sábado, 6 de junho de 2009

O inventor de Monte Carlo

via Textos longos, passatempos, etc & tal... de Carlos Medina Ribeiro em 02/06/09
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Por Nuno Crato
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IMAGINE O LEITOR que tem uma folha de papel com um recorte estranho. Em vez de ser rectangular, como costume, a folha tem uns contornos sinuosos, de forma que é difícil saber qual a sua área. Se a pretender calcular terá dificuldades — mesmo que seja um bom matemático, mesmo que consiga desenhar bem o contorno da folha e exprimi-lo rigorosamente como uma função matemática, pode estar metido em grandes trabalhos.
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Pode tentar um meio de cálculo aproximado, um pouco tosco, um pouco à engenheiro, como diriam alguns matemáticos puros. Comece por colocar a folha de papel no chão. Coloque ao lado uma folha de papel A4, que tem como área 1/16 do metro quadrado. Salpique agora com tinta, ao acaso, mas tão uniformemente quanto possível, as folhas e o chão em redor. Conte depois o número de pingos que caíram em cada uma das folhas e faça uma proporção. Se, por exemplo, a folha de recorte estranho tiver metade do número de pingos dos da folha A4 isso quererá dizer que ela deve ter, aproximadamente, metade da sua área.
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Pois este método de cálculo de áreas (ou, em matemática, cálculo de integrais) não foi desenvolvido por nenhum engenheiro, mas sim por um dos matemáticos de alma mais abstracta do século XX. Chamava-se Stanislaw Ulam, tinha nascido na Polónia, e emigrara para os Estados Unidos, onde trabalhara no projecto Manhattan, que construíra a bomba atómica. Em 1946, quando convalescia de uma doença grave, teve a ideia de recorrer ao acaso para fazer cálculos que, de outra maneira, seriam muito complexos ou mesmo impossíveis. Aos métodos que inventou veio a chamar-se «métodos de Monte Carlo», em óbvia referência à capital da sorte.
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Na sua autobiografia, Ulam explica como tudo aconteceu. «A ideia para o que mais tarde se chamou método de Monte Carlo ocorreu-me quando estava a jogar solitária durante a minha doença. Reparei que podia ser muito mais prático deitar as cartas, para avaliar a probabilidade de sucesso num jogo de solitária (…), ou fazer experiências do processo e simplesmente tomar nota do número de sucessos, em vez de tentar calcular todas as probabilidades combinatórias». Dias depois, Stan Ulam conversou com o seu amigo John von Neumann, o matemático mais versátil da época, e os dois pensaram em formas de desenvolver este método de cálculo aproximado. Adaptaram-no a um problema muito complexo, que era a difusão de neutrões numa reacção de fissão nuclear. Os computadores digitais, que tinham acabado de estar disponíveis para a investigação, tornaram possíveis os cálculos. «Uma característica do método de Monte Carlo é que nunca fornece uma solução exacta», explicou Ulam, «mas fornece estimativas dos valores procurados».
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São palavras curiosas na boca de um matemático puro, um homem que, quando se juntou ao esforço de guerra, se ria de si próprio dizendo que «agora, até faço cálculos com números».
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Ao longo de uma vida dedicada à matemática, Ulam deixou um legado extenso em áreas puras, como a topologia e a análise funcional. As suas criações mais conhecidas, contudo, são eminentemente práticas. Uma é o método de Monte Carlo. Outra é a formulação matemática que obteve para a fissão nuclear e que permitiu a construção da chamada «bomba H».
Stanislaw Ulam nasceu há cem anos, em 1909, em Lwow, na Polónia.

«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 30 de Maio de 2009
NOTA: Este texto é uma extensão do que está publicado no 'Sorumbático' [v. aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.

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