurdo. Pode dizer-se que até nalguns erros a obra dos colonizadores ficou. Tal o caso dos limites das novas nações africanas. Foram talhadas com fronteiras artificiais, no arbitrio dos acordos entre as potências europeias. Muitas separaram grupos étnicos que ficaram divididos por dois paises novos, parte num, parte noutro. Pois apesar disso é de supor que os novos estados fiquem com as fronteiras convencionadas pelos colonizadores e dentro delas desenvolvam, progridam e façam a sua História.
Conta-se que, depois do 25 de Abril, um diplomata do Leste europeu visitou Lourenço Marques. Acompanhou-o ali um dos dirigentes da FRELIMO apontou indignado para as palhotas:
-Isto é uma herança do colonialismo!
O diplomata do Leste sorriu e comentou:
-Isto aqui é África. A herança do colonialismo está ali.
E apontava para os altos prédios que se erguiam imponentes a umas centenas de metros...
Fonte: Barradas de Oliveira – Quando os Cravos Murcham
domingo, 20 de dezembro de 2009
OS BÓERES NO PLANALTO DA HUÍLA
Os bóeres são descendentes dos colonos holandeses que se fixaram no Sul da África, nos meados do século XVII, e dos huguenotes franceses fugidos às guerras religiosas da Europa, que se lhes juntaram, vinte e cinco anos depois.
Criaram raízes na terra. Pretendiam ficar. No entanto, quase século e meio antes da eclosão dos movimentos nacionalistas africanos, já a História os colhera na sua rede. Em 1815, a Holanda viu-se forçada a ceder a Colónia do Cabo à Inglaterra.
Fartos dos ingleses, a partir de 1835 os bóeres começaram a emigrar para Norte. Foi a grande marcha, o Trek. Fundaram sucessivamente o Estado Livre de Orange, o Natal e a República do Transvaal. Os britânicos não lhes deram sossego e obrigaram-nos a lutar pela liberdade. Os africânderes, como também eram chamados, bateram-se bem, mas foram vencidos.
Em 1876 terminou a guerra do Transvaal.
Seiscentas famílias bóeres penetraram no deserto do Calaari, procurando novo local para se instalarem, longe da bandeira inglesa. Viajaram em grandes caravanas que se organizavam, nas paragens, em posições defensivas. Os carrões bóeres eram parecidos com que se vêem nos filmes de cobóis. A estrutura dos veículos era simples: uma caixa grande de madeira assentava em dois eixos. As rodas de trás, maiores, eram fixas. As dianteiras, um pouco mais pequenas, giravam à vontade do condutor. Um bom sistema de travagem tornava seguras as descidas íngremes. O tecto, de lona esticado sobre arcadas de madeira, isolava o interior da chuva e, até certo ponto, do calor, do pó e dos mosquitos. Havia muitas peças móveis que se adaptavam às necessidades. As arcas de arrumação serviam também de assentos. Eram puxados por seis a oito bois, por vezes por mais.
Ao longo do Trek, os bóeres passaram fome e sede. Sofreram com a seca e com as febres, nas estações das chuvas. Perderam gente, gado e haveres e foram dispersando.
Uns tantos desistiram e voltaram para trás. Outros prosseguiram até ao Sul de Angola e percorreram as margens dos grandes rios Cubango e Cunene. Acabaram por estabelecer contactos com as autoridades portuguesas e obtiveram do Governo de Lisboa a concessão de três mil hectares de terra para se instalarem.
Vale a pena citar uma cláusula do contrato estabelecido entre os representantes do nosso governo e os líderes da comunidade bóer: Terreno cultivado pelo gentio é propriedade deles e não pode ser dado aos colonos que, portanto, não podem tirar-lhes o mesmo. O documento assinado garantia também, aos que chegavam, total liberdade de culto religioso.
Em Janeiro de 1881, oitenta famílias bóeres vieram estabelecer-se nas terras altas da Humpata. Além do gado de tracção traziam rebanhos soltos. Eram também caçadores. Jacobus Botha chefiava o grupo. Era o patriarca, à maneira bíblica: chefe religioso, político e militar, experimentado em guerras e sofrimento. Vira mesmo um dos seus criados ser devorado por um crocodilo, quando atravessava o rio Cunene, agarrado à cauda dum cavalo.
Os bóeres chegaram e construíram um canal de irrigação de seis quilómetros de comprimento, com uma levada de água para cada casal.
Nessa época, estavam fixados naquela área apenas dois portugueses. Artur de Paiva, jovem alferes, serviu como intérprete de língua inglesa e ficou a comandar o destacamento militar que se estabeleceu no local. Casou com uma das filhas de Jacobus Botha. Boa parte do sucesso de Artur de Paiva nas campanhas de ocupação do Sul de Angola ficaria a dever-se à ajuda prestada pelos cavaleiros bóeres.
Em 1883, foram enviadas para a Humpata seis famílias da falhada colónia Júlio de Vilhena, em Pungo Andongo. No ano seguinte, fixou-se na região um grupo de colonos madeirenses.
Os africânderes não gostaram da companhia. Acharam os novos vizinhos atrasados. Multiplicaram-se pequenos conflitos, resultantes da delimitação das propriedades e da distribuição da água de rega. Muitos bóeres venderam os seus terrenos e mudaram-se para a Palanca, a sete quilómetros de distância. Passados poucos anos, mais famílias abandonaram a Humpata e foram à procura de outras terras nos distritos do Huambo e do Bié. Uns tantos ficaram.
Existia, no papel, o Esquadrão Irregular de Cavalaria da Humpata, composto por praças de Caçadores 4. Em 1891, apenas três soldados sabiam montar. Quando eram necessários cavaleiros, contratavam-se bóeres. Traziam armas e montada, eram destemidos e conheciam o terreno. Faziam-se pagar bem.
Os bóeres ao serviço de Artur de Paiva raramente terão ultrapassado a meia centena. Foram determinantes na ocupação de Cassinga e na expedição ao Bié, em 1890, após o suicídio do sertanejo Serpa Pinto. Foi então aprisionado o soba Dunduma e estabelecido o domínio português na região. Algum tempo depois, os cavaleiros contratados colaboraram na campanha do Humbe, após o massacre do pelotão comandado pelo tenente Conde de Almoster.
A segunda guerra dos bóeres, travada com a Grã-Bretanha entre 1898 e 1902 não parece ter influenciado a situação dos africânderes residentes na região.
Em 1927 a África do Sul, pretendendo contrariar a influência eleitoral alemã na árida Damaralândia, desenvolveu uma campanha destinada convencer os bóeres fixados no Planalto da Huíla a regressarem à terra mãe. A iniciativa teve êxito. Em 1928, quase todos os bóeres se mudaram para o território do Sudoeste Africano. Foi um novo Trek.
Quatro famílias apenas ficaram na Humpata. As outras, uma a uma, carregaram novamente os seus carrões. Carrão após carrão rolou terra abaixo pela bem conhecida carreteira que conduz ao vale do Cunene, perto do Chitado. Na margem esquerda do rio, ao avistarem a bandeira sul-africana, reuniram-se todos para cantarem hinos de acção de graças. A pequena colónia constituída por 270 pessoas de raça branca que tinha viajado para o Norte até à Humpata em 1880 cresceu muito, contando agora perto de 2.000 almas.
Referências:
Estermann, Charles, Etnografia de Angola (Sudoeste e Centro). Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa, 1983.
Gama, António, Uma história de vida. Blogue Memórias e Raízes, 2009.
Trabulo, António, Os Colonos. Esfera do Caos, Lisboa, 2007.
Fotografias: colecção do autor.
Uma maneira de ser
sexta-feira, 18 de dezembro de 2009
Pior do que a guerra...
João José Brandão Ferreira
in "Em Nome da Pátria", Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2009.
quinta-feira, 17 de dezembro de 2009
Carta do Bispo de Dili à Mulher de Maggiolo Gouveia
Carta do Bispo de Dili à Mulher de Maggiolo Gouveia
Dili, 10 de Março de 1976
Há muito que me pesam no coração a dolorosa ansiedade e a cruel angústia de V. Ex.cia e de todos quantos têm estado sem notícias deles. Por S.Excia Rev.ma o Pro-Núncio Apostólico em Jacarta sei, agora, que V.Ex.cia vive mergulhada em grande aflição e tristeza por absoluta falta de notícias e que pediu à Santa Sé informações sobre a situação de seu estremoso marido. É mais uma falta da minha parte. Mas, como compreenderá, nem sempre é possível escrever em pleno fragor da guerra. A vida começa, agora tanto quanto é possível, a normalizar-se na cidade de Dili e nalgumas Vilas da Província e, por isso, apresso-me a escrever-lhe esta carta, através da mesma Nunciatura em Jakarta que, espero, a fará chegar às mãos de V.Ex.cia.
Durante o período de guerra, como V.Ex.cia sabe, tenho acompanhado, mais ou menos de perto, directa ou indirectamente, a sorte dos nossos queridos prisioneiros e, por isso, também, a de S.Ex.mo Marido e meu caríssimo amigo tenente-coronel Maggiolo de Gouveia. Particularmente assisti-lhe com assiduidade quando ele baixou no Hospital, sem gravidade, mas onde se manteve até ao dia 7 de Dezembro de 75. Nessa data, a FRETILIN levou para Aileu todos os doentes-presos, como aliás todos os seus prisioneiros, detidos em Dili, que andaria à volta de uns 800. Foi, então, que perdemos o contacto com os presos. Todos nós sentíamos a sensação de nos encontrarmos num túnel de curva fechada e vivíamos horas densas de angústia, situações de terror e como que de contínuo suspensos sobre o abismo da morte. Deus, e só Deus, era a nossa esperança: ao coração d`ELE fazíamos e continuamos a fazer insistente violência.
Só agora, e já lá vão sete meses de guerra - começa a raiar esquivamente a aurora de possíveis dias de paz: começa a haver tranquilidade e confiança e a vida está a voltar à normalidade. E, também, só agora, estão chegando notícias daqui e dali, do interior da Província, do que por lá se passou. Estão aparecendo em Dili alguns prisioneiros levados pela Fretilin, mas são muito poucos, os suficientes, porém, para por eles se saber os que não voltarão porque foram mortos pelas hordas comunistas. E entre estes que não voltarão, porque seguiram rumo à Casa do Pai do Céu, está o nosso querido tenente-coronel Maggiolo de Gouveia: fez ele parte dos mais de mil prisioneiros executados pela Fretilin no altar do ódio a Deus, à Família e à Pátria. É deveras doloroso esta minha missão de lhe vir anunciar que Seu estremoso marido não pertence já ao número dos vivos «neste vale de lágrimas», deu a sua vida pela fé e pela Pátria, morreu como um autêntico cristão, como um Homem inteiriço, como um militar de têmpera desses militares de antanho que são orgulho e exemplo da vossa gloriosa história. É natural, minha senhora, que o seu coração de esposa sangre de dor e que a sua alma mergulhe na tristeza mais atroz; mas quando um homem morre como o seu marido morreu, herói da fé e da Pátria, é mais motivo para dar graças a Deus e honrar-se em tal morte do que para lamentações e lutos. A certeza que lhe advém da fé, de que um dia encontrá-lo-à na Casa do Pai e o exemplo que ele deu, de testemunho da sua fé e das virtudes humanas, cristãs e militares, afirmadas sempre e, sobretudo, à hora da sua morte e com o sangue, serão o melhor e mais suave linitivo para a sua dor e deverão ser para V.Ex.cia e para seus filhos motivo de santo orgulho, de nobre estímulo na vida e, até, de cantar ao Senhor o «Magnificat».
A execução devia ter sido entre 9 a 15 de Dezembro de 75. Neste momento, ainda não me é possível averiguar a data exacta. Sei apenas algumas circunstâncias que tentarei passar ao papel, somente, para lhas comunicar.
Como atrás disse, todos os presos haviam sido levados de Dili para Aileu, em condições as mais desumanas. Em dia que ainda não consegui precisar, mandaram reunir todos os presos, como era rotina, e foi feita a chamada de cerca de 50 a 60 homens, incluindo o nome de Maggiolo de Gouveia, que sucessivamente iam alinhando no terraço. A este grupo, escoltado pela milícia armada, como era hábito, foi dada ordem de marcha em direcção à estrada de Aileu-Mausisse. Chegados aqui, e percorridos uns metros de estrada, soou a voz de «alto» e o grupo parou e viu-se próximo de uma grande vala, previamente aberta ao lado da estrada. É-lhes, então dito que todos vão, ali ser fuzilados. Há um momento de consternação e de estremecimento colectivo. As milícias põem a arma à cara: e é então, que o tenente-coronel Maggiolo levanta a voz e diz: Senhores, deixem-nos rezar. E todo o grupo, de joelhos em terra, reza o terço a N.Senhora, dirigido pelo tenente-coronel Maggiolo. Terminado este e estando todos de joelhos, encoraja e anima os seus companheiros «condenados à morte» e termina dizendo: Irmãos, breve vamos comparecer na presença do nosso Deus e Pai: façamos o nosso acto de contrição, o nosso acto de anor. E, em silêncio entrecortado de lágrimas, os corações daqueles homens sobem a Deus para pedir... lembrar... e dizer... aquilo de que, naquela hora derradeira, Deus é o Único testemunha. Depois, o tenente-coronel põe-se de pé, sendo seguido neste gesto pelos seus companheiros, e dirige-se aos soldados-algozes nestes termos: irmãos, nós estamos já preparados para comparecer no Tribunal de Deus, lá vos esperamos também a vós. O meu único crime foi o de não renegar a minha fé e o de amar Timor. Morro por Timor. Morro pela minha Pátria e pela minha fé católica. Podeis disparar. Evidentemente, os soldados timorenses ficam como que petrificados, não se movem, nem se atrevem a pôr a arma à cara. É um estrangeiro que rompe o silêncio destes primeiros instantes e quebra a indecisão daqueles soldados nativos: põe a arma à cara e dispara contra o tenente-coronel Maggiolo. E, logo a seguir, todos os soldados fazem o mesmo, abatendo com rajadas sucessivas todos os presos. (Esta narrativa - quero que o saiba, minha senhora, - ouvi-a da boca de um dos presos de Alieu, o Administrador do Concelho de Mabusse, Lúcio da Encarnação, que a ouviu por sua vez dos próprios soldados-algozes e que, ao fim, foi salvo pelas milícias de Ainaro).
Assim morrem os heróis. Assim morreu o tenente-coronel Alberto Maggiolo de Gouveia. E, quem assim morre, é orgulho para os pais, para a esposa, para os filhos e para a Pátria. Morreu como herói da fé e da Pátria: e, desta forma, não é a morte que coroa a vida, é a glória eterna em Deus que sublima tal morte. E mais vale morrer com glória do que viver com desonra - eram desta têmpera os portugueses de antanho - foi a ideia-força na vida deste Homem, deste Cristão e deste oficial do Exército Português, de Maggiolo de Gouveia. Se, como piedosamente cremos, ele continua a viver no Céu, junto de Deus, também viverá no coração dos timorenses enquanto a memória dos homens não se desvanecer.
Desculpe, minha senhora, fui muito extenso e não disse tudo nem..., é quem tudo conhece. Mas pensei que seria esta a melhor forma de ir mitigar a sua grande dor, de pedir-lhe que tenha coragem na vida para vencer até ao fim, onde o encontrará, e de exortá-la à confiança em Deus que é o melhor dos pais e que, assim, a começa a preparar para «esse encontro» na meta final da vida.
Aqui vão, Senhora D. Maria Natália, para V.Ex.cia, para Seus filhos e para toda a demais família, as minhas profundas condolências e a expressão da minha comunhão de orações de sufrágio, com os meus sentimentos de religiosa estima e muita consideração.
De Vossa Excelência servo inútil em Cristo
Livro: Timor, Abandono e Tragédia de José Morais e Silva e Manuel Amaro Bern...
Este magnífico livro sobre a trágica descolonização de Timor, editado pela Prefácio, em 2000, revela ao longo das 270 páginas toda a traição orquestrada desde o MFA em Lisboa, pelos Governos Provisórios; o papel do Governador Lemos Pires; os subversivos papéis fundamentais dos majores Arnão Metelo, Fernandes Mota e Costa Jónatas, representantes comunistas da Comissão Coordenadora do MFA; os espancamentos e as torturas por Hermenegildo Alves, Rogério Lobato e Alarico Fernandes feitas na prisão a Maggiolo; o provável acordo secreto entre Lisboa, Washington e Jacarta para que Timor passasse a ser a 27.ª província da Indonésia - conforme escreveu e defendeu Mário Soares - devido à importância do petróleo nas águas timorenses, do importante papel geopolítico regional da Austrália e dos interesses do Tio Sam da qual resultou a invasão militar indonésia com o beneplácito do presidente americano Gerald Ford e do "guru" Henry Kissinger depois da visita destes senhores do mundo a Jacarta; a guerra civil timorense causadora de 3.000 mil mortos.
Faz parte das páginas do livro o extraordinário depoimento de sua Mulher, D. Maria Natália Maggiolo de Gouveia; a célebre e pungente carta do Bispo de Dili, D. José Joaquim Ribeiro que relata os momentos do fuzilamento e a alocução radiofónica dirigida às tropas portuguesas estacionadas em Timor.
Aqui fica a singela homenagem ao herói militar condecorado com a Medalha de Prata de Valor Militar, com Palma, em 1967, por actos praticados em Angola e com a Medalha de Cruz de Guerra colectiva à Companhia de Caçadores n.º 1522 comandada em Angola, em 1968, por Maggiolo de Gouveia.
Finalizo com o testemunho das palavras corajosas de Maggiolo aos seus algozes:
"Irmãos, nós estamos já preparados para comparecer no Tribunal de Deus, lá vos esperamos também a vós. O meu único crime foi o de não renegar a minha fé e o de amar Timor. Morro por Timor. Morro pela minha Pátria e pela minha fé católica. Podeis disparar."
Magiollo de Gouveia - Presente!
terça-feira, 15 de dezembro de 2009
René Dumont. E, por fim, o emergente e difuso socialismo africano.
René Dumont. E, por fim, o emergente e difuso socialismo africano.
segunda-feira, 14 de dezembro de 2009
A vida é alfa e ómega
Oswald Spengler
in "O Declínio do Ocidente".
domingo, 13 de dezembro de 2009
Caminhos da Mineralogia (1)
Vinda da Antiguidade, com destaque para a chinesa, a babilónica, a hindu e a egípcia, através da tradição popular e dos textos eruditos dos clássicos gregos e latinos, a Mineralogia percorreu a Idade Média de mãos dadas com a Alquimia, uma prática e uma atitude trazidas pelos árabes, seus cultores, sob a designação de Al kimia, ou "pedra filosofal", expressão de um conceito carregado de sabedoria, nem sempre devidamente apreciado. Nesta escola floresceu a Polypharmacia, actividade onde se queimava, sublimava, dissolvia e precipitava. É no seio deste embrião do saber científico e de mãos dadas com ele que a Mineralogia surge cresce, deixando para trás muitas das concepções fantasistas e místicas dos escolásticos.
A partir da 2ª metade do século XVI e na sequência da obra de Agricola, os alquimistas começaram a dividir-se por duas correntes: a que preconizava explorar a natureza das coisas no sentido da química científica e a que cultivava uma atitude fantasista e extravagante, em busca da pedra filosofal, responsável pela imagem negativa que, injustamente, tem sido divulgada em torno da alquimia e dos alquimistas. Esta outra atitude teve como resultado retardar o avanço da química e, consequentemente, da mineralogia, disciplinas que só começaram a ganhar foros de ciência com o alvor do século XVIII.
Os velhos lapidários, manuais de medicina e magia da Idade Média, plenos de descrições de minerais e pedras, entre as quais muitas meramente fantasiosas, deram lugar a obras escritas com preocupações de rigor científico, ao nível do possível na época, entre as quais a do italiano Ulisse Aldrovandi (1648), da Universidade de Bolonha, que lhe valeu forte perseguição por parte do Santo Ofício.
Na mesma época, na Dinamarca, Nicolau Steno revelava, em 1669, sem qualquer oposição dos guardiões da fé e do saber antigo, haver constância nos valores dos ângulos entre faces homólogas nos cristais de quartzo, um pequeno mas decisivo passo que abriu portas ao estudo dos cristais e, portanto, dos minerais. Deve dizer-se que a Santa Inquisição mostrava alguma tolerância pelas investigações de pendor matemático e geométrico que não questionassem os princípios dogmáticos da Divina Génese. Tal não sucedeu com o químico inglês Robert Boyle (1627 – 1691), conhecido no mundo científico por ter inovado o conceito de elemento químico. Na visão do poder eclesiástico este trabalho punha em causa fundamentos tidos por intocáveis e, assim, este conceito teve de esperar cerca de um século para ser aceite.
É bem conhecido o papel da Igreja na história da ciência, em especial, a partir de Concílio de Trento (1545), cujos dogmas foram determinantes como travão ao avanço do saber científico. Mas diga-se também que foi no seio da Igreja que surgiu Inácio de Loiola e a Companhia de Jesus, contrariando uma postura tradicional do Vaticano, com a criação do que ficou célebre Colégio de Roma, considerado na época uma instituição científica de vanguarda.
A Mineralogia afirmou-se como disciplina científica, no decurso dos séculos XVIII e XIX, a par da Química Inorgânica (também conhecida por Química Mineral), fazendo-a progredir e tirando dela o essencial do seu próprio aprofundamento como ciência de acentuada organização sistemática. Por seu turno, fez nascer, deu corpo e desenvolveu intensamente uma nova disciplina de cariz geométrico e matemático – a Cristalografia Morfológica – que usou como via complementar de diagnóstico até às primeiras décadas do século XX. Alargou-se, depois e ainda mais, com o conhecimento da organização espacial das redes cristalinas em função da natureza dos elementos químicos que as integram, para, a partir daí, se irmanar com a Física do Estado Sólido, com recurso às modernas tecnologias de análise, dando nascimento a uma novíssima disciplina designada Cristalografia Estrutural.
Saúde e sociedade, Solidariedade e liberdade
NÃO VOU FALAR do Hospital [de Santa Maria]. Outros o farão. Conheço mal a sua história. Sei que terá sido decidido em 1934 e desenhado por Hermann Diestel em 1938. Dizem que os planos de Santa Maria e de S. João, no Porto, são iguais e que deveriam ser de hospitais a construir na Alemanha. Não foram, por causa da guerra. Diz também a lenda que o projecto era vantajoso: saía mais barato sendo para dois! Foi iniciada a construção em 1940, concluída a obra em 1953 e inaugurado a 27 de Abril. Ainda me lembro dos ecos da sua inauguração que chegaram a Trás-os-Montes, assim como, poucos anos depois, os da abertura do S. João. Eram consideradas obras excepcionais, de relevo internacional.
Santa Maria faz portanto agora 75 anos de decisão, 69 de construção, 56 de inauguração e 55 de início da operação. Parabéns pois. Aos seus dirigentes, aos que aqui trabalham e sobretudo aos que aqui foram tratados. Outros vos falarão do Hospital, das suas várias fases de vida e dos melhoramentos recentes que, segundo se diz, têm sido realmente importantes. Não vos posso dar testemunho pessoal, dado que, por sorte minha, não sou frequentador de hospitais. Por enquanto. Mas não esqueço uma frase de João Lobo Antunes, ouvida na rádio, creio eu. Dizia ele que, de manhã, quando se dirigia para aqui, para o trabalho, se sentia feliz. É tão raro ouvir tal que nunca mais esqueci. Pode ser "coisa" dele, esta atitude, mas não poderia ser verdade se o Hospital não oferecesse alguns motivos para essa felicidade. Espero que ele nos diga porquê.
Parece, de qualquer modo, ser verdade que este hospital vive um ciclo de transformação e de modernização que muitos consideram exemplar. Regozijo-me com o facto. Não é frequente ver velhas e gastas instituições serem capazes de se renovar e de transformar os seus hábitos. Parabéns também por isso.
Os anos 50, de criação deste hospital e do de S. João, foram anos importantes em Portugal. Para todos os efeitos, tínhamos saído da guerra sem nela participar. Havia reservas e meios. O regime julgava-se seguro e esperava ser reconhecido internacionalmente, por todos os países do mundo, na ONU, e especialmente pelas democracias ocidentais, na NATO. O que veio a acontecer. Até à ligação à OCDE e à fundação da EFTA, esta última em 1959. O regime, já com cerca de trinta anos, não cedia nas liberdades, mas preparava-se para um esforço extraordinário. Nas infra-estruturas (estradas, barragens, produção e distribuição de energia, organização das corporações, produção de adubos, cimentos e aço...), nas Obras Públicas, no planeamento (Planos de Fomento), na Assistência e na Saúde. Os dois grandes hospitais fazem parte desse esforço. A criação da Fundação Gulbenkian, quase na mesma altura, foi o mais fértil acto de sorte de que os Portugueses jamais beneficiaram e que não deixou de ter efeitos profundos na saúde. Logo a seguir, a criação da Radiotelevisão deu nova dimensão à comunicação, à informação e à integração do espaço, português.
Começa nesta altura um processo gradual de melhoramento da situação social dos Portugueses, com especial relevo para a Assistência e a Saúde. Até então, os Portugueses viviam um estado de pobreza raro na Europa, talvez único, deixando de lado a Espanha, saída de uma guerra civil. No final dos anos quarenta, apenas uma muito pequena minoria tinha acesso a serviços hospitalares e a ajudas assistenciais. Depois, lentamente, talvez mesmo muito lentamente, os apoios vão-se alargando. Os beneficiários da Previdência, por exemplo, começam a ter acesso aos cuidados hospitalares. Mas ainda se trata de uma pequena parte, menos de trezentas mil pessoas. Tal como na Segurança Social: em 1960, apenas 120.000 pessoas usufruem de pensões, o que compara com as actuais 2 milhões e meio! Na saúde, todavia, o crescimento virá a ser mais significativo e ilustrado pelo número de pessoas assistidas pelos serviços médico-sociais da Previdência. Pouco mais de 300.000 no início dos anos cinquenta. Um milhão e meio em 1960. Cinco milhões em 1970 e sete milhões em 1975.
Desde estes anos cinquenta até hoje, o progresso e a expansão foram constantes. Consistentes até 1974 e acelerados depois do 25 de Abril. Todos os indicadores revelam mudanças importantes. Nem todos são de interpretação simples, dado que os modos de organização e os métodos de administração dos cuidados de saúde são hoje muito diferentes do que eram há três ou quatro décadas. Apesar disso, é possível ver os progressos na cobertura nacional, no acesso dos cidadãos aos serviços e no alargamento do pessoal médico e paramédico em serviço.
O número de médicos passou de cerca de 6.000 para mais de 35.000. Podem distinguir-se três períodos. O primeiro, de crescimento lento, até 1975. O segundo, de aumento rápido, de 1975 ao final da década de oitenta. O terceiro, de estabilização e de desenvolvimento gradual, desde então. De pouco menos de 80 médicos por 100.000 habitantes, em 1960, chegou-se actualmente a uma taxa de mais de 300. Aumentos semelhantes verificaram-se ainda com as outras profissões: dentistas, enfermeiros e técnicos de diagnóstico.
Uma avaliação da eficácia e dos resultados de um serviço público de saúde não se pode fazer apenas a partir dos dados quantitativos. Mas a verdade é que o sistema conheceu um crescimento considerável. Este poderá ser confirmado pelas informações relativas ao acesso aos estabelecimentos de saúde públicos. Os internamentos passaram de 460.000 por ano para perto de dois milhões. As consultas de cerca de 8 para mais de 43 milhões por ano, o que equivale a 4,2 por habitante. As urgências saltaram de 588.000 para 15 milhões por ano.
A assistência ao parto registou igualmente uma evolução notável. No início deste período, apenas 18% dos partos ocorriam com assistência médica em estabelecimentos hospitalares e equiparados. Hoje, é praticamente a totalidade dos partos que se verifica nessa situação. Também a propósito deste indicador se pode distinguir uma primeira fase de crescimento lento, até ao princípio da década de setenta; e uma segunda, a partir de então, de progresso rápido.
A mortalidade materna e infantil reflecte cabalmente o alargamento e a universalização dos serviços de saúde. A mortalidade infantil geral desceu de 77,5 por mil, em 1960, para menos de 6 por mil no fim da década de noventa e para pouco mais de 3 por mil actualmente, naquela que é uma das mais baixas taxas do mundo.
Uma observação superficial dos dados relativos a causas de óbito revela também uma situação que sublinha a melhoria dos cuidados de saúde. Com efeito, certas doenças que denotam especialmente os atrasos dos serviços de saúde pública, como a tuberculose e as doenças infecciosas e parasitárias, registaram descidas notáveis, sendo hoje responsáveis, em conjunto, por cerca de 1% das causas de óbito, quando o eram por 13% em 1960.
A todo este desenvolvimento do sistema correspondeu um aumento considerável da despesa pública com a saúde: só entre 1980 e 2007, mais do que triplicou. Independentemente da qualidade, da prontidão, da eficácia e do conforto dos serviços de saúde prestados aos cidadãos, a verdade é que o sistema público cresceu muito significativamente nestas quatro décadas. Em certo sentido se poderá mesmo dizer que foi neste período que estes serviços nasceram, dado que, anteriormente, apenas uma parte da população tinha realmente acesso aos cuidados essenciais. Até porque os serviços de saúde estavam longe de cobrir integralmente o território. Os dados relativos à esperança de vida, assim como às taxas de mortalidade infantil e materna, sem esquecer os de certas causas de óbito, reforçam a ideia de que a saúde pública se generalizou no período em estudo.
As comparações com os restantes países europeus confirmam tanto o atraso inicial de Portugal, como os rápidos progressos verificados. Por exemplo, Portugal tinha o menor número de médicos por habitantes; encontra-se hoje muito próximo das médias europeias, colocando-se mesmo acima de vários países. Também os dados relativos a indicadores físicos (estabelecimentos hospitalares e camas) confirmam o atraso inicial de Portugal, assim como o facto de, hoje, o país se encontrar próximo das médias europeias.
Dois indicadores demográficos, a esperança de vida e a mortalidade infantil, traduzem apropriadamente certos aspectos da eficácia dos serviços de saúde. Em ambos os casos, a evolução de Portugal confirma o que se tem vindo a afirmar. À partida, o país registava valores que revelam indiscutivelmente o seu atraso: a mais baixa esperança de vida e, de muito longe, a mais alta mortalidade infantil. Em finais da década de noventa, a esperança de vida dos portugueses, tanto no caso dos homens como no das mulheres, continua a ser a mais baixa, mas já praticamente ao mesmo nível dos restantes países europeus. Quanto à despesa pública e privada com a saúde, Portugal revela um dos mais altos valores. Em relação ao produto, a despesa portuguesa, com cerca de 8%, situa-se entre os primeiros.
Do ponto de vista político e social, deverá sublinhar-se o momento em que se começa a falar de "direito à saúde", no início da década de setenta, ainda timidamente. Poucos anos depois, com a Constituição de 1976, é o pleno reconhecimento dos direitos sociais e, com eles, o do direito à saúde. Logo a seguir, é criado o Serviço Nacional de Saúde, uma das mais interessantes realizações da democracia portuguesa. Estamos já longe dos períodos em que a caridade individual, a assistência e a previdência foram sendo, progressivamente, os métodos de socorro à doença e à destituição. É possível afirmar-se que, mau grado diferenças e desequilíbrios, a saúde e a medicina chegam a todos os espaços geográficos e a todas as classes sociais.
Há evidentemente problemas por resolver, alguns mais sérios do que outros. Ainda há listas de espera cuja solução já deveria ter sido encontrada. As Unidades de Saúde Familiar, que parecem ter constituído um êxito, avançam muito devagar. A relação entre a saúde pública e as comunidades locais está por rever. As relações entre os sectores públicos e privados continuam em mau estado, ora virados de costas, ora em banho de promiscuidade. Há questões sérias por resolver na combinação entre as competências científicas, a responsabilidade clínica e a posição na carreira. Ainda não foi encontrado um equilíbrio quantitativo na formação universitária dos médicos. Parecem anunciar-se, a curto prazo, défices na disponibilidade de várias especialidades médicas, em particular a da saúde familiar e a da pediatria. É persistente o desequilíbrio na relação entre médicos e enfermeiros. Há problemas sérios na área da Bioética. Os desperdícios financeiros e materiais no sistema e nos estabelecimentos hospitalares são ainda elevados. E tem faltado liberdade de espírito e pragmatismo para pensar a reorganização do Serviço Nacional de Saúde.
Estes são alguns dos problemas, outros haverá. Mas a verdade é que, globalmente, ao longo das últimas décadas, os serviços de saúde e a medicina em geral registam talvez os maiores êxitos da vida pública do nosso país. Os inquéritos independentes levados a cabo, as sondagens e estudos de opinião, as taxas de mortalidade infantil e por doença de condição "social", a esperança de vida e a mortalidade num certo número de doenças significativas revelam os melhoramentos conseguidos.
Nunca teremos, obviamente, uma situação perfeita e sem problemas. Esse ideal não é do domínio dos vivos. Como o demonstra o estado da saúde pública em vários países, cujos progressos e "performance" se julgava estarem na vanguarda, mas que são sempre e novamente objecto de acesa discussão. Mas é gratificante saber que a evolução tem sido permanente e consolidada. Como é satisfatório ter a certeza de que, geralmente, a expansão quantitativa tem sido acompanhada por uma melhoria qualitativa de serviços e cuidados. Parece banal e normal, mas não é. Outros sectores existem na sociedade, como a Educação e a Justiça, por exemplo, nos quais os melhoramentos de qualidade têm sido mínimos, ou até negativos, apesar dos progressos em recursos e quantidade.
Por que razões é a saúde o sector que melhor se porta? São várias as causas. Cito apenas algumas. Em primeiro lugar, o "ethos" profissional dos que aqui trabalham: pode haver oportunistas, gananciosos e predadores, mas, no essencial, as regras morais desta profissão são baseadas na decência e no sacrifício. Segundo, o lugar dominante da ciência nas regras e nas práticas, em detrimento da ideologia e das crenças filosóficas ou religiosas. Terceiro, o carácter aberto da profissão, das administrações e dos resultados. Quarto, a existência de alternativas a qualquer profissional, instituição, estabelecimento ou fornecedor. Quinto, a emulação entre organizações. Se compararmos com outros sectores, a Educação e a Justiça, em particular, depressa veremos que, nesses, alguns ou todos estes critérios não desempenham qualquer papel. Daí o poder dos corpos profissionais e daí a ineficácia das pressões sociais e das aspirações das populações.
Gostaria ainda de acrescentar um factor de sucesso, apesar de não ter estudado suficientemente a matéria. Mas creio ser verdade que, na Saúde, talvez justamente pelo efeito do peso da ciência e do escrutínio universal, houve mais estabilidade institucional, mais permanência de critérios e procedimentos e mais regularidade na organização do que noutros sectores, onde as mudanças de políticos, de políticas e de práticas se sucedem.
Dito isto, vivemos actualmente momentos difíceis de reflexão, de debate e de incerteza. Não de circunstância e conjuntura, mas em profundidade e no médio e longo prazo. Na verdade, é conhecido agora que as despesas com a saúde crescem infinitamente. Por todas as razões tecnológicas, comerciais e psicológicas, mas também e sobretudo porque a esperança de vida e a longevidade são factores inexoráveis de aumento de despesa.
É igualmente sabido, apesar de ser um conhecimento envergonhado, que os cuidados e os exames não poderão ser totalmente gratuitos para sempre, nem os gastos com a saúde poderão ser inteiramente suportados pelo Estado e pelos contribuintes.
Por outro lado, faz hoje parte do património público a ideia de que é necessário um sistema de saúde pública que cuide e proteja uma parte importante da população.
Finalmente, é igualmente reconhecido que a saúde, como qualquer outro sistema sem emulação, sem competição e sem comparação, pode causar desperdício e ineficiência.
Qualquer destas ideias está hoje em debate público, pelo menos no mundo ocidental. Como ocorre em quase todos os países europeus e ocidentais, como se vê nos Estados e na Inglaterra, onde, com ou sem eleições, os sistemas de saúde e as responsabilidades do Estado constituem o mais ácido tópico de debate político e social.
Em Portugal, o debate tem sido difícil. Por razões políticas e ideológicas e porque o debate está demasiadamente tolhido por crispações partidárias. Discute-se o Serviço Nacional de Saúde e a dita "Liberdade de escolha" como se ambos fossem alternativos e incompatíveis. Por outras palavras: quem defende o serviço público considera que a liberdade de escolha é um atentado e a destruição daquele. Quem prefere a liberdade de escolha entende que o serviço nacional é ineficaz, injusto, burocrático e fonte de desperdício ou de corrupção. Assim, não temos solução. Assim, não há saída. Tenho para mim que a única solução reside na superação da dicotomia. Há Serviço Nacional de Saúde com e sem liberdade de escolha. Como há medicina privada e liberdade de escolha com ou sem Serviço Nacional de Saúde.
Defensor convicto do Serviço Nacional de Saúde, cuja destruição seria uma catástrofe social, estou também do lado da liberdade de escolha. Não por tentar ser salomónico ou ecléctico, não por querer agradar a uns e outros, mas pela simples razão que considero que há aqui dois princípios dignos de serem respeitados. O da solidariedade e o da liberdade. Mais: estou também convencido de que a associação entre a liberdade e a solidariedade é a garantia de preservação e desenvolvimento do serviço público. Não consigo, aliás, perceber as razões filosóficas e morais pelas quais os defensores da hipótese radical de Serviço Nacional não querem conferir aos cidadãos a liberdade de escolha.
Não creio que a melhor defesa do Serviço Nacional de Saúde seja a da fortaleza, imóvel e aparentemente robusta. É, bem pelo contrário, a sua eficácia, a sua maleabilidade e a sua humanidade que melhor o defendem. Se o Serviço Nacional de Saúde souber garantir a solidariedade que protege e a liberdade que respeita os cidadãos, teremos saúde pública por muitos e bons anos.
Hospital de Santa Maria, Lisboa - Sessão comemorativa dos 55 anos
Dezembro, 8, 2009